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O mito do Templo de Salomão I – A disputa por Jerusalém

Mas o que a Mesquita de Al-Aqsa tem a ver com as campanhas dos colonos que se instalaram nas terras palestinas ocupadas e agora pregam a reconstrução do Templo Bíblico de Salomão?

A Mesquita de Al-Aqsa, no coração da cidade de sagrada de Al-Quds, conhecida no ocidente como Jerusalém, tem 1300 anos de existência – treze séculos! –  e é um patrimônio de toda a humanidade

Mas escavações, invasões e campanhas israelenses têm ameaçado os alicerces e a preservação desse símbolo de Al Quds / Jerusalém.

Mas o que a Mesquita de Al-Aqsa tem a ver com as campanhas dos colonos que se instalaram nas terras palestinas ocupadas e agora pregam a reconstrução do Templo Bíblico de Salomão? E porque essa ideia chegou ao Brasil, ajudando a enaltecer os símbolos que o Estado sionista de Israel quer  colocar em lugar de monumentos milenares muçulmanos?

No Brasil, poder político religioso

O Templo de Salomão paulistano foi inaugurado em 2014 ao som dos cânticos evangélicos e dos Hinos Nacionais do Brasil e do Estado de Israel. Fundia, assim, desde o primeiro culto, a vocação religiosa e a afinidade política com Israel, Estado que ocupa a Palestina e disputa a cidade sagrada de Al-Quds / Jerusalém com o povo originário.

A construção foi uma iniciativa do Bispo Edir Macedo, pastor e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. No comando da fortuna amealhada para a obra, ele dedicou-se a construir a sede da igreja com o formato do templo descrito na Bíblia, que teria sido erguido no reino de Salomão, entre 970 e 930 antes de Cristo.

Embora não haja vestígio de sua materialidade nas marcas arqueológicas daquele período, o respeito ao texto sobre o primeiro templo judeu reside principalmente na dimensão da fé judaica, também integrante da tradição cristã, como lugar em que foi guardada a Arca da Aliança.

A ideia de uma reconstrução, no entanto, não é um assunto apenas religioso. No Brasil, ostenta o crescente poder político e econômico de pastores evangélicos, com milhões de seguidores, em um país de maioria católica. Na Palestina, passou a ter uso político na ocupação e judaização de Jerusalém contra os cristãos e os muçulmanos.

Mas existiu um Templo de Salomão? 

Conforme a passagem bíblica, o templo criado há cerca de 3 mil anos teria durado mais de quatro séculos, até ser destruído, no ano 587 antes de Cristo, pelos babilônios. Seria difícil não deixar restos arqueológicos na região, especialmente pelo porte e riqueza com que a obra é descrita.

Seus alicerces teriam 29 metros de comprimento por 10 de largura, mais ou menos. Salomão teria usado ouro puro para cobrir o santuário interno do templo, onde colocou um par de querubins de ouro que mediam, juntos, 9 metros de largura, para guardar a Arca da Aliança. E, ainda, “revestiu, com ouro, as traves, os umbrais, as suas paredes e as suas portas; e lavrou querubins nas paredes”, conforme descrito em 2 Crônicas 3:7.

Em 2015, o diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel Aviv, Israel Finkelstein, trouxe a notícia triste para os pesquisadores das arqueologias bíblicas e confrontou os relatos sagrados com os achados da ciência.

Seu livro, intitulado The Bible Unearthed (literalmente, A Bíblia desenterrada), diz que as exaustivas escavações não encontraram qualquer sinal de grandes construções ou do reinado de Salomão em Jerusalém, e declara as descrições incompatíveis com as descobertas.

Outro estudioso, o arqueólogo israelense Ziv Herzog, em Deconstructing the Walls of Jerico, , se refere ao Templo de Salomão como uma lenda religiosa para expressar a glória judaica, sem relação com as condições da época.

Um segundo templo judeu, apropriado e ampliado por Herodes, e no qual Jesus teria expulsado os vendilhões, foi destruido no ano 70 da era cristã. Desta construção sobrou um muro, hoje chamado O Muro das Lamentações e considerado sagrado pelos judeus.

Em quase dois mil anos, desde o fim do segundo templo até o século XIX, não houve pretensão de se materializar o templo mítico e espiritual de Salomão em uma obra física.

Derrubar Al-Aqsa, uma obsessão política

Conforme escreve o professor israelense da Universidade de Tel Aviv Shlomo Sand, autor da obra “A invenção do povo judeu”, não é possível usar a religião como fonte de direito histórico.

Mas isso mudou na virada para o século XX!

