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Ricardo Kertzman, os ataques aos palestinos e sua solidariedade seletiva

Assim como na Palestina, povos originários nordestinos sofrem roubo de terras. Nesta foto, a Comissão de moradores do Quilombo Kingoma, em Lauro de Freitas, resistia à desapropriação pela Via Metropolitana, em plena pandemia, em 2020. [Reprodução/ANF]

“Os palestinos são os nordestinos do Oriente Médio.” A frase foi dita há alguns anos por uma palestina que vive no Brasil. Guardadas as diferenças, ela fazia a analogia em relação ao racismo enfrentado por ambos. Há alguns dias, o sionista Ricardo Kertzman, colunista do jornal Estado de Minas, revista IstoÉ e portal UAI, gravou um vídeo em defesa dos nordestinos, em meio à onda de violentos ataques bolsonaristas pós-eleições, inclusive com conteúdo nazista, o que seguramente deve ser rechaçado e condenado com todas as forças. Em tom de alerta e indignação, ele associa no vídeo as perseguições e ataques a nordestinos a métodos adotados pela barbárie nazista, cuja escalada culminou no horrendo crime contra a humanidade do Holocausto, do qual foram vítimas seus antepassados. Quanto ao conteúdo do vídeo, não há o que contestar. O problema é que sua solidariedade é seletiva: aos “nordestinos do Oriente Médio” – os palestinos –, o que sobram são nada menos do que ataques à legítima resistência contra a criminosa ocupação israelense e fake news.

A última ofensiva de Kertzman se deu encoberta por uma preocupação com as expressões do racismo e violência bolsonaristas nas escolas. Seu artigo sobre o tema, intitulado “Pais em surto estão criando filhos horríveis: tornarão o Brasil inabitável”, publicado nos vários veículos para os quais escreve em 6 de novembro, veio acompanhado do seguinte olho, para destacar o que afirmaria intencionalmente de contrabando no texto: “Nas manifestações dos últimos dias, assistimos a cenas inacreditáveis de crianças sendo utilizadas, ao modo dos terroristas palestinos, como ‘escudos humanos’.”

À la bolsonarismo

Kertzman, como sionista que é, tem se esmerado em distorcer a verdade em relação aos palestinos. Não é difícil encontrar artigos seus justificando o massacre em Gaza e culpando as vítimas, numa inversão que lembra o que temos visto hoje no Brasil com o bolsonarismo. Exemplo é um dos seus textos intitulado “Entenda por que tantas mortes em Gaza, e poucas em Israel”, publicado no dia 15 de maio de 2021 – data da Nakba, a catástrofe palestina com a formação do Estado de Israel mediante limpeza étnica planejada, que culminou na expulsão de 800 mil palestinos de suas terras e destruição de mais de 500 aldeias. Naquele maio de 2021, ocorria mais uma ofensiva sionista na estreita faixa, que durou 11 dias e matou cerca de 250 palestinos, inclusive mulheres e crianças.

No artigo emblemático da distorção histórica própria da propaganda sionista, Kertzman defende que Israel nunca ataca, sempre responde a uma “horda de selvagens”. Diz, com todas as letras, que Israel “nunca atacou qualquer povo ou país”. Talvez porque para ele, como consideravam as lideranças sionistas que arquitetaram a Nakba de 1948, os palestinos sejam um não povo, típica desumanização para a limpeza étnica. Basta um olhar sobre a Palestina ocupada e sobre a história para desmontar essa afirmação, que não sobrevive a qualquer análise séria.

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Na sua opinião, nos “conflitos” com Gaza, Israel não tem tantas vítimas porque, como única democracia do Oriente Médio, esmera-se em proteger seu povo, enquanto os que chama de “terroristas palestinos” utilizam “escudos humanos”.

Silenciamento da resistência palestina [Latuff]

Como alguém que nega a ocupação não apenas a partir da Nakba de 1948, mas inclusive dos territórios de 1967 – Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental –, o que é reconhecido até pela Organização das Nações Unidas (ONU), Kertzman denomina como “terrorista” a resistência palestina à terrível condição a que seu povo está submetido. Direito à resistência é assegurado pela lei internacional em meio à ocupação de suas terras e ao regime institucionalizado de apartheid reconhecido até mesmo pela Anistia Internacional, além das organizações internacional Human Rights Watch e israelense B´Tselem.

Quanto à mentirosa acusação de uso de “escudos humanos” para justificar as mortes, Kertzman não ignora apenas a história de uma colonização que já dura mais de 74 anos, mas a geografia local. Gaza é uma das áreas mais densamente povoadas do mundo: são 2 milhões de habitantes espremidos em 360km2, a maioria oriunda de famílias deslocadas internamente por terem sido expulsas violentamente de suas terras. Enfrentam um cerco israelense criminoso há 15 anos. Uma bomba lançada num local como esse não tem outro destino que não limpeza étnica. Não há outro resultado senão massacre. São muitos os relatos documentados de mísseis israelenses lançados sobre casas, escolas, hospitais. Não são “escudos humanos” como apresenta Kertzman; são alvos.

No seu argumento de “única democracia da região”, Kertzman também recorre a instrumentos típicos da propaganda oficial sionista, entre os quais o pinkwashing (lavar a imagem de Israel encobrindo, sob a fachada de paraíso LGBTI, seus crimes contra a humanidade), afirmando, como no texto sobre Gaza, que no “Estado judeu, todos são realmente iguais perante as leis”. As mais de 65 leis racistas documentadas pelo Adalah – The Legal Center for Arab Minority Rights in Israel contra os palestinos que vivem nas áreas ocupadas em 1948 – 1,9 milhão – ou em 1967 são suficientes para desmentir a suposta igualdade. Mas também todo o aparato que inclui muro do apartheid e checkpoints expõe que os palestinos enfrentam cotidianamente a violação de todos os direitos humanos fundamentais.

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Por fim, a pérola de Kertzman: “É fato! A questão nunca foi, não é e nem nunca será terra ou pátria. Na interpretação dessa gente imunda, Alá lhes obriga a ‘atirar os judeus no mar’.” Documentos da limpeza étnica executada em 1948 pelas gangues paramilitares sionistas fortemente armadas contra a população árabe nativa absolutamente vulnerável mostram a falácia dessa contrainformação: na verdade palestinos é que foram empurrados ao mar, em locais como Akka por exemplo.

Sim, a questão é a luta por libertação nacional, garantindo-se o direito inalienável e inegociável de retorno dos milhões de refugiados às suas terras. Pela autodeterminação de um povo que existe porque resiste a um estado terrorista. Uma gente digna, solidária e generosa que Kertzman considera “imunda”. Nas palavras da palestina que vive no Brasil, os “nordestinos do Oriente Médio”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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