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EUA não podem reivindicar o combate ao racismo enquanto apoiam o apartheid de Israel

Reino Unido cita receios de ‘antissemitismo’ para boicotar conferência das Nações Unidas contra o racismo, junto dos Estados Unidos e outros países

Em 2001, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Relacionada (WCAR, da sigla em inglês) em Durban, África do Sul, considerada uma das maiores iniciativas da luta global antirracista até então. Construída a partir de campanhas internacionais ao longo das décadas de 1970 e 1980 e realizada justamente no país onde se venceu a última grande batalha contra o apartheid, o fórum adotou então um plano de trabalho abrangente para lidar com um dos piores e mais persistentes flagelos da história humana.

Neste contexto, a conferência reconheceu as consequências desastrosas do racismo e lamentou “a tragédia e o enorme sofrimento humano de milhões de homens, mulheres e crianças, causados pela escravidão, tráfico humano transatlântico, apartheid, colonialismo e genocídio”. Ao exortar os estados-membros a honrar a memória das vítimas do passado, o fórum reivindicou ainda à comunidade internacional que denunciasse o racismo e seus horrores relacionados sempre e onde quer que ocorram, para impedir a reincidência.

Diversas medidas foram adotadas para combater o racismo em todas as suas manifestações, incluindo uma carta aberta de combate à discriminação e um programa de ação global. A declaração adotou ainda “medidas de prevenção, educação e proteção com o objetivo de erradicar o racismo, a discriminação, a xenofobia e a intolerância relacionada em âmbitos nacionais, regionais e internacionais”.

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Os estados-membros concordaram em estabelecer uma série de programas para “introduzir, aplicar e reforçar componentes antidiscriminação e antirracismo no currículo de direitos humanos das escolas, a fim de desenvolver e melhorar o material didático relevante, incluindo na pasta de história e outras, e garantir que todos os professores sejam efetivamente treinados e adequadamente motivados para construir padrões de comportamento com base nos princípios de não-discriminação, respeito mútuo e tolerância”.

A declaração fez referências bastante específicas a Israel e Palestina: “Reconhecemos o direito inalienável do povo palestino à autodeterminação e a um estado independente e reconhecemos também o direito à segurança de todos os estados na região, incluindo Israel; exortamos todos os estados a apoiar o processo de paz e trazê-lo a uma conclusão em breve”.

Sobre os cinco milhões de refugiados palestinos, incluindo descendentes da comunidade nativa expulsa de suas aldeias e cidades por milícias sionistas, via limpeza étnica, prosseguiu a declaração: “Reconhecemos o direito dos refugiados de retornar voluntariamente às suas casas e propriedades, com dignidade e segurança, e exortamos todos a facilitar o retorno”.

A proposta incluía ainda um parágrafo que previa a retirada de representantes dos Estados Unidos e Israel. A razão pela indignação subsequente foi a seguinte sentença: “A conferência global reconhece com profunda apreensão o aumento de práticas racistas do sionismo e antissemitismo em diversas partes do mundo, além da emergência de movimentos violentos com base em ideias discriminatórias, em particular, o movimento sionista que assume como princípio a supremacia racial”. Embora o parágrafo tenha sido removido do texto final, a conferência contra o racismo passou a ser alvo de uma agressiva campanha liderada por grupos do lobby israelense.

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Nas duas décadas seguintes, a ONU conduziu outras duas conferências de alto escalão para monitorar o progresso do plano antirracista, em 2009 e 2011, denominadas não-oficialmente de Durban II e Durban III. Uma delegação dos Estados Unidos chegou a participar das negociações iniciais, mas logo retirou-se sob ordens do então Secretário de Estado Colin Powell. Devido à sua ausência, Washington deixou de pagar o valor previsto de US$250 mil em contribuições à WCAR.

Agora, no vigésimo aniversário do que muitos descrevem como marco da luta contra o racismo, as Nações Unidas pretendem reunir representantes de quase todos os estados-membros para um evento de um dia em Nova York, em setembro próximo. Como parte da mobilização para a chamada Durban IV, o órgão internacional divulgou um vídeo de dois minutos com um chamado unitário contra o racismo conclamado por artistas, ativistas e celebridades.

