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Tentaram enterrá-lo vivo: Lula, o ‘fenômeno’, torna-se presidente pela terceira vez

Charge do Luis Inácio Lula da Silva [Alaa Alagta/árabi 21]

Luiz Inácio Lula da Silva cresceu em uma família humilde de retirantes nordestinos, cuja pobreza o levou a trabalhar como engraxate ainda menino. Apesar das condições adversas, Lula tornou-se uma liderança política e enfim chegou ao Palácio do Planalto como Presidente da República, na capital Brasília. Após as eleições deste ano, Lula retorna ao governo com grande catarse pela terceira vez.

Data do primeiro retrato de Lula, tirado aos 3 anos, junto com a irmã Maria Baixinha, dois anos mais velha, num estúdio em Garanhuns. A roupa e as sandálias. [Instituto Lula]

Lula nasceu em 27 de outubro de 1945, em Caetés, no estado de Pernambuco, o sétimo dentre oito irmãos. Sua infância e seus anos de formação foram marcados pela timidez e pelo trabalho extenuante. Lula foi mascate, engraxate, entregador de uma lavanderia e auxiliar de escritório. Deixou a escola ainda criança para ajudar a família. Aos 19 anos, já como metalúrgico, perdeu o mindinho da mão esquerda em um acidente de trabalho.

Foi um jovem comum, apaixonado por futebol e sem grande interesse na atuação política. Não obstante, o ano de 1969 mudou sua vida, quando Lula se envolveu com a militância sindical. Em 1975, foi eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema – entidade trabalhista com cerca de cem mil filiados. Lula exerceu um papel crucial no processo de transformação das atividades sindicais no Brasil, deixando a órbita de sucessivos governos, rumo a uma maior independência. Então operário, Lula liderou grandes greves dos profissionais da indústria do estado de São Paulo – algo particularmente notável sob a ditadura militar.

Em 1980, o regime prendeu Lula junto de outros dirigentes por cerca de um mês. Foi então que Luiz Inácio Lula da Silva concluiu sua transição para a vida política, como cofundador do Partido dos Trabalhadores (PT). A princípio, bastante voltado à esquerda socialista, sucessivos governos levaram o partido a posições político-econômicas mais moderadas, em favor da estabilidade.

A prisão preventiva de Lula é revogada e ele pode voltar para São Bernardo, onde é recebido com festa. Sua primeira atitude ao chegar em casa é abrir uma gaiola e libertar um passarinho. [Instituto Lula]

A popularidade de Lula, no entanto, não parou de crescer. Sua imagem manteve-se vinculada à luta dos mais pobres por uma vida digna e pelo engajamento popular na vida pública.

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Em meados da década de 1980, Lula foi um dos protagonistas do movimento que reivindicava o retorno da democracia no Brasil e um dos principais candidatos nas primeiras eleições livres do país após a ditadura, em 1989, quando perdeu no segundo turno para Fernando Collor de Melo. Lula voltou a concorrer em 1994 e 1998, desta vez derrotado por Fernando Henrique Cardoso – que declarou apoio ao petista, em favor da luta democrática, no pleito de 2022. Em 2002, Lula foi finalmente eleito como presidente do país.

Durante seu mandato, o Brasil viveu um período de crescimento econômico impulsionado pelo boom das commodities; milhões de pessoas saíram da pobreza e ascenderam à classe média. O governo injetou bilhões de dólares em programas sociais para combater a desigualdade social que assola historicamente o Brasil. Lula elevou o salário-mínimo acima da inflação e ampliou os programas sociais promovidos pelo Estado em favor dos mais pobres. Seu governo criou o Bolsa Família, programa de distribuição de renda que beneficiou cerca de 44 milhões de pessoas no decorrer dos anos.

Lula escolhe seu retrato oficial. Na foto, aparece sorridente, com uma bandeira nacional ao fundo, e sem a faixa presidencial.[Instituto Lula]

O governo Lula, no entanto, não ficou livre de críticas, em particular sobre projetos faraônicos a grandes eventos e escândalos de corrupção difundidos pela imprensa tradicional. Aliados foram alvejados e comprometidos pelo esquema que ficou conhecido como Mensalão, em 2005, que envolvia acusações de compra de votos no Congresso Nacional e que pôr risco a sua reeleição. Todavia, Lula venceu o pleito presidencial no ano seguinte, foi reconduzido ao cargo e elegeu e reelegeu sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2010 e 2014.

O governo Dilma foi também assolado por alegações de corrupção e abalado irreparavelmente pelo chamado Petrolão, que envolvia subornos para concessão de contratos da estatal Petrobrás com empreiteiras brasileiras, considerado o maior escândalo de corrupção da América Latina.

