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Relembrando a Guerra dos Farrapos

O legado da Farroupilha é motivo de contestação e implica na disputa direta pela memória, mas também o arraigo do sentido de pertencimento no Rio Grande

O que – Início da Guerra dos Farrapos

Quando – 20 de setembro de 1835

Onde – Rio Grande do Sul

O que aconteceu 

O dia 20 de setembro de 1835 caracteriza a maior revolta oligárquica e provincial do período da Regência e do início do segundo reinado. Na ocasião, Porto Alegre, capital da província do Rio Grande de São Pedro, foi tomada pelos liberais revoltosos, chamados  de farrapos, expulsando o interventor e o comandante de armas no território  que hoje é o Rio Grande do Sul. Tem início uma  guerra civil e de secessão que vai durar quase dez anos, mexendo com o tabuleiro geopolítico do Cone Sul  e do rio da Prata, levando a formação de duas repúblicas e a posterior derrota e vergonhosa traição dos  oficiais farrapos.

Em setembro de 1836, os farrapos declararam a separação do Rio Grande do Sul do Brasil e a fundação da República de Piratini. [1]

O antes do 20 de setembro e o contexto do Rio da Prata

Por quase dez anos, um processo de luta intensa entre a elite dirigente e classe dominante da província se transforma em guerra civil e, na sequência, em movimento de secessão. Os dois partidos em conflito, o Caramuru (oficialista, aliado do Império brasileiro) e o Farrapo (em condição de rebeldia federalista e flerte republicano) reproduziram, no Rio Grande, o chamado “realismo do Prata”, em que o bipartidarismo nas recém criadas repúblicas da Argentina e Uruguai implicava em guerra civil e alianças externas.

É importante esse contexto, porque se trata de um conflito regional ampliado, múltiplo e de longa duração, com características específicas para cada formação política concreta. No caso do Rio Grande do Sul, outras duas guerras civis oligárquicas ocorreram ao longo dos cem anos subsequentes à “revolução” de 1835-1845. No Cone Sul, a luta territorial inicia nas guerras guaraníticas e missioneiras (contra Portugal e Espanha) e, depois, com a independência do Vice Reinado do Prata, a separação do Paraguai das Províncias Unidas e a formação (e derrota) do mais avançado projeto político do período, a Liga Federal dos Povos Livres, liderada pelo revolucionário da Banda Oriental (o moderno Uruguai) José Gervasio  Artigas.

Cabe ressaltar que a província estava com definição de fronteiras e território recém-criado. Os acordos finais que concediam as Missões Orientais para a soberania rio-grandense se deu em 1828 e, sete anos depois, explode a luta intestina da oligarquia “gaúcha”. O Império Luso-Brasileiro tinha invadido a Banda Oriental (1816) e decretado na sequência a formação da Província Cisplatina (de 1817 a 1828). A segunda guerra de independência se dá através do desembarque dos 33 orientais, em abril de 1825, dando início à Cruzada Libertadora e a chamada Guerra do Brasil (entre as Províncias Unidas, a Banda Oriental contra o Império do Rio de Janeiro). Em agosto de 1828, com o final do conflito e a formação do Uruguai e das fronteiras com a Argentina, a Província de São Pedro estava com perdas econômicas, reclamando da carga tributária e do preço do charque.

Com a oligarquia rio-grandense sentindo-se “abandonada” após mais de uma década participando de uma vergonhosa guerra de ocupação e invasão ao território “castelhano”, a tradição de “peões posteiros” lusitano já não bastava para assegurar a lealdade de oligarcas que também eram oficiais comissionados da Guarda Nacional do Império e a políticos que se auto-representavam. A fratura da classe dominante local, que tampouco era muito brasileira (falava-se mais “portunhol” ou bayano do que português), levou ao limite a subordinação para com a Corte no Rio de Janeiro (última capital portuguesa) e as fronteiras recém-criadas.

O que não havia dentre a oficialidade farrapa era convicção republicana e, menos ainda, de direitos sociais e políticos universais. Ao oposto da Liga Federal artiguista, não havia no programa de governo farrapo nem reforma agrária e, menos ainda, a abolição imediata da escravatura.

O período da Regência (1831-1840) e o início do Segundo Reinado foi o mais turbulento de todo o regime do Brasil império. Tivemos rebeliões provinciais mais populares e outras de corte oligárquico. A que mais tempo durou envolveu a província de São Pedro, antes capitania com o mesmo nome, em território que hoje equivale ao Rio Grande do Sul, uma parte do litoral catarinense e seu planalto.

O 20 de setembro e a Guerra dos Farrapos

Em abril de 1835, o presidente nomeado da província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga, entrou em atrito com os liberais rio-grandenses (farrapos) que se dividiam entre moderados e exaltados, separatistas e federalistas, alertando o comandante de armas da região. O Império cogitou que a revolta de parte da oligarquia local poderia implicar em movimento de secessão ou de federação com o Uruguai. Em 18 de setembro daquele ano, comandados por Bento Gonçalves, a capital Porto Alegre foi tomada e o governo provincial destituído. A guerra provincial estoura em 20 de setembro daquele ano. Nas vilas e cidades do interior, a formação de milícias e tropas irregulares, que por anos combateram ao lado do Império, agora se dividiam entre realistas e “republicanas”, liberais e conservadoras, caramurus e farrapas.

Os imperialistas retomaram o controle do estuário do Lago Guaíba e do delta do rio Jacuí, justamente onde se localiza Porto Alegre e a saída da Lagoa dos Patos, no porto oceânico de Rio Grande. Os farrapos tentaram sitiar a capital (em Guaíba e Viamão, por exemplo) e a cidade portuária (em São José do Norte e nas batalhas de Pelotas e região). Não conseguindo, a rebelião teve capitais itinerantes, passando um bom tempo com a administração na vila de Piratini, mais ao centro da Província.

