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Argentina campeã do mundo no Catar 2022 – uma análise da economia política do futebol

Seleção da Argentina comemora tricampeonato após bater a França na final da Copa do Mundo FIFA de 2022, no Estádio Lusail, no Catar, em 18 de dezembro de 2022 [Agência Anadolu]
Seleção da Argentina comemora tricampeonato após bater a França na final da Copa do Mundo FIFA de 2022, no Estádio Lusail, no Catar, em 18 de dezembro de 2022 [Agência Anadolu]

Argentina é tricampeã do mundo. O título é no futebol profissional masculino, mas a simbologia e o fenômeno da cultura popular latino-americana são, muitas vezes, maiores do que o jogo.

Escrevo estas linhas poucas horas após a vitória da Argentina contra a França, nos pênaltis. Foi 2 a 2 no tempo regulamentar, 1 a 1 na prorrogação e depois as defesas de Emiliano “Dibu” Martínez fizeram a diferença.

Não me atrevo a analisar o jogo em si, já que temos centenas de colegas jornalistas especializados na área e muito capacitados. Tampouco é o propósito deste artigo. Reconheço que é difícil se concentrar neste momento, pois muito devemos à crônica esportiva e ao jornalismo esportivo em geral. Como alguém que tem sua vocação apaixonada pelo ofício de escrever profissionalmente diretamente ligada aos operários das palavras, deixo aqui uma singela homenagem aos colegas e referentes do Brasil e da América Latina, em especial do Cone Sul de nosso mundo. Nas figuras de João Saldanha (1917-1990) e do imortal Víctor Hugo Morales, homenageio a quem cresceu ouvindo rádio esportivo e lendo os relatos por escrito. Ambos “son casi argentinos”, assim como este analista.

A perda nos fatores de trocas e a transnacionalização do futebol profissional

Entrando no tema de fundo, a primeira constatação é observar as relações internacionais desiguais e assimétricas através do desporto profissional. A Argentina, o país que recebeu a milhões de imigrantes entre o último quarto do século XIX e o primeiro quarto do XX, se dedica – infelizmente – a exportar cérebros e mão de obra em todos os níveis, incluindo a saída de jovens jogadores de futebol. Tanto o goleiro já citado quanto o melhor do mundo, Lionel Messi, saíram de casa e de seus clubes de base ainda quando eram menores de idade. Esta tem sido a regra, cada vez mais globalizada.

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Nas Copas do Mundo após a Segunda Guerra Mundial tínhamos as evidências do confronto entre as escolas de futebol: a europeia e a sul-americana. Por obra e graça da culturalização, massas de trabalhadores e os oprimidos do sul entronizaram o futebol como prática sócio-desportiva, já a partir dos anos 1920. Com o desenvolvimento pioneiro da Celeste Olímpica, a seleção do Uruguai ganhou as Olimpíadas de 1924 e 1928; então, sediou e venceu o primeiro campeonato mundial de 1930 em Montevidéu, transformando a América Latina em polo do esporte mais popular do planeta. Nossos países entraram na década de 1930 abrindo mão da sina agroexportadora, convertendo excedentes, substituindo importações em produção industrial e buscando seus caminhos soberanos no Sistema Internacional entre guerras.

A Guerra Fria, a etapa da Bipolaridade, viu a sequência desta rivalidade entre europeus e sul-americanos e o desenvolvimento do futebol como produto pleno da indústria cultural sul-americana. Não se pode pensar a modernidade da América Latina sem a crônica esportiva; igualmente, é inimaginável uma Argentina sem a “beatificação” de Diego Armando e agora Lionel Andrés. A partir da década de 1980, a “exportação” de jogadores já maduros para clubes europeus ia se acentuando, mas ainda com alguma capacidade de rivalizar dentro de campo.

A década de 1990 e a chegada dos canais por assinatura – a maior parte deles de origem estadunidense – ampliaram a mundialização das cadeias de valor e a presença de marcas esportivas transnacionais. Não por coincidência, a presença mundial da FIFA acompanha a expansão de uma empresa de roupa e acessórios desportivos. Desde a década de 1970 e com a troca de comando na contestada autoridade mundial do futebol, a ampliação das seleções no Mundial acompanhava a independência e a soberania dos países recém libertos do último ciclo imperialista, assim como todas as mazelas e acusações de corrupção dentre os dirigentes máximos do jogo mais popular do planeta.

