Por volta de 8h30 da manhã, do dia 4 de agosto de 2020, desatracamos do píer 4 do porto de Beirute para iniciarmos mais uma patrulha de sete dias de duração, na Área Marítima de Operações, a bordo do Navio-Capitânia da Força Marítima da Unifil, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano, a Fragata Independência, da Marinha do Brasil.
Éramos 209 soldados de paz brasileiros, contando comigo, oficiais e as praças do Estado-maior embarcado da Unifil, comandante e tripulação do navio. Estava quente e ensolarado, como costuma ocorrer naquela época do ano na região do Mediterrâneo Leste.
O céu claro e sem nuvens, e o vento ameno, com mar calmo, tornavam o dia agradável para a navegação. Assim que deixamos a região do porto, rumamos para a nossa área de patrulha.
Naquele dia também faríamos um adestramento conjunto com o navio Tabarja, das Forças Armadas Libanesas. Após nos afastarmos do quebra-mar do porto de Beirute, cruzamos bem de perto pela Corveta Bijoy, da Marinha de Bangladesh, que encerrava a sua patrulha e se dirigia para o mesmo porto, invertendo de posição conosco.
Respeitando o costume das Marinhas do mundo, perfilamos os marinheiros de ambos os navios pelos conveses abertos e nos saudamos com um longo toque de apito, seguido de acenos de mão, segurando nossos gorros azuis, símbolo dos marinheiros mantenedores da paz da ONU. O comandante e a tripulação da Corveta Bijoy nos desejaram bons ventos e mares tranquilos, enquanto os cumprimentamos pelo bom trabalho executado em mais uma patrulha e lhes desejamos um bom descanso. A Fragata Independência seguiu ao longo daquele dia com suas atividades planejadas. A Corveta Bijoy, por sua vez, atracou no píer 6 do porto de Beirute, exclusivamente utilizado por este navio.
Por volta das 18h10, a Fragata Independência encontrava-se a cerca de 8 milhas náuticas da costa do Líbano, aproximadamente 14 km, em uma posição um pouco mais ao Sul da entrada do corredor de aproximação do porto de Beirute. O tempo continuava firme e o sol ainda brilhava forte. O pôr do sol nessa época do ano ocorria por volta das 19h30.
Foi nesse momento que percebemos um deslocamento incomum, parecia que algo teria tocado o nosso navio. Imediatamente cumprimos os procedimentos para verificação de avarias a bordo, tentando identificar o que teria acontecido sem, contudo, perceber o que realmente se passava a algumas milhas dali. Devido, possivelmente, à distância do Porto de Beirute e às características robustas do nosso navio, nenhuma avaria foi constatada na Fragata Independência, da mesma forma que nenhum acidente de pessoal foi observado com a nossa tripulação embarcada.
Como todos boinas-azuis brasileiros, tripulantes do navio ou componentes do Estado-Maior embarcado se encontravam a bordo, todos estávamos protegidos dos efeitos da explosão.
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Da mesma forma, a Corveta Sultan Hasanuddin, da Marinha da Indonésia, que também utilizava as instalações do Porto de Beirute para receber seus provimentos e para o descanso da sua tripulação, nesse dia, encontrava-se atracada no Porto de Mersin, na Turquia, a cerca de 180 milhas náuticas de Beirute.
Normalmente, este navio utilizava o píer 5 do Porto de Beirute, a apenas uma posição ao lado do píer da Corveta Bijoy. Naquele dia, a Força Marítima da Unifil ainda possuía outros dois navios em patrulha, afastados do Porto, e mais um navio atracado no Porto de Limassol, no Chipre, a cerca de 130 milhas náuticas de distância do local do incidente.
Não tardou alguns instantes para que surgisse no horizonte, na direção da cidade de Beirute, uma imensa coluna de fumaça, de cor alaranjada, que indicava que algo muito grave havia acontecido por lá. Rapidamente os noticiários nos chegaram e tomamos conta da situação. Ainda sem ter notícias precisas sobre a Corveta Bijoy, nossa preocupação imediata foi com a integridade física da sua tripulação. Tentamos comunicação com a Corveta Bijoy por todos os canais existentes, mas não obtivemos sucesso. Por outro lado, tranquilizamos a liderança da Unifil e as autoridades brasileiras quanto ao estado de saúde dos tripulantes da Fragata Independência e dos demais navios da Força Marítima da Unifil, todos livres dos efeitos da explosão. Reuni-me com o Estado-Maior embarcado e com o comandante da Fragata Independência, para avaliarmos o que poderia ser feito para acessarmos o Porto de Beirute e prestarmos auxílio, especialmente aos nossos companheiros, os soldados de paz de Bangladesh. Contudo, as incertezas envolvidas na explosão, o desconhecimento do que mais poderia acontecer naquela área e o início da noite que se aproximava com rapidez, nos recomendavam cautela.
