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Lembrar o apartheid desde a fronteira é também resistir

Soraya Misleh e Mohamad El Kadri foram barrados pelo serviço de imigração israelense. Em 2 de abril de 2015 [Arquivos/Missão Gaza]

Em seu livro “Palestinian Identity: The Construction of Modern National Consciousness” (Columbia University Press: 1997), o historiador palestino Rashid Khalidi demonstra que todos os que carregam a identidade palestina enfrentam de alguma maneira restrições e discriminação, dentro ou fora dos territórios ocupados. Na última semana, o Facebook trouxe uma lembrança que é reveladora de uma das muitas formas de violência cotidiana àqueles cujas raízes estão fincadas nas terras ocupadas: o doloroso carimbo de entrada negada por Israel, que impede famílias inteiras de se abraçarem e trata como estrangeiros aqueles cujas origens palestinas remontam a tempos imemoriais.

Como argumenta Khalidi, palestinos, por sua identidade, são tratados como “suspeitos”, defrontam-se com racismo, dificuldades para transitar livremente, para obtenção de documentos, fragmentação de suas famílias e toda sorte de desafios oriundos da consolidação do projeto colonial sionista cuja quintessência é o apartheid. A humilhação, discriminação, tortura psicológica, intimidação e impedimentos na fronteira ocupada por Israel é um dos seus reflexos.

Para além do brutal bloqueio criminoso a Gaza há 14 anos, dos massacres e da violação de todos os direitos humanos fundamentais na Cisjordânia e Jerusalém, possivelmente a face mais cruel e visível do apartheid sionista, a violência alcança, entre os de dentro também, os quase 2 milhões de palestinos que vivem nos territórios ocupados em 1948 – que hoje se denomina Israel –, submetidos a cerca de 60 leis racistas e que não têm direito a reunificação familiar. A limpeza étnica avança em toda a Palestina sob colonização, do rio ao mar.

Não só. Entre os 13 milhões que compõem a sociedade palestina, inteiramente fragmentada desde a materialização da Nakba (catástrofe com a formação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada), metade encontra-se fora de suas terras. São hoje 5 milhões em campos de refugiados nos países árabes, impedidos do legítimo direito de retorno as suas terras, inegociável e inalienável, além de milhares na diáspora, espalhados pelo mundo. Todas as famílias se encontram divididas.

Crueldade e violência

Nos campos de refugiados ou na diáspora, muitos dos idosos expulsos em 1948 passam a vida olhando em direção à Palestina, sem poder realizar o sonho de retornar. Em suas narrativas, é comum afirmarem que partiriam felizes se pisassem em sua terra e morressem. Que jamais trocariam um segundo em sua terra por toda riqueza do mundo. Uma das muitas histórias que conheço é de um casal de idosos que tentou realizar esse sonho e foi barrado na fronteira pela ocupação israelense. A crueldade explicitada não pode ser minimizada. Deve ser parte das denúncias desse regime de apartheid que segue a matar – seja com bombardeios, tiros a queima roupa, via negação de acesso à saúde, tortura nos cárceres israelenses, contaminação e falta de acesso à água, impedimento da colheita de oliveiras, seja pela violência da negação de um reencontro ou abraço familiar. Palestinos refugiados ou na diáspora morrem também de tristeza, de saudade dos seus, de revolta e indignação de verem há 74 anos o silêncio e cumplicidade que perpetuam a Nakba.

Dor coletiva e resistência

A lembrança do Facebook me transportou para esses pensamentos e trouxe uma dor jamais cicatrizada, porque ela não é individual, mas coletiva. Em 31 de março de 2015, uma missão humanitária a partir do Brasil, organizada junto ao Fórum Social Mundial e devidamente negociada com as autoridades, dirigiu-se à fronteira ocupada para entrada na Cisjordânia.

Eram 15 passaportes brasileiros. Após quatro horas de espera e muitos interrogatórios de parte dos integrantes da missão, veio a violência do apartheid sob a forma de entrada negada a dois membros de origem árabe. Assim, eu e Mohamad el Kadri – um veterano lutador pela Palestina livre, de origem libanesa – tivemos pela segunda vez em apenas quatro anos que fazer o caminho de volta. Kadri e eu fomos considerados “ameaça à segurança de Israel”. Kadri carregava algo realmente muito perigoso: 50 bolas vazias de futebol para entregar às crianças palestinas. Como muçulmano, carregava também o sonho de visitar Jerusalém e dormir ao menos uma noite dentro da sagrada Mesquita de Al Aqsa. Eu pretendia pisar nas terras em que meu pai nasceu e abraçar sobretudo seu irmão, meu tio já idoso. Infelizmente não pudemos, e isso significou mais dor para meu pai e meu tio, sobreviventes da Nakba de 1948. Oito meses depois, meu querido tio faleceu, esperando por aquele abraço que não pôde ser dado.

Não deixar cair no esquecimento essa experiência dolorosa e as muitas lágrimas que têm sido derramadas dentro e fora da Palestina, que se misturam ao sangue que segue a fermentar nossa terra de muitos heróis desconhecidos, são parte da denúncia desse regime de apartheid. É o que a resistência heroica palestina tem nos ensinado.

Se os que enfrentam a brutalidade da ocupação e apartheid todos os dias, assim como os que vivem em campos de refugiados em situação de absoluta vulnerabilidade, não esmorecem, silenciar não é uma opção para quem jamais perde a fé num amanhã livre de toda opressão e exploração. Na Palestina livre do rio ao mar.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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