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‘Medo deve ser motivação para ir adiante’, afirma primeira mulher árabe a escalar o K2

A libanesa Nelly Attar foi motivada pela memória de seu pai para a escalar o K2, segunda montanha mais alta do mundo, considerada uma das mais perigosas

Em 20 de junho, Nelly Attar e um número recorde de mulheres partiu em missão de escalar o K2, segunda montanha mais alta do mundo, considerada uma das mais perigosas.

Em 22 de julho, a cidadã libanesa de 32 anos conquistou o feito de ser primeira mulher árabe a chegar ao topo da montanha de 8.611 metros de altura, na região de Gilguite-Baltistão, no norte do Paquistão, ao hastear ali uma bandeira de seu país. Para Nelly, trata-se da culminação de dez anos de trabalho.

“Primeiro e mais importante”, comentou Nelly, “estou muito feliz em ter subido e descido da montanha junto de minha equipe, com segurança. Esta era a prioridade. Jamais poderia completar essa jornada sem meu extraordinário círculo de apoio”.

Nelly descreve o K2 como um lugar solitário, mas reafirmou: “Tudo se deu graças às bênçãos e ao apoio constante de minha família. Meu treinador exerceu um enorme papel na minha performance, ao assegurar que eu estivesse pronta para a escalada. Minha comunidade online foi parte de todo o processo e escalou ao meu lado, no mundo virtual. Minha equipe de escalada e minha equipe de apoio e fixação das cordas tornou toda essa jornada possível e mais segura. Quero agradecer meus companheiros de treinamento. É claro, agradeço a Allah”.

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O Paquistão é lar de cinco das 14 montanhas do mundo com mais de oito mil metros de altura. Escalar suas cordilheiras é a maior ambição de qualquer alpinista.

“A ideia de escalar o K2 me surgiu enquanto eu descia do Monte Everest e pensava no que fazer a seguir”, recordou Nelly. No entanto, especialistas relacionados advertiram a equipe que o K2 seria uma viagem muito mais traiçoeira, com uma demanda técnica e empírica muito maior do que a célebre maior montanha do mundo. O K2 tem somente 240 metros a menos do que o Everest, mas os perigos que impõem aos alpinistas lhe consagraram a alcunha de “montanha selvagem”. Somente neste ano, sua árdua escalada matou ao menos três pessoas.

Nelly não deixou se abalar e embarcou em seu duro processo em direção à escalada. Dentre os esforços: treinamento físico e psicológico, visualização, exposição ao frio e busca por patrocínio. Não obstante, suas maiores preocupações eram justamente o ar rarefeito e as temperaturas aterradoras de até -40° C. A exposição contínua a altitudes extremas é profundamente perturbadora ao organismo humano. Caso alguém não treine de maneira adequada e não consiga se mover, seu corpo sofrerá com os efeitos acumulados dos fatores de estresse, que podem levar a edema pulmonar e cerebral – ou seja, acúmulo de fluidos nos tecidos – e até mesmo a morte.

Nascida e criada na Arábia Saudita, de raízes libanesas, a mudança no clima foi um desafio considerável a Nelly. “Morei boa parte da vida em um deserto no qual a temperatura frequentemente passava de quarenta graus. Devo dizer que não lido muito bem com o frio”.

“Para me preparar, passei por um vasto treinamento de exposição ao frio. Uma parte considerável de meu circuito semanal de treinamento demandava entrar e sair diversas vezes de uma banheira de gelo. Era algo que eu detestava e achava bastante desconfortável. Entretanto, com a prática, tornou-se um de meus pontos fortes e aprendi a superar o estresse e a resposta imediata ao medo – tanto física quanto psicologicamente”. Uma semana antes de embarcar na jornada, Nelly conseguiu permanecer em sua banheira de gelo, sem sequer pestanejar, por vinte minutos consecutivos.

Fundadora do Move Studio – primeiro estúdio de dança da Arábia Saudita –, em 2020, Nelly foi reconhecida como a pessoa mais influente da Muslim Women Network, um ano após a fundação Sports 360 designá-la a principal influencer fitness da região do Golfo. Nelly corrobora as dificuldades de criar seu estúdio de dança, em um ambiente particularmente hostil; entretanto, crê que superar os desafios com disciplina representa uma valiosa lição a todos e todas, de modo que o medo possa ser usado como motivação para ir adiante.

Esta mentalidade ajudou Nelly a esculpir seu corpo para adaptar-se melhor às condições extremas de sua escalada.

“Uma das coisas mais difíceis nessas viagens é o processo de aclimatização, porque leva tempo, paciência e é diferente para cada escalada. Para fazer algum progresso em montanhas de altitude extrema é preciso subir e descer várias vezes – muitas vezes, em terrenos perigosos”, explicou Nelly. “É comum se sentir doente durante o processo de rotação porque nossa imunidade fica comprometida e é um desafio tremendo se recuperar ali. Portanto, busquei treinar extensivamente a resistência de meu organismo, assim como minha força e capacidade cardiorrespiratória para realizar a escalada”.

Semanas antes de subir o K2, seus dias eram repletos de horas e horas de treinamento – com certa frequência, mais de 30 horas por semana. Apesar da exaustão, Nelly manteve seu treinamento e respeitou seu jejum durante o mês do Ramadã, sagrado para os muçulmanos.

“Sofrer agora, subir depois”, tornou-se seu lema.

Diferente das montanhas no Nepal, onde helicópteros privados conseguem voar para resgatar alpinistas em condição de emergência, há pouquíssima rede de segurança com acesso à segunda montanha mais alta do mundo. “É extremamente difícil chegar qualquer socorro. Após deixar o acampamento-base, você está por conta própria. Não é nada como um jogo de videogame, em que você desvia das rochas no caminho e, caso aconteça alguma coisa, você tem mais outra chance, alguém que possa vir e te buscar”.

Houve riscos consideráveis na escalada de Nelly. Um guia sangrou por três dias após ser atingido por uma pedra e ter sua perna perfurada por um acessório. “O resgate levou três dias para chegar por causa das nuvens e do péssimo clima. Foi difícil para os helicópteros nos alcançarem e ele sangrava profusamente. Mesmo no acampamento-base, caso ocorra alguma coisa, a ajuda pode demorar dois a três dias”.

Para Nelly, chegar ao topo do K2 foi a conclusão emocional e apropriada de uma jornada pessoal que contemplou por anos – uma jornada em memória de seu pai.

“Ele teria tanto orgulho da resiliência e da saúde mental que adquiri através de cada lição, cada fracasso e cada negativa, apesar do luto”, destacou Nelly. “Jamais deixei de ir adiante para chegar ao topo. Eu sou filha de Mohamed. Eu consigo, pai. Nós conseguimos”. De fato, seu pai a levou para a primeira escalada quando Nelly era ainda adolescente. “Ele é minha inspiração para sempre ir adiante. Ele sempre me dizia: somente aqueles que arriscam vão longe e descobrem quão longe conseguem ir. Nelly, vá em frente. Jamais desista”.

Sua morte é ainda recente, apenas 18 meses atrás.

“Não sabia se conseguiria fazer isso, mas havia uma única maneira de saber – isto é, tentar, assumir o risco. Se Deus quiser, meu pai está orgulhoso de mim”.

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