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Marrocos x França: A luta contra o colonialismo chega à Copa do Mundo

Torcedores do Marrocos celebram a classificação da equipe às semifinais da Copa do Mundo no Catar, após vitória contra Portugal, na avenida central de Champs-Élysées, em Paris, capital da França, em 7 de dezembro de 2022 [Umit Donmez/Agência Anadolu via Getty Images]
Torcedores do Marrocos celebram a classificação da equipe às semifinais da Copa do Mundo no Catar, após vitória contra Portugal, na avenida central de Champs-Élysées, em Paris, capital da França, em 7 de dezembro de 2022 [Umit Donmez/Agência Anadolu via Getty Images]

A seleção nacional de futebol do Marrocos fez história como primeira equipe árabe e africana a chegar a uma semifinal da Copa do Mundo FIFA, no torneio realizado no Catar, que se encerra no próximo domingo, 18 de dezembro. No caminho, os marroquinos derrotaram times favoritos da Europa – Bélgica, Espanha e Portugal –, ao reaver memórias da colonização.

O Marrocos enfrenta a França por uma vaga na final contra a Argentina e tem a chance de bater sua mais recente metrópole. Assim como nos jogos contra Espanha e Portugal – pelas oitavas e quartas de final da Copa, respectivamente –, a História moderna do continente africano tornou-se protagonista. Em contrapartida, uma enxurrada de comentários racistas sobre os marroquinos varreu as redes sociais da Europa, ao evocar a expansão islâmica do século VIII, interrompida no atual território francês. Tudo sugere nada menos que discriminação enraizada na mentalidade europeia, alimentada por sua interação histórica com o mundo islâmico e a resposta de líderes ultranacionalistas e colonizadores.

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O contato entre a França contemporânea e o Islã começou pouco depois da Conquista da Ibéria em 711. Uma década depois, os exércitos islâmicos avançaram ao norte; em 732, o governador omíada de Al-Andalus (Andaluzia, na Espanha atual), Abdel Rahman al-Ghafiqqi, comandou um contingente de 20 mil soldados rumo a Paris – anteparado a apenas 320 km da capital francesa. Naquela região, ocorreu a Batalha de Poitiers, contra os francos conduzidos por Carlos Martel – governante de facto do Reino da Francia. Al-Ghafiqqi faleceu no campo de batalha; suas tropas foram derrotadas. O episódio marcou o fim da expansão islâmica à Europa Ocidental.

Ao longo da Idade Média, o contato entre o atual Marrocos e a França restringiu-se, de maneira geral, a guerras travadas além de suas respectivas fronteiras. Ambos os impérios marroquinos – os califados almorávida e almóada – enviaram tropas à Península Ibérica para reagir à chamada Reconquista Cristã. A leste, o célebre líder muçulmano Salahuddin al-Ayyubi (Saladino) libertou Jerusalém dos cruzados francos, ao usar um contingente do exército marroquino, no ano 1187. Muitos soldados se assentaram na Cidade Santa após reavê-la. No século XX, o Estado ocupante de Israel destruiu a maior parte do Quarteirão Marroquino da Cidade Velha de Jerusalém para expandir o Muro das Lamentações (ou Muro de al-Buraq, como é conhecido pelos muçulmanos locais). Contudo, um dos acessos à Cidade Velha ainda detém o nome de Portão Marroquino ou Portão dos Mouros, em homenagem àqueles que ajudaram a libertar Jerusalém.

No século XVII, Marrocos e França desfrutaram de um período de relativa aproximação e ambos os estados trocaram embaixadores. Não obstante, os Piratas da Berbéria – Norte da África, que operavam no Mediterrâneo Ocidental e Oceano Atlântico – se converteram em um novo ponto de atrito entre ambas as nações. Muitos corsários eram refugiados andaluzes, expulsos de suas terras pela Inquisição Espanhola. Os chamados “piratas” ergueram fortes no litoral marroquino e passaram a investir contra embarcações cristãs, como resposta à perseguição inquisitorial.

Em 1766, a França fez sua primeira tentativa de invadir o Marrocos, em episódio que se tornou conhecido como Expedição de Larache – em referência à cidade costeira. Contudo, fracassou. A guerra voltou a eclodir em 1844, devido ao apoio marroquino à resistência argelina. Em último caso, o então sultanato do Marrocos foi forçado a encerrar sua aliança com Emir Abdelkader – líder espiritual da luta anticolonial da Argélia –, ao assinar o Tratado de Rabat em 1912. O país tornou-se assim um protetorado europeu, o que avalizou a colonização espanhola.

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O Marrocos jamais foi oficializado como colônia da França – o sultão foi mantido como chefe de estado –, mas o estado europeu efetivamente agiu como potência colonial. Agricultura, política de estado, tributação aduaneira e recursos naturais: tudo recaiu à jurisdição francesa. De fato, a ocupação francesa do Marrocos foi tão brutal quando a colonização de outros países da região do Magrebe. Sucessivos crimes de guerra foram cometidos contra a população local.