Ao longo do processo, Lula foi acusado de receber serviços e favores de construtoras privadas e condenado à prisão em 2018 – às vésperas de uma nova eleição –, por corrupção e lavagem de dinheiro, sob processo conduzido pelo então juiz e atual senador eleito Sérgio Moro. De fato, a sentença impediu Lula de concorrer às eleições presidenciais contra o incumbente de extrema-direita Jair Bolsonaro, muito embora o veterano petista liderasse as pesquisas de opinião após o impeachment de Dilma Rousseff.

Manifestação contra a prisão de Lula [Ricardo Cifuentes/wikimedia]

O veredito contra Lula foi anulado mais tarde pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e as ações de Moro durante o processo foram repudiadas com suspeita de parcialidade e motivação política. Moro se tornou Ministro da Justiça de Bolsonaro, rompeu com seu governo e voltou a apoiá-lo nas eleições de 2022. Lula passou 19 meses em custódia; contudo, foi libertado e recebido como herói por parte da população.

Lula, ao sair da prisão em Curitiba. Foto de Gibran Mendes / CUT Paraná

As eleições seguintes mostraram que a maioria dos brasileiros não perdeu a confiança em Lula, apesar da dura campanha de difamação à qual foi exposto. Em 30 de outubro de 2022, o então candidato da frente ampla democrática, aos 77 anos, venceu o disputado segundo turno contra a máquina do estado encabeçada por Jair Bolsonaro.

Lula retornou à Presidência do Brasil, cargo que deteve por dois mandatos consecutivos, entre 2003 e 2010, e consolidou sua figura histórica como um dos líderes mais influentes e populares do maior país da América Latina.

No decorrer de seu mandato, universidades de todo o mundo concederam a Lula – o jovem que trabalhou como engraxate e chegou à presidência – diversos títulos de doutorado honorário. O então Presidente dos Estados Unidos Barack Obama chegou a descrevê-lo como o político mais popular do mundo, ao descrevê-lo calorosamente como “o cara”.

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Lula costuma reafirmar seu passado árduo em seus discursos, algo que incita alerta entre a elite brasileira, mas ressoa intimamente com a experiência dos eleitores mais pobres.

Na política externa, Lula é visto como defensor da causa palestina, em franca oposição ao atual presidente: um dos mais ferrenhos defensores da ocupação israelense no cenário internacional contemporâneo. Michelle Bolsonaro, primeira-dama do incumbente, compareceu às urnas com uma camiseta estampada com a bandeira de Israel.

Em 2010, o governo Lula reconheceu oficialmente o Estado da Palestina sob fronteiras de 1967, em nota publicada pelo Ministério de Relações Exteriores, na qual reafirmou que a medida ia de encontro com os princípios e valores defendidos por seu mandato. Em uma série de ocasiões, o líder popular brasileiro foi fotografado com o tradicional lenço palestino (keffiyeh), como forma de apoio simbólico e expressivo. Lula inaugurou a Rua Brasil em Ramallah, durante uma visita à Cisjordânia ocupada, em 2010.

Ex- Presidente Lula, dona Marisa e a prefeita Janet Mikhail durante inauguração da Rua Brasil em Ramalá, Cisjordânia em 17/03/2010 [Foto: Ricardo Stuckert ]

A má gestão da pandemia de covid-19 pelo governo Bolsonaro e a subsequente miséria parece ter exaurido todo o Brasil. Mais de 680 mil pessoas morreram sob o negacionismo de Bolsonaro. Suas políticas levaram o país a uma enorme recessão e devolveram milhões de pessoas à linha da pobreza, além de resultar em desperdício fiscal, crimes de ódio e posicionamentos públicos de caráter reacionário e perturbador.

John French, professor de história da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, autor de uma das biografias de Lula, enaltece o presidente eleito e sua história como “emocionante fenômeno político e eleitoral” e adverte que o mundo lhe deve atenção.

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Todavia, o caminho para o terceiro mandato do “fenômeno” Lula parece repleto de obstáculos. Bolsonaro – versão brasileira do histriônico ex-presidente americano Donald Trump –, junto de aliados ultraconservadores, planejam obstruir seu trabalho. Lula, no entanto, tem desenvoltura política para ir em frente, com chances materiais de contornar a polarização sem precedentes e recuperar a desgovernada economia nacional.

Em seu discurso de posse, diante de uma multidão na Avenida Paulista – um dos mais célebres endereços de São Paulo –, Lula reiterou: “Foi uma campanha bastante difícil. Não foi Lula contra Bolsonaro; foi uma campanha por democracia contra a barbárie”.

[Sinergia SP CUT]

Lula prometeu tornar o Brasil novamente “um país feliz e sem divisões”.

Sua história parece retratar uma jornada cinematográfica. Em seu discurso de vitória, reafirmou o presidente eleito: “Tentaram me enterrar vivo. Mas aqui estou!”.

Este artigo foi publicado originalmente em árabe pela Arabi21

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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