Lembrem-se deste nome: Samira Mohyeddin

Samira Mohyeddin [Agência Anadolu]

Samira Mohyeddin, forte mulher palestina conhecida por milhões como viúva do lendário sheikh Abdullah Azzam, faleceu de covid-19 na Jordânia. Deixa um legado de amor, sabedoria e generosidade. Como seu marido (1941-1989), teve um grande impacto em todos que puderam conhecê-la pessoalmente e impactou a vida de inúmeras pessoas no Oriente Médio, Norte da África e Ásia.

Senti enorme pesar em saber de sua morte, pois o mundo islâmico de fato perdeu uma de suas filhas mais expressivas. Passei dias ao seu lado em 2005 e tornou-se óbvio que Samira era mais do que a viúva de um grande homem.

Uma rápida checagem nos arquivos da imprensa ocidental e a falta de referências na plataforma Wikipedia demonstra que, como muitas proeminentes mulheres muçulmanas, Samira foi bastante ignorada, apesar de seu papel no Paquistão como chefe do comitê feminino do Escritório de Serviços do Mujahideen, em Peshawar. Também foi uma respeitada estudiosa dos preceitos islâmicos. Tamanha omissão é deplorável, então tento contar um pouco de sua vida extraordinária.

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Abdullah Yusuf Azzam [Wikipedia]

Notável de muitas formas, Samira poderia facilmente ter optado por uma vida quieta após o assassinato de seu marido e seus dois filhos, Ibrahim e Muhammad, em uma atentado a bomba no Paquistão, em 1989. Na ocasião, o sheikh Azzam era considerado patrono da resistência (mujahideen) do Afeganistão contra a ocupação soviética. Nesta época, o conceito de jihad era oportunamente visto por Washington e aliados como ato nobre, de modo que recursos foram investidos na resistência islâmica durante a década de 1970 e 1980.

A mãe de nove filhos retornou à Jordânia e tranquilamente manteve os esforços beneficentes de seu marido, à medida que expandia projetos próprios. Não muito depois de acabar a guerra soviética em solo afegão, Samira estendeu seu apoio a refugiados de todo o mundo islâmico, inclusive ao conceder assistência a orfanatos e escolas.

“Ela era uma inspiração e uma verdadeira líder”, declarou seu genro Anas Abdullah, casado com a caçula Sumayya desde 1990. Sumayya deixou sua casa em Londres na última semana para passar os últimos momentos com a mãe de 73 anos, cercada pelos outros três filhos e três filhas que sobreviveram aos ataques à família, além de netos e outros parentes.

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“Era muito mais do que uma mãe e esposa”, contou-me Abdullah. “Era guiada por Deus. Durante o Ramadã, nenhum de nós poderia competir com ela sobre recitar o Alcorão. Até o fim do Ramadã, ela sempre completava sua leitura do Alcorão, ao menos seis ou sete vezes”.

Como seu marido, nasceu na cidade de Jenin, na Cisjordânia, jamais se esqueceu de suas raízes palestinas e trabalhou incansavelmente para ajudar refugiados de sua terra. Porém, sua capacidade de ajudar os outros nunca restringiu-se à Palestina ocupada, de onde sua família foi expulsa em virtude da guerra, em 1967.

Caso Israel jamais tivesse capturado Sinai, Golã, Gaza e Cisjordânia, talvez o mundo jamais ouviria dizer de Abdullah Azzam e Samira Mohyeddin, que permaneceria anônima como esposa de um pacato professor universitário. Ironicamente, os sionistas deram à luz ao homem cujo nome tornou-se sinônimo da jihad internacional.

Quando nos encontramos em Londres, Samira e eu passamos horas e dias conversando com franqueza sobre sua vida pessoal. Deu-me a impressão de ser uma adolescente de personalidade forte, que casou-se posteriormente com o teólogo em ascensão Abdullah Yusuf Azzam, alguns anos mais velho. Samira foi taxativa em não omitir-se por trás de sua figura.

Sua descrição dos primeiros anos de casamento era repleta de anedotas sobre como ambos aprenderam a ceder e compreender um ao outro. A parceria desenvolveu-se e manteve-se firme até o dia do assassinato de Azzam, aos 48 anos.

O tradicionalismo de Samira atraiu a atenção do sheikh Azzam. “Buscava uma moça religiosa para me casar e encontrei uma moça que vestia um véu sobre dois terços do cabelo e uma saia sobre os joelhos”, recordou posteriormente. “Então eu disse, espere, essa moça é uma santa! Tentei cobrí-la abaixo dos joelhos, mas uma verdadeira batalha irrompeu entre mim e sua mãe. Felizmente, saí vitorioso”.

Os relatos de quando Samira conheceu seu marido estão no livro de memórias The Caravan (A Caravana), de Thomas Hegghammer, publicado em 2020. “Eu nasci na casa da irmã do sheikh Abdullah … Mais tarde, fui embora a Tulkarem; por acaso, onde ele estudava. Ele nos visitou uma vez e, três dias depois, seu pai pediu minha mão em casamento”.

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Na ocasião de nossa entrevista em Londres, a guerra no Iraque corria fora de controle, com a morte de civis e um número exponencial de refugiados. A instabilidade no Oriente Médio de fato a preocupava. Como seu marido, acreditava que a força dos povos da região reside na união e no conceito de Ummah (comunidade global) e expressava consternação pela discórdia no mundo islâmico.

Em seu manifesto — Junte-se à Caravana — Azzam exortou os muçulmanos a defender as vítimas de agressões coloniais no Oriente Médio e na Ásia, libertar suas terras da dominação estrangeira e preservar a cultura e os ritos do Islã. Não obstante, Samira sempre insