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A permanente crise da América Latina: agora é a vez da Argentina e do Panamá

Protestos no Panamá [Esquerda Diário]

Ao contrário do que costumamos publicar neste portal, este artigo não será nem de análise de conjuntura, nem histórico. Dadas as condições de permanência em nossa América Latina, nos cabe ver a dependência estruturante do século XXI e, modestamente, apontar caminhos para sair dessas armadilhas.

Comecemos por nós mesmos. Esta publicação se dedica aos temas do Oriente Médio, do Mundo Árabe e dos países de maioria islâmica. Nos países latino-americanos, em maior ou menor proporção, havendo colônias dos distintos territórios do Bilad al-Sham, todas e todos nós descendentes de libaneses, sírios  e palestinos, somos socialmente brancos e podemos estar aculturados e, portanto, ocidentalizados. Logo, carregamos na interna da colônia uma versão imigrante do “criollismo da era da independência”.

Diante da ordem pós-colonial, as sociedades concretas recém libertadas do jugo espanhol e português promoveram como “brancos do Novo Mundo” as elites oligárquicas donas de terra. Essa formação de riquezas se deu com o roubo dos povos originários na forma de acumulação selvagem, sendo a selvageria europeia diante da espoliação da população nativa. Qualquer semelhança com o Estado artificial sionista criado por europeus na Cananeia dos Filisteus não é nenhuma coincidência.

Assim, nossos setores mais ativos, tomando como exemplo a própria Argentina, geraram vergonhosos traidores como Carlos Saul Menem e Alfredo Yabrán. A terra de María Eva Duarte (Evita) também nos deu shaheeds de dois mundos como Envar El-Kadri, fedayí, nos cedros e na pampa. Representando a segunda geração militante, tivemos a legendária família Haidar (Ricardo, Mirta e Adriana), incorporando a alma de leoas na forma de jaguares em plena rebelião Montonera.

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Infelizmente, a passagem de gerações nos fez de parte da classe trabalhadora de origem imigrante para uma parcela da elite eurocêntrica, lócus sociológico onde também se encontram outras colônias não europeias, como a nipônica. É essa a constância da formação social concreta dos países latino-americanos. Em maior ou menor escala, a classe dominante se mescla com a elite dirigente, se subordinam ao controle do sistema financeiro (nacional e transnacional) e com alguns setores estamentais (como os militares de alta patente), além de se comportarem como oligarcas latifundiários ou, quando muito, feitores dos desmandos especulativos.

A desindustrialização gera mais dependência externa

Evidente que cada país moderno na América Latina tem sua própria conformação e os subsistemas regionais – Cone Sul, Zona Andina, Centro América, Caribe e Antilhas, México, Brasil, Amazônia Sul-Americana – falam muito das correlações de força e a presença ou não de tropas estadunidenses (caso colombiano). Ainda com o subdesenvolvimento diversificado, alguns traços são comuns.

Nossas moedas perdem valor muito rapidamente, e uma parcela dessa responsabilidade está no fato de que o dinheiro local pode ser substituído como reserva de valor e unidade contábil. Assim, a dolarização interna deforma preços e ataca o valor real das reservas nacionais. Uma parcela dos produtores de commodities agrícolas estocam para especulação e outra parcela dessa produção gera termos de troca desvantajosos para o país.

Vejamos o exemplo da Argentina. Até o fechamento deste artigo, o governo Alberto Hernández estava montando um pacote para controlar a especulação interna e, ao menos, garantir tanto o abastecimento de produtos essenciais como o básico de ingressos para a maioria ter renda de sobrevivência. De sua parte, a oligarquia e o conjunto dos grupos de comunicação de envergadura nacional (exceção aos canais esportivos, públicos e a rede C5N) fica pregando que a “intervenção do Estado na economia” vai gerar ainda mais crise.