Os valores promovidos pela iniciativa global de combate ao racismo são incontroversos como qualquer causa multilateral. Portanto, é curioso — para dizer o mínimo — que a conferência seja submetida reiteradamente a uma campanha hostil executada por Israel e seus aliados. Com efeito, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Canadá planejam boicotar o evento deste ano, descrito por grupos coloniais sionistas como “festival de ódio antijudaico”. Ao anunciar a decisão britânica de não comparecer ao fórum, o Gabinete de Desenvolvimento, Commonwealth e Política Externa (FCDO) alegou: “Conforme preocupações históricas sobre o antissemitismo, o Reino Unido decidiu não participar da conferência de Durban, neste ano”.

Críticas a Israel são difamadas como antissemitismo [Carlos Latuff/Twitter]

Críticas a Israel são difamadas como antissemitismo [Carlos Latuff/Twitter]

Em busca de esclarecimentos, o Monitor do Oriente Médio (MEMO) contactou o FCDO para solicitar exemplos de antissemitismo expresso na conferência global e questionar se o Reino Unido considera a crítica política a Israel como forma de racismo antijudaico. Também pedimos comentários sobre descobertas recentes de proeminentes grupos de direitos humanos, como o Human Rights Watch e a ong israelense B’Tselem, sobre o racismo estrutural em Israel. Dado que ambos concluíram que o estado sionista é responsável pelo crime de apartheid, indagamos: Londres não guarda os mesmos receios sobre o racismo sistemático imposto à população não-judaica da Cisjordânia ocupada, evidenciado por gritos de “Morte aos árabes” proferidos recententemente durante a chamada Marcha da Bandeira, evento da extrema-direita israelense? Em sua resposta, o FCDO sequer abordou a política discriminatória contra os palestinos e insistiu apenas em acompanhar Estados Unidos, Austrália e Canadá no boicote ao evento em setembro, sob “preocupações históricas” de antissemitismo.

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A decisão de boicotar uma conferência internacional antirracista em apoio a um país denunciado pelo crime de apartheid — não apenas por conceituados grupos de direitos humanos, mas também por ex-enviados estrangeiros — é aterradora na melhor das hipóteses. Da mesma forma, é chocante que a decisão suceda promessas renovadas do presidente americano Joe Biden de combater a discriminação. “O racismo, a xenofobia, o nativismo e outras formas de intolerância não são problemas únicos dos Estados Unidos”, declarou Biden em discurso realizado no Dia Internacional contra a Discriminação Racial, em 21 de março. “Trata-se de um problema global, um problema de toda a humanidade que precisamos reconhecer, identificar e desmantelar”, prosseguiu. Biden, ávido por distinguir-se de seu predecessor Donald Trump através de uma política externa multilateral, prometeu que seu país promoveria um diálogo aberto sobre “questões dolorosas”, como racismo doméstico e institucional, em todo o mundo.

Como de costume, a diferença entre prática e retórica é vasta no que concerne Israel e Palestina. Considerado “progressista exceto na Palestina”, este fenômeno há muito mancha todos os componentes da política ocidental para reconhecer de fato o racismo sistêmico perpetrado pelo Estado de Israel. Contudo, como escreveu o professor Stephen Walt em artigo à revista Foreign Policy, o apoio cego dos Estados Unidos à entidade colonial — descrito como um “relacionado especial” — perdeu qualquer justificativa. Israel não é uma democracia liberal, onde pessoas de todas as religiões e raças têm direitos iguais, denuncia Walt. De fato, existe no país uma clara hierarquia racial na qual a população judaica possui supremacia sobre os não-judeus, conforme uma série de leis racistas do regime sionista. O apoio a Israel, explicou o professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Harvard, causa mais problemas aos Estados Unidos do que soluciona, dado que as décadas de perseguição israelense contra os palestinos destruíram qualquer pretexto ético para sua assistência.

Walt pode sugerir algo a mais. No passado, os Estados Unidos e as potências ocidentais em geral utilizaram Israel como recurso geopolítico para enfrentar o comunismo e o nacionalismo árabe, mas seu presente apoio à ocupação e ao apartheid tornou-se nada senão uma ave agourenta sobre seus ombros.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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