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A rebelião indígena e popular no Equador

Protestos em Quito contra o governo de Guillermo Lasso, em outubro de 2021 [Prensa Latina]

Em 30 de junho adentrava a noite em Quito quando o ainda presidente Guillermo Lasso assinava a Ata de Paz, resultado de 18 dias de protestos. Três dias antes, segundo a mídia conservadora, o país estava quase entrando em colapso, a julgar pela interrupção de sistemas de transportes e alguns setores estratégicos.

Na segunda-feira, 27 de junho do corrente ano, a produção total de petróleo do Equador estava em 234.496 barris por dia (bpd), menos da metade da produção de cerca de 520.000 bpd vista antes dos protestos. Um dos fatores fundamentais da jornada de “Paro Nacional” iniciada em 13 de junho, convocada majoritariamente pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), visava à mudança do modelo mineral extrativista exportador. A origem deste processo veio da resposta à crise social dada pelo movimento popular liderado pelas nacionalidades dos povos originários.

Na noite de domingo, 12 de junho, a partir da centralidade da Confederação, esta e outras quatro organizações de maioria indígena convocaram a unidade para uma greve geral que se iniciaria no dia seguinte, 13 de junho. A meta é o cumprimento dos dez pontos de reivindicação imediata, a serem atendidos pelo governo do banqueiro conservador.

1 – Redução e não mais aumento do preço do combustível. Congelar o diesel em US$ 1,50 e gasolina extra e ecopaís em US$ 2,10, revogar os decretos 1158, 1183, 1054, e entrar no processo de direcionamento aos setores que precisam de subsídio: agricultores, camponeses, transportadores, pescadore

2 – Alívio econômico para mais de 4 milhões de famílias com moratória de pelo menos um ano e renegociação de dívidas com redução das taxas de juros do sistema financeiro (bancos públicos e privados e cooperativas). Não à apreensão de bens como casas, terrenos e veículos por falta de pagamento.

3 – Preços justos para produtos agrícolas: leite, arroz, banana, cebola, fertilizantes, batata, milho, tomate e muito mais; não à cobrança de royalties sobre flores. Para que milhões de camponeses, pequenos e médios produtores tenham garantia de apoio e continuem produzindo.

4 – Emprego e direitos trabalhistas. Políticas e investimentos públicos para conter a precarização do trabalho e garantir a sustentabilidade da economia popular. Exigir o pagamento de dívidas ao Instituto Equatoriano de Seguridade Social (IESS).

5 – Moratória sobre a ampliação da fronteira extrativa mineradora/petrolífera, auditoria e reparação integral dos impactos socioambientais. Para a proteção de territórios, fontes de água e ecossistemas frágeis. Revogação dos Decretos 95 e 151.

6 – Respeito aos 21 direitos coletivos: Educação Intercultural Bilíngue, justiça indígena, consulta prévia, livre e informada, organização e autodeterminação dos povos indígenas.

7 – Parar a privatização de setores estratégicos, herança dos equatorianos (Banco del Pacífico, hidrelétricas, IESS, CNT, rodovias, saúde), entre outros.

8 – Políticas de controle de preços e especulação no mercado de bens de primeira necessidade, realizadas por intermediários e abuso de preços em produtos industrializados em redes de supermercados.

9 – Saúde e educação. Orçamento urgente em face da escassez nos hospitais por falta de medicamentos e pessoal. Garantir o acesso dos jovens ao ensino superior e melhoria da infraestrutura nas escolas, faculdades e universidades.

10 – Segurança, proteção e geração de políticas públicas eficazes para deter a onda de violência, assassinatos por encomenda, delinquência, narcotráfico, sequestros e crime organizado que mantém o Equador em perigo.”

Um país dolarizado onde o protesto indígena é o fiel da balança

Sem expor os pontos de reivindicação simplesmente se torna impossível compreender as razões de uma luta nacional, que a exemplo da jornada de 2019, totalizaram dezoito dias.  Não foi a primeira jornada nacional, aquilo que em espanhol se costuma chamar de “pueblada” e pelo visto está longe de ser a última. Em fevereiro de 1997 o então presidente e ex-comediante Abdalá Bucaram, foi destituído após uma intensa  jornada de protestos. Em janeiro de 2000, o presidente Jamil Mahuad decreta a dolarização da economia equatoriana. Antes do fim do mês, outro levante popular, oportunisticamente apoiado pelas forças armadas, resultou na sua derrocada e em golpe de Estado.

Em 2003 o coronel  Lucio Gutiérrez ganhou a Presidência com um discurso popular, aliado aos indígenas e com um viés alvaradista (a tradição militar nacionalista do vizinho Peru). Dois anos depois, após abandonar a lealdade com sua base nos povos originários, viu um levante pela esquerda e uma indignação pela direita, culminando com sua destituição em abril de 2006. Rafael Correa foi eleito em janeiro de 2007, com uma plataforma nacionalista e de centro-esquerda, durou dez anos no poder, emplacou seu sucessor (Lenin Moreno) e foi traído por este.

LEIA: “Não há genocídio que não tenha sido precedido por discurso de ódio”, diz Alice Nderitu, da ONU

Nos anos seguintes, mais regressão neoliberal, e a rebelião chamada de “estallido social” de outubro de 2019, congregando a oposição por esquerda ao correismo, como também as forças sociais e políticas aliadas do ex-presidente. Em consonância com as lutas no Chile e Colômbia, mas com  um traço de protagonismo e auto-organização indígena superior aos demais países sul-americanos (com exceção da Bolívia), o governo do traidor quase renunciou e se viu em xeque. O pleito foi vencido pelo banqueiro que concorria pela terceira, aproveitando a divisão do voto originário após a terceira posição ter sido ocupada pelo advogado neoliberal indígena, Yaku Pérez,rachando a base da CONAIE e quase chegando ao segundo turno. Com a posição rachada das nacionalidades, sendo que Pérez já dera apoio a Lasso em 2017, o especulador terminou empossado no Palácio de Carondelet.

A extrema dependência

O Equador tem na riqueza mineral e agro-exportadora sua principal fonte de renda e também  modelo de acumulação predatória. Essa condição, mais o desemprego e informalidade em grandes centros como Quito e Guaiaquil, eleva a pressão de uma economia dolarizada e sequestrada por discursos de “austeridade”. Tanto o modelo econômico como o fato de não ter uma moeda nacional, amplia a dependência das famílias junto às massas migratórias que chegaram nos EUA na virada do século e incide sobre o bem estar coletivo.

Outro fator que atinge o país em sua coluna vertebral é o terrorismo de Estado. Tal como na Colômbia e no Chile em 2019, 2020 e 2021, a repressão foi brutal, tendo mortos, desaparecidos  e denúncias de centros de tortura. Evidente que é impossível reconciliar com as instituições formais, quando estas são a primeira linha de defesa dos privilégios, do colonialismo interno e da dependência externa.

Desde a guerra contra o Peru  (Guerra de Cenepa, trinta dias em janeiro e fevereiro de 1995, com a vitória peruana) que as forças armadas dão a palavra final sobre a continuidade ou não dos mandatos presidenciais. Se na virada do século havia certa inclinação nacionalista e pró-indígena, passadas duas décadas, as posições dos altos mandos militares – semelhante ao Brasil – mais se preocupam com seus vencimentos do que com a realidade social do país.

Todos estes fatores forçam uma condição de fato: ou a maioria se organiza a partir de suas forças sociais permanentes, ou simplesmente as condições de vida só vão piorar. A densidade populacional indígena faz da Conaie o fiel da balança no Equador. Ao nacionalizar o programa de reivindicações, pela  segunda vez a Confederação tem a chance de mudar os rumos da herança  maldita da colonização e do imperialismo.

LEIA: Entrevista com o deputado equatoriano Bairon Valle Pinargote

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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