O movimento sionista, fundado pelo jornalista húngaro Theodor Herz em 1896, propunha um Estado nacional exclusivamente judaico nas terras palestinas, que tinham por habitantes originários o povo palestino. Para isso, o movimento recorria à religião para reivindicar direitos sobre a Palestina e Jerusalém.  Dizia, inclusive, que a Palestina era uma terra sem povo, à espera de um povo sem terra, o que não era verdade. A Palestina tinha, nesta época, cerca de 25 habitantes por km², quando o Brasil, por exemplo, não tinha nem 4, conforme dados de 1922, reunidos a partir dos censos brasileiro e Britânico.

Na virada do século, sob influencia do movimento sionista na Europa, a ideia de reconstruir o Templo de Salomão passou a ser mencionada por jornais ocidentais.

Em 1917, a Declaração Balfour – uma carta do ministro britânico de relações exteriores prometendo apoio a um lar judeu na Palestina – abriu caminho para a imposição colonial do Estado de Israel.

Em 1948, mais de 800 mil palestinos foram expulsos durante a Nakba, palavra árabe que significa catástrofe e que se refere à formação violenta do Estado de Israel sobre as cidades e vilas palestinas. O avanço da ocupação israelense e limpeza étnica contra o povo palestino continuaram. E a ideia da reconstrução do templo passou a ganhar projeto, maquete, assinaturas de visitantes e adesões de políticos

Defensores da construção apontam para a Esplanada das Mesquitas, afirmando que os restos do templo estariam debaixo do Complexo e da Mesquita de Al-Aqsa, construída no ano 705 depois de Cristo.  A proposta de remover a mesquita milenar, com mais de 13 séculos de existência, tornou-se uma obsessão de sionistas radicais e colonos extremistas.

Um incêndio criminoso contra Jerusalém islâmica

Um dos três locais mais sagrados para o Islã e coração espiritual da vida palestina passou a sofrer invasões, ataques e ameaças.

Em 1967, após a guerra desencadeada por Israel para controlar o restante da Palestina, o regime sionista assumiu o controle militar de toda Al-Quds / Jerusalém.

Em 1969, a Mesquita de Al Aqsa foi alvo de um incêndio intencional, iniciado por um sionista cristão vindo da Austrália.  Quando o fogo começou, as autoridades da ocupação israelense praticamente deixaram que se propagasse e as denúncias surgiram sobre seu envolvimento. Moradores desesperados descobriram que os extintores não funcionavam e a água havia sido cortada em toda mesquita. Enquanto o fogo ardia, soldados impediam a entrada do socorro que chegava das cidades vizinhas: de Nablus, Ramallah, Al-Bireh, Belém, Hebron (Al-Khalil), Jenin e Tulkarem. O incêndio foi combatido inicialmente com baldes d’água, carregados de mão em mão por moradores, até a chegada tardia dos bombeiros.

A maioria dos países do mundo denunciou o incêndio. O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a Resolução 271, de 15 de setembro de 1969, considerando o incêndio um ato criminoso sob a ocupação militar de Israel, um “ato execrável de profanação a um dos santuários mais venerados da humanidade”. O Conselho instou Israel a cessar “imediatamente todas as medidas e ações” tomadas para alterar o status de Jerusalém.Conselho de Segurança das Nações Unidas

A Mesquita de Al -Aqsa sobreviveu a essa e a outras agressões.

Palestinos denunciaram seguidas violações aos símbolos muçulmanos, como também aos cristãos, como tentativa deliberada de judaização total de Al Quds / Jerusalém ocupada por Israel, com a progressiva expulsão da população local, que é palestina

O avanço ilegal sobre Jerusalém

A resolução do Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO, em 2016, sobre o status da Cidade Velha em Jerusalém e sua origem islâmica irritou Israel, que havia ocupado Jerusalém Oriental em 1967.

Em 1980, Israel criou uma lei anexando oficialmente Jerusalém Oriental ao seu território. A Organização das Nações Unidas e vários países consideraram a medida ilegal.

Em 2018, Israel declarou-se, por outra Lei Básica, um estado exclusivamente judeu, com direitos privilegiados sobre os não judeus. O cerco, a discriminação e os crimes contra os palestinos levaram à acusação de apartheid por importantes organizações de direitos humanos e processos no Tribunal Penal Internacional, ainda em curso.

Enquanto o tempo corre para a criminalização de Israel, a ocupação avança para tornar a judaização de Al-Quds / Jerusalém um fato consumado. Alguns poucos países mudaram suas embaixadas em Israel para lá, em sinal de apoio, e outros, como o Brasil, recebem pressões para que a transfiram. O projeto de reconstrução do templo recebe assinaturas de visitantes.

E no Brasil, a réplica do Templo de Salomão exibe, à maneira de Edir Macedo, o que poderia ser um novo templo em Jerusalém. Com o detalhe de que seria erguido deliberadamente sobre as ruínas da milenar Mesquita islâmica de Al-Aqsa.

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