A república, proclamada em 11 de setembro de 1836, teve como capitais Piratini, Caçapava do Sul, Alegrete, São Gabriel e de forma oficiosa, Bagé e São Borja. No segundo semestre de 1839, foi proclamada a República Juliana, atuando no território da Província de Santa Catarina, pela faixa litorânea até o município de Laguna e pelo planalto, levando a campanha até Lages. A Ilha do Desterro (Florianópolis) não foi conquistada e ao fim do mesmo ano de 1839, a república foi derrotada militarmente no território catarinense e a partir de 1840, a luta farrapa se concentra na metade sul e no centro da Província de São Pedro.

A luta da oligarquia farrapa durou até o “armistício” de Ponche Verde, por decreto de Pedro II (em dezembro de 1844, então com 18 anos o “imperador”), posteriormente sacramentado através do à época Barão de Caxias (Duque de Caxias, Luís Alves de Lima e Silva, o patrono do exército brasileiro e maior repressor de rebeliões regionais e republicanas do país) em fevereiro de 1845.

Lima e Silva é proclamado interventor na província recém “pacificada” e estabelece excelente relação com as facções oligárquicas rio-grandenses. Ponche Verde jamais foi ratificado, sendo mais um acórdão entre frações de classe dominante, e foi absolutamente respeitado por vencedores e derrotados. As propriedades,  bens e postos oficiais da comandância farrapa foram preservadas e a única exigência não cumprida foi a da abolição da escravatura, ou ao menos a alforria para os soldados negros e suas famílias que lutaram ao lado dos republicanos justamente em busca da liberdade prometida.

Cenários e protagonistas

A Farroupilha foi uma guerra civil dentro da oligarquia rio-grandense entre Caramurus X Farrapos, as batalhas se davam entre outubro e maio, evitando ambos os lados os períodos de frio  mais intenso. A presença imperial na província “nacionaliza” o conflito, colocando-o dentro do contexto do Realismo do Rio da Prata, conjunto de lutas políticas e militares que se encerra com a Guerra do Paraguai (ou Grande Guerra, 1864-1870) e chacina do povo paraguaio através da Tríplice Aliança com o apoio da Inglaterra na Era Vitoriana.

Ocorreu de 1835 a 1845, durante o período histórico da regência, após o retorno de Pedro I (1831) e a maioridade que vem a proclamar Pedro II “imperador” do Brasil aos 14 anos de idade. O “golpe da maioridade” implica na formação dos gabinetes mistos (liberais e conservadores) e na garantia de unidade política e territorial do reinado luso-brasileiro.

Uma fratura na elite rio-grandense levou à guerra civil entre dois partidos oligárquicos (Caramuru X Farrapos) e a consequente radicalização do conflito armado gerou as condições para proclamar a República Rio-Grandense, na mais longa das rebeliões provinciais no período da Regência.

Quem e com quem: De um lado, uma parte mais centralista da oligarquia rio-grandense, aliando Caramurus às forças imperiais (ainda não havia um exército permanente no país, mas oficiais de carreira, oficiais comissionados, tropas semiprofissionais, além da Guarda Nacional); de outro, o partido Farrapo, voluntários republicanos estrangeiros (em particular italianos), forças de origem indígena e afro-brasileiras e a possibilidade (não realizada) de aliança com o governo de Fructuoso Rivera (1839-1843) na Banda Oriental do Uruguai.

Após o conflito

A Guerra dos Farrapos ou a “revolução” farroupilha poderia atingir às estruturas do Império  Luso-Brasileiro, tanto por sua inserção no grande conflito do Cone Sul e Rio da Prata, como por seu potencial republicano e com promessas abolicionistas. A traição consumada no Massacre ou a Traição dos Porongos (14 de novembro de 1844), em uma localidade da campanha hoje pertencente ao município de Pinheiro Machado (mais perto da fronteira com o Uruguai do que da capital Porto Alegre), desarma a infantaria e o corpo de lanceiros negros e tira a possibilidade da luta armada pela libertação. Entregue o acampamento por parte de seus comandantes, a execução, morte, prisão e captura da cavalhada e armamento implicou no penúltimo combate da Guerra dos Farrapos e na maior derrota militar republicana.

Não por acaso, logo após a Traição o imperador assina o decreto da anistia e do tratado de paz e o mesmo é ratificado. Ao contrário de outras rebeliões do período, como a Balaiada e a Cabanagem, a Farroupilha não contou com o protagonismo do povo em armas e não abalou as estruturas de poder.  Implicou sim, na fratura da classe dominante local e na possibilidade de criação de uma nova oligarquia, com tratados federais ou confederais com a Banda Oriental (Uruguai) ou mesmo com o maior território das Províncias Unidas (Argentina sob o comando de Buenos Aires).

O legado da Farroupilha é motivo de contestação e implica na disputa direta pela memória, mas também o arraigo do sentido de pertencimento no Rio Grande. Debater a “invenção do tradicionalismo” e a defesa do “nativismo”, assim como o choque entre latifúndio e colonos, estancieiros e peões, oligarcas brancos contra quilombolas e indígenas são temas fundamentais e necessitam outros artigos.

Sugestões de leitura

Tempestade Sobre o Rio da Prata – Rubens Vidal Araújo

Divergências e traições entre as lideranças farroupilhas – a partir da documentação do Barão de Caxias (1842-1845) Janaíta da Rocha Golin    

Guerra dos Farrapos (1835-1845): entre o fato histórico e suas apropriações – Ânderson Marcelo Schmitt

Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos-Spencer Leitman

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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