A situação era muito grave. Havia feridos a bordo da Corveta e muita confusão na área do porto, segundo os relatos que recebemos.
No princípio daquela noite, conseguimos contato com o pessoal da Corveta Bijoy. A situação era muito grave. Havia feridos a bordo da Corveta e muita confusão na área do porto, segundo os relatos que recebemos. O maior desafio naquele momento era extrair de bordo os feridos mais graves e levá-los para o atendimento médico adequado nos hospitais que pudessem acolhê-los.
Entretanto, a situação crítica do porto não permitia que o nosso navio se aproximasse, bem como não era seguro enviar equipes da Fragata Independência por meio da lancha do nosso navio para o local. Diante da situação apresentada, por volta das 21h, avaliamos a possibilidade de empregar a aeronave orgânica da Fragata Independência, em proveito da tarefa de evacuação de feridos da Corveta Bijoy. Em uma decisão compartilhada com a Unifil, avaliamos o alto risco envolvido nesta linha de ação, decidindo por não a executar. Por outro lado, a Unifil mobilizou diversos outros meios da Missão, de forma expedita e eficaz, provisionando o rápido atendimento aos feridos mais graves do navio, evacuando-os para hospitais do Líbano, incluindo uma parcela significativa que foi deslocada para o Hospital de Tiro, a cerca de 70 Km da capital. No princípio da manhã do dia seguinte, 5 de agosto, enviamos para a Corveta Bijoy uma equipe de saúde, composta por médico e enfermeiros, e uma equipe especializada em reparos, por meio da lancha orgânica da Fragata Independência.
Os objetivos eram prestar atendimento aos feridos que estivessem a bordo da Corveta e identificar necessidades de apoio de material, ferramentas e outros itens para aquele navio. Esta ação mostrou-se proveitosa e adequada, dada a permanência de muitos boinas-azuis a bordo da Corveta Bijoy com ferimentos leves, mas que necessitavam de cuidados médicos. Além disso, o porto de Beirute havia sido interditado pelas autoridades libanesas à navegação de embarcações maiores, como era o caso da Fragata Independência, em virtude dos riscos à segurança da navegação provocados pelos escombros das estruturas portuárias destruídas pela explosão e atiradas ao mar, nos canais de acesso.
Nos dias que se sucederam à explosão, continuamos prestando apoio à Corveta Bijoy, enviando equipes da Fragata Independência especializadas em remoção de escombros e de pequenos reparos. De pouco em pouco, o navio foi se reerguendo e restabelecendo suas capacidades primárias, de geração e distribuição de energia, confecção de refeições etc.
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Os feridos foram tratados e receberam alta hospitalar à medida que melhoravam. Por um “milagre” não houve casos fatais dentre os tripulantes da Corveta Bijoy, apesar de alguns feridos terem ficado hospitalizados por um longo período. A Unifil estabeleceu uma comitiva especial, para avaliar os danos no navio, e um gabinete de crise, para organizar uma Força-Tarefa especial com suas tropas, para auxiliar as autoridades libanesas na remoção de destroços derivados da explosão e no restabelecimento de uma parte do Porto de Beirute.
Uma comitiva da Marinha de Bangladesh, especializada em reparos navais, foi deslocada para o Líbano, onde avaliou a necessidade de rebocar a Corveta Bijoy para um estaleiro na Turquia, a fim de repará-la adequadamente, garantindo sua segurança. Em 23 de setembro, a Corveta Bijoy, devidamente reparada e novamente operativa e reincorporada às Forças Marítimas da Unifil, foi substituída pela Corveta Sangram, também da Marinha de Bangladesh, em uma cerimônia ocorrida no Porto de Beirute, com a presença do Embaixador de Bangladesh no Líbano.
A experiência deste incidente foi muito marcante para todos nós: os desafios impostos pelos danos provocados pela explosão foram altíssimos
A experiência deste incidente foi muito marcante para todos nós: os desafios impostos pelos danos provocados pela explosão foram altíssimos, especialmente para o comandante e para a tripulação da Corveta Bijoy, excepcionais marinheiros que demonstraram grande capacidade de resiliência e de superação. Das lições aprendidas, destaco o elevado espírito de corpo e de solidariedade dos soldados de paz da ONU, demonstrados pelo senso de responsabilidade e de apoio concreto aos irmãos de Bangladesh, que viveram momentos de grande tensão neste marcante episódio da história do Líbano. Graças à união e à solidariedade dos países componentes da Unifil, o sofrimento experimentado pelos valentes capacetes azuis de Bangladesh pôde ser amenizado e um final menos trágico desfechou este caso.
*Sergio Salgueirinho é contra-almirante da Marinha do Brasil e foi comandante da Força Marítima da Unifil, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano.
Publicado originalmente em ONU NEWS