No entanto, a França enfrentou resistência particularmente contumaz na região de Atlas – que, no universo esportivo, conferiu à alcunha à equipe marroquina, conhecida popularmente como Leões de Atlas. Moha Hammou Zayani (“Moha”, abreviatura local do nome Mohammed), Moha ou Said e Ali Amhaouch – sob a alcunha de Triângulo Amazigue – encabeçaram a resistência da Confederança Zaian, radicada perto de Quenifra. A Guerra dos Zaian durou de 1914 a 1921 e se encerrou com a subjugação da resiliente resistência. Todavia, os combatentes marroquinos não se renderam e transferiram sua guerrilha às cordilheiras de Atlas, que perdurou até meados da década de 1930.

Neste entremeio, no norte do Marrocos, em territórios alheios ao controle da França, um outro movimento de resistência passava a tomar corpo. Em 1921, o líder amazigue local Abdelkrim el-Khattabi conseguiu reunir diversas tribos de Rife e derrotar um contingente espanhol de 23 mil soldados, na Batalha de Annual. O episódio foi um desastre para o imperialismo espanhol, que perdeu seu domínio sobre a área. Poucos meses depois, Abdelkrim fundou a República de Rife e passou a expulsar a Espanha e seus agentes coloniais do Norte do Marrocos. As vitórias rifenhas enfim atraíram a atenção da França. Em 1924, uma intervenção francesa foi também derrotada na Batalha de Ouerega. O incidente e o subsequente avanço de Abdelkrim a Fez alarmaram os comandantes em Paris, que decidiram restaurar sua aliança com a Espanha para reagir, com um contingente próximo a 500 mil soldados. Os números acachapantes e o uso de armas químicas contra a população rifenha eventualmente forçaram Abdelkrim a se render.

Outro episódio folclórico de resistência contra a França foi a Batalha de Bougafer, em 1933. Na ocasião, a tribo Ait Atta de Uarzazate conteve o avanço de 80 mil soldados europeus por 40 dias e rendeu-se apenas após negociar termos favoráveis.

Em 1943, foi fundado o Partido da Independência (Istiqlal), cujo manifesto promovia libertação do colonialismo francês. O movimento obteve apoio do sultão Mohammed V; os líderes deram então um discurso resoluto sobre a independência em Tânger, então zona internacionalizada. A fim de impedir o evento e suas repercussões anticoloniais, autoridades francesas lançaram mão de uma chacina em Casablanca, na qual centenas de civis foram assassinados.

Em 1954, Mohammed V foi forçado a exilar-se em Madagascar e substituído por seu primo, Ben Arafa. Um ano depois, após protestos e escalada da resistência nacional, organizada no Exército de Libertação, o sultão Mohammed V regressou ao Marrocos. O país conquistou independência da França em 1956.

Após este período, ambos os estados desfrutaram de laços amistosos e parceria comercial. Dois porcento das importações ao Marrocos são francesas, conforme dados de 2021. Porém, apesar de décadas de proximidade, as relações se degradaram nos últimos dois anos, devido a questão de vistos a cidadãos marroquinos rumo à França, além da postura das nações europeias sobre o Saara Ocidental, reivindicado pelos saarauís. Neste entremeio, Marrocos e Argélia criaram uma rivalidade geopolítica veemente, agravada pela recente aproximação franco-argelina.

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Tudo isso levou Rabat a afastar-se pouco a pouco de Paris e favorecer laços emergentes com a China e os Estados Unidos. A movimentação foi vista pelo governo francês como ameaça a seus interesses na região, dado que sinaliza a ruptura magrebina com a influência francófona.

Hoje, há cerca de um milhão e meio de marroquinos radicados na França – a maior comunidade do país no exterior. Imigrantes marroquinos sofrem racismo e islamofobia, inclusive mediante leis recentes outorgadas pela república francesa. Além disso, vivem sob marginalização social e econômica, junto de outras comunidades africanas e magrebinas na Europa.

Tensões reemergiram após a vitória da seleção de futebol da França sobre a Inglaterra, também pelas oitavas de final da Copa do Mundo. Torcedores marroquinos em Paris festejaram a vitória contra Portugal no dia anterior. As discussões sobre o futebol se acaloraram e houve confronto entre as torcidas de ambas as seleções semifinalistas. Nas redes sociais, nacionalistas franceses, alicerçados sobre um discurso de ultradireita, acusam os franco-marroquinos de “deslealdade” por seu entusiasmo com a equipe africana. Alguns franceses evocam a Batalha de Poitiers como motivo para que os atuais campeões do mundo vençam o Marrocos. Tais apelos, não obstante, parecem demonstrar apenas que a Europa é incapaz de superar seu passado colonial.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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