O século XXI começa promissor com o poder ampliado dos países emergentes, a ascensão dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e duas Copas sediadas no sul global. Tudo dava a entender que a América Latina finalmente iria buscar rumos soberanos, e com o “boom” das commodities, teríamos a capacidade de converter novamente excedentes, e fazer uma revolução científico-tecnológica à altura de nossas potencialidades. Desta forma, poderíamos inverter o ciclo de concentração no futebol profissional, parar de enviar jovens como promessas para “academias profissionais de clubes-empresa europeus” e valorar marcas latino-americanas. Ocorreu tudo ao contrário, dentro e fora de campo.

Poderíamos traçar um argumento do subdesenvolvimento desigual e combinado, agregando as linhas da Cepal, da Teoria da Dependência (com base na obra de Enzo Falletto, auxiliado por FHC) e a versão mais dura, com a matriz de Ruy Mauro Marini e Theotonio dos Santos. Tivemos perda na capacidade industrial, o fator interno como aliado estratégico imperialista e a exportação de capital e perda de valor nos fatores de troca. Em termos futebolísticos, a primarização avançou muito. Jovens assinando contratos ainda adolescentes ou sendo vendidos com menos de vinte anos, com apenas uma ou duas temporadas nos elencos profissionais de seus países. Nas ruas argentinas, brasileiras e de outros países latino-americanos, nossas crianças usam camisetas de seleções mundiais vestidas com marcas de clubes-empresas europeus, muitas das vezes financiadas por fundos de investimento. Logo, o “clube nacional” em escala mundo passa a ser a seleção nacional.

As dificuldades só aumentaram. Desde 2002 – portanto vinte anos –, uma seleção sul-americana não ganhava uma Copa do Mundo. O Brasil venceu a competição realizada em conjunto com a Coreia do Sul e o Japão; em 2006, a final foi Itália e França (vitória italiana); em 2010, Espanha e Holanda (vitória espanhola); 2014, Alemanha e Argentina (vitória alemã); em 2018, França e Croácia (vitória francesa). Uma geração inteira quase normalizando a dependência e a subalternidade como forma de vida.

Argentina campeã, América Latina representada

É muito relevante observar o passado colonial no presente da seleção francesa e o orgulho panarabista em defesa da Palestina nas escolhas dos jogadores do Marrocos. Sem dúvida é o tema de fundo a ser analisado e será objeto de artigo futuro. No que toca à América Latina, é quase impossível competir contra as estruturas de base europeias, incluindo as “academias de futebol” das federações nacionais, como o exemplo da França e da Inglaterra.

Se nossos futebolistas adolescentes saem cada vez mais cedo para o exterior, a periferia da própria Europa fornece os talentos e a popularização desportiva necessárias para garantir o fluxo de formação de jogadores. Logo, há cada vez mais concorrência e fluxo de recursos. É certo que as populações imigrantes e marginalizadas se veem representadas nas seleções francesa, holandesa, belga, portuguesa, inglesa e um pouco menos na espanhola. Mas a concentração de capital da UEFA torna o futebol cada vez mais desigual em termo de clubes e, graças à Argentina – por sua postura em campo e da comissão técnica –, o ciclo de subalternidade foi interrompido.

Observação final: a extrema direita francesa – racista, xenófoba, islamofóbica e antiárabe – sempre torce contra sua própria seleção. Na América Latina, a alegria do povo é sintoma de ódio e desprezo pelas maiorias, típicas das elites dirigentes subalternas. O mínimo que se pede a atletas profissionais dos países latino-americanos é que deixem tudo em campo, sabendo que as estruturas de poder das sociedades não mudam por uma partida de futebol. Já o estado de ânimo e o sentido de pertencimento, sim.

LEIA: Copa do Mundo 2022: Como o futebol mudou o jogo para o Oriente Médio

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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