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Por que o Catar enfrenta uma campanha contra a Copa do Mundo?

Estádio Al-Bayt, preparado para a Copa do Mundo FIFA, em Al Khor, no Catar, 2 de novembro de 2022 [Mohammed Dabbous/Agência Anadolu]

Desde 2010, quando o Catar foi escolhido para sediar a Copa do Mundo FIFA de 2022, o país do Golfo enfrentou forte oposição no Ocidente, junto de seus vizinhos árabes, ongs internacionais e mesmo equipes de futebol. A campanha é concentrada em denúncias de violações de direitos humanos por parte do pequeno estado árabe.

Como primeiro país árabe e islâmico a sediar o popular torneio internacional de futebol, o Catar fez um esforço monumental para deixar tudo pronto para a Copa do Mundo – com início em 20 de novembro, na próxima semana. Novos estádios e redes de infraestrutura foram construídos para receber dezenas de milhares de torcedores de todo o mundo.

Embora muitos árabes e muçulmanos tenham manifestado entusiasmo pela realização da Copa do Mundo no Catar, outros foram pegos nas campanhas de oposição. Nações árabes ignoraram convenientemente seus fracassos e pecados no quesito de direitos humanos, para fazer coro às críticas destinadas contra Doha.

A Copa do Mundo no Catar e seus problemas [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

O âmago da campanha consiste nas denúncias de maus-tratos contra trabalhadores imigrantes. A pauta conquistou manchetes desde a confirmação do país-sede pela Federação Internacional de Futebol (FIFA), reforçada por indícios de corrupção e propina no processo eletivo. Nada disso é novidade. Em 2012, o então vice-presidente da FIFA, Jack Warner, vazou um e-mail afirmando que o governo catariano basicamente comprou o torneio.

O ex-procurador americano Michael Garcia e o juiz alemão Hans-Joachim Eckert participaram, a seguir, da investigação de um ano promovida pela própria FIFA sobre as alegações de corrupção referentes às Copas do Mundo da Rússia e do Catar, em 2018 e 2022, respectivamente. Eckert divulgou um resumo do relatório em 2014, absolvendo ambos os países.

Após uma série de acusações de corrupção contra Warner – cujo jornal britânico The Telegraph comprometeu como receptor de cerca de US$2 milhões de oficiais catarianos –, ele próprio foi banido de quaisquer atividades futebolísticas por toda a vida.

Em 27 de junho de 2017, a FIFA publicou o relatório completo sobre as investigações referentes aos campeonatos de 2018 e 2022. A entidade desportiva insistiu que o processo de votação foi impecável e que não havia evidência material de que os comitês relevantes obtiveram propina para congratular ambos os países com a Copa do Mundo.

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E quanto aos imigrantes? Em 2013, o jornal The Guardian relatou descobertas de um inquérito de que trabalhadores estrangeiros empregados nas obras dos estádios catarianos – sobretudo, cidadãos nepaleses – foram explorados em situação análoga à escravidão. Pouco depois, a ong Anistia Internacional corroborou as denúncias.

Em 2020, o Human Rights Watch (HRW) reportou violações frequentes de direitos do trabalho, relacionadas a alta carga horária e baixa remuneração, com condições precarizadas sob o clima escaldante. Em fevereiro de 2021, o The Guardian reportou que 6.500 cidadãos de países como Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram desde 2010, quando o Catar recebeu o direito de sediar a Copa do Mundo.

A sequência dos fatos me sugere uma campanha contra o Catar da qual o The Guardian é parte. A economia catariana depende de seus trabalhadores imigrantes, que compõem quase 95% do total da mão-de-obra. O mesmo é verdade para a maioria dos estados do Golfo, entre os quais, Emirados Árabes Unidos, que atraem turistas e atletas estrangeiros para eventos luxuosos nos períodos de férias. Podemos assegurar que cidadãos locais não sujaram as mãos para construir tais instalações.

Devemos questionar, portanto, por qual razão os holofotes se voltaram exclusivamente a Doha desde que se tornou sede da Copa do Mundo. Por que não antes? Por que não outros países do Golfo? Aeroportos, hotéis, resorts, arranha-céus e estradas – que tornaram o Golfo tão sedutor a turistas e negócios de todo o mundo – foram todos erguidos por operários estrangeiros. Não há estado no Golfo inocente neste quesito, incluindo o Catar. Contudo, sob tamanha pressão, o governo catariano foi o único que fez esforços para aprimorar as condições de trabalho após as recomendações de grupos de direitos humanos e especialistas. Logo, parece excessivo rotular o país como violador em série de princípios humanitários.

O Catar não negou seus erros do passado. Entretanto, estatísticas mostram que a mortalidade é proporcional à mão-de-obra estrangeira, incluindo em categorias profissionais especializadas. O governo afirma que apenas 20% dos imigrantes são empregados na construção civil.

“Toda morte é uma tragédia”, insistiu Doha, “e não poupamos esforços para evitar toda morte que ocorre em nosso país”. O governo argumentou ainda que todos os cidadãos – incluindo os imigrantes – têm acesso a cuidados médicos de primeira linha e que houve uma queda regular nas taxas de mortalidade entre “trabalhadores convidados” na década passada, sobretudo após reformas nos sistemas de trabalho, segurança e saúde. Os índices divulgados pelo The Guardian também foram refutados por especialistas catarianos e outros, incluindo Marc Owen Jones, que escreveu a obra crítica Digital Authoritarianism in the Middle East.

“Nos últimos anos, o Catar introduziu uma série de reformas de larga escala, incluindo emendas legais para ceder aos trabalhadores liberdade de movimento e maior mobilidade empregatícia”, reconheceu Steve Cockburn, chefe de Justiça Socioeconômica da Anistia Internacional. “O Catar também prometeu melhores salários e maior acesso à justiça em casos de abuso”. Em outubro de 2019, um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) enalteceu as medidas adotadas pelo comitê organizador do torneio.

As evidências, não obstante, pouco convenceram seus detratores. A FIFA sentiu-se compelida a escrever às seleções nacionais classificadas para a Copa do Mundo para que “concentrem-se no futebol”. O esporte, alegou a entidade internacional, não deve ser arrastado a disputas políticas ou ideológicas tampouco servir de plataforma a “lições de moral”.

Creio que a campanha contra o Catar não se relaciona tanto a corrupção ou direitos humanos, mas sim ao racismo. A discriminação é incipiente, por exemplo, nos comentários da Ministra do Interior da Alemanha, Nancy Faeser: “É preciso critério para que torneios como esse não sejam concedidos a tais estados”.

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Caso o problema fosse referente a direitos humanos e civis, os críticos também denunciariam o Estado de Israel, que infringe cotidianamente os direitos do povo palestino há mais de 70 anos. O estado ocupante é notório por seus crimes de guerra.

A Anistia Internacional, o HRW e a ong israelense B’Tselem todos confirmaram que Israel exerce crime de apartheid contra os cidadãos nativos da Palestina histórica. Apartheid equivale a crime de lesa-humanidade. Talvez a ministra alemã deveria levar isso em consideração e explicar qual razão tem seu país ao manter um “relacionamento especial” com o regime sionista, a despeito das violações flagrantes da lei internacional.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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