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Os números são aterrorizantes. Com o investimento de 0,3% do PIB argentino acaba a extrema pobreza em seis meses. A produção agrícola vem estocando um valor total de 20 bilhões de dólares, a economia do contrabando ultrapassa 2 bilhões de USD e a perda de riqueza do país ultrapassa os USD 54 bilhões. Tal como no Brasil, o Tesouro financia as safras, as vendas são dolarizadas, é baixa a tributação e parte do valor pago pela Fazenda Nacional se transforma em transferência de renda transnacional, devido ao pagamento de royalties para transgênicos e taxas de importação para fertilizantes e demais insumos.

Parece uma volta no tempo, mas em condições piores. Quando da grande depressão do século XX, quase todos os países latino-americanos e com especial ênfase de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, fizeram uma opção. Industrializar para substituir importações. Uma das maneiras de sustentar essa virada estratégica era a emissão e endividamento do Estado. Outra era a conversão de excedentes. Fechar no azul com exportações primárias e investir pesado em indústrias e no setor de desenvolvimento e pesquisa. Para este segundo operar, é preciso uma massa de juventude estudantil, da pré-escola à pós-graduação, para garantir uma sociedade civil com vocação científica e laica.

Com a primeira década perdida da dívida (anos 1980) e a segunda ruína (anos 1990), a guinada neoliberal pós ditaduras seguia o péssimo exemplo do Chile. Quando o tirano Augusto Pinochet encabeçou um golpe de Estado, em 11 de setembro de 1973, a massa trabalhadora chilena era composta por mais de 48% de emprego industrial. Em 1990, quando o operador da CIA deixa o Palacio de La Moneda, a terra de Lautaro seguia mineral exportadora, mas sem indústrias quase. Na Argentina passou o mesmo, e esta tendência segue no Continente.

Com a formação de preços agrícolas baseados em especulação estrangeira, a exemplo do que ocorre com o petróleo e o absurdo índice Brent, temos o seguinte paradoxo. O Brasil, por exemplo, produz alimentos para quase 1 bilhão de seres humanos, mas tem mais de 125 milhões com insegurança alimentar e 33 milhões na extrema pobreza passando fome. A Argentina produz para mais de 600 milhões, mas ao menos 11 milhões vivem abaixo da linha de pobreza. Na prática, a agricultura de intensidade é transnacional, e o entreguismo ganha força subsidiando o espólio nacional.

Outro problema grave é o abandono da própria moeda e o emprego do dólar como sistema de trocas e reserva de valor, ainda que no caso panamenho, conviva com o balboa como unidade contábil. O Panamá poderia coordenar o comércio Interamericano, mas depende de tributar a navegação pelo canal e incentiva a especulação imobiliária sem dó. Segue com o drama de condenar à fome a população periférica urbana (na Cidade do Panamá e em Colón, por exemplo), assim como faz com a população indígena, herdeira de Victoriano Lorenzo e da guerra territorial de 1925 (a Revolução Cuna).

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As condições da revolta são permanentes em ambos os países: pobreza, inflação, fome, endividamento externo, economia dolarizada, repressão sistêmica, especulação de terras ancestrais e a sensação permanente de que o governo nacional ou é um gestor de privilégios e dependência externa (caso panamenho), ou não arrisca o necessário para ao menos garantir as condições básicas de vida (atual caso argentino).

O país de Rodolfo Walsh é um exemplo gritante: 114 mil argentinos têm mais de um milhão de USD e subordinam internamente a mais de 40 milhões. A disparada do dólar paralelo esvazia as reservas internacionais e faz a alegria macabra do FMI, que exige o cumprimento do absurdo acordo de endividamento assinado por Mauricio Macri no governo anterior. Tal como no Panamá, apenas o movimento social organizado e em luta consegue impor as condições ao governo nacional e colocar contra a parede os oligarcas e traidores de seu povo.

Esse texto demonstra o óbvio. Quando a teoria parece um panfleto, é porque a transformação concreta da realidade é urgente.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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