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Infame esquema ‘petróleo por comida’ implementado no Iraque se repetirá na Líbia?

Refinaria de petróleo na cidade de Ras Lanuf, norte da Líbia, 3 de junho de 2020 [AFP/Getty Images]

O embaixador dos Estados Unidos em Trípoli, Richard Norland, insiste abertamente em implementar um plano para negar ao estado líbio a liberdade de usar recursos de petróleo conforme sua soberania. O petróleo representa cerca de 98% dos ganhos em moeda estrangeira ao país assolado pela guerra. A Líbia tem reservas abundantes em seu território.

Em 28 de junho, pela primeira vez, a embaixada americana revelou no Twitter promover “esforços” para “estabelecer um mecanismo encabeçado pela Líbia para conceder transparência sobre como são gastos os recursos de petróleo”. A ideia em si não é novidade alguma; no entanto, a forma como se apresenta é inédita e permanece vaga, com pouquíssimos detalhes.

Basicamente, o que é sugerido pelo embaixador Norland foi acordado previamente na primeira Conferência de Berlim sobre a Líbia, em janeiro de 2020. Devido ao duradouro conflito, a cúpula estrangeira ratificou a criação de um comitê de economistas para monitorar “reformas estruturais” e abrir caminho para um processo de diálogo e resolução promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU). O pretexto, portanto, seria asseverar que os recursos de petróleo fossem igualmente distribuídos no país, por meio de um mecanismo unificado para evitar a suspensão na produção e exportação dos insumos energéticos. A justificativa declarada seria então desmilitarizar o papel do petróleo no conflito regional.

Não obstante, a proposta de Norland vai muito além de supostamente compartilhar recursos entre a população. Caso executada, deve literalmente demover o estado e instituições relevantes – como o Banco Central e o Departamento de Auditoria – de qualquer liberdade sobre o repasse de recursos do petróleo. Qualquer governo futuro ou presente não terá independência sobre o orçamento estatal, até que conflito seja “solucionado”.

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Críticos apontam que a proposta do embaixador americano é um arremedo do infame esquema “petróleo por comida” imposto ao Iraque em 1995, que negou ao estado árabe qualquer liberdade e soberania em gerir seus próprios recursos naturais. Em último caso, o programa – parte das sanções contra o falecido presidente Saddam Hussein – tornou-se uma rede burocrática notoriamente corrupta, que levou a centenas de milhares de mortes, ao empobrecimento da população e escassez de remédios e alimentos. Sob o esquema imposto internacionalmente, Bagdá foi forçada a pedir autorização externa para adquirir insumos fundamentais e cotidianos, sob averiguação externa ininterrupta, até mesmo para obter leite em pó para alimentar recém-nascidos.

A ideia de Norland – apelidada de “Mustafeed” – carece de detalhes e esclarecimentos. Nas redes sociais, cidadãos líbios debatem ostensivamente a matéria, em grande maioria ao condená-la por rescindir a independência e a soberania do país. Não obstante, em 28 de junho, após se encontrar com o atual premiê Abdul Hamid Dbeibeh, na cidade de Trípoli, o embaixador americano enalteceu no Twitter o engajamento do chefe de governo sobre a proposta estrangeira; portanto, ao sugerir seu apoio político.

O “Mustafeed” se refere a um processo de supervisão conforme o qual todos os recursos de petróleo serão alocados no orçamento via recomendações de um painel constituído por Estados Unidos, União Europeia, Egito e Organização das Nações Unidas (ONU). A promessa é que a Líbia detenha a presidência da comissão decisória. Sob a concessão política, todo o dinheiro do petróleo – habitualmente repassado à compra de insumos médicos e alimentares – será restrito a itens essenciais. Além disso, as contas do estado líbio serão auditadas por terceiros, o que configura ilegalidade até então conforme a lei federal.

O intuito é supostamente negar financiamento aos grupos paramilitares que obtêm recursos há anos por meio de seu apoio nominal ou mesmo extorsão dos sucessivos governos.

Embora pareça uma causa nobre capaz de reduzir as tensões no país, também é uma tentativa flagrante de negar a Trípoli sua capacidade soberana de decidir como gastar seus próprios recursos, ao submeter seu orçamento a potências estrangeiras que são, fundamentalmente, a causa da instabilidade nacional desde 2011. Antes mesmo de ser revelado o esquema de Norland, muitos agentes externos pediam por algum tipo de participação nas ações do petróleo da Líbia – medida rechaçada pois culminaria efetivamente na partilha do território norte-africano entre as partes sul, leste e oeste do país. A ideia recebeu apoio de diversos políticos nacionais, sobretudo radicados no leste da Líbia, ao promover um sistema federalista semelhante ao que existia antes da independência nacional, em 1951.

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Muitos acreditam que a intervenção militar estrangeira na Líbia, em meados de 2011, decorreu parcialmente da intenção de dominar as riquezas do país. Suas reservas de petróleo são estimadas hoje em 48 bilhões de barris – o terceiro maior índice entre as nações do continente africano, muito embora os dez anos de conflito tenham reduzido drasticamente a capacidade produtiva. Em decorrência da guerra e da falta de um governo central, a Líbia produz menos de 500 mil barris por dia (bpd), em um contexto no qual poderia ampliar sua exportação e capitalizar com o aumento global nos custos dos insumos energéticos. Os preços internacionais de petróleo decolaram desde a deflagração da guerra na Ucrânia, mas o estado líbio – a despeito de seu potencial – não foi capaz de beneficiar-se até então.

Caso implementado, o “Mustafeed” servirá para condicionar o envio de alimentos à venda de petróleo, ao rotular o país como ameaça à paz internacional. Dezenas de resoluções do Conselho de Segurança da ONU foram adotadas desde 2011 com este objetivo. Não obstante, o esquema de Norland será um produto de difícil venda, mesmo a políticos potencialmente interessados na ideia. Apesar de tudo que aconteceu no país, a maioria dos líbios ainda rejeitam a ingerência em seus assuntos domésticos. A interferência externa foi um dos gatilhos da recente onda de protestos que tomou o território nacional nas últimas duas semanas.

Em uma conjuntura mais ampla, o embaixador Norland também vinculou o “Mustafeed” à iniciativa da Casa Branca para solucionar o conflito, conforme esforços da administração de Joe Biden promovidos desde abril. Neste caso, tomar o controle dos recursos do petróleo restringirá o potencial dos protagonistas líbios em travar sua guerra em solo nacional. No entanto, não será capaz de rematar o conflito, à medida que pouco a pouco esgota a soberania remanescente da Líbia.

Enquanto se preservar o impasse político, ideias similares ao “Mustafeed” serão parte do debate. Neste entremeio, conflitos envenenam cada aspecto da vida nacional e fracassam flagrantemente em oferecer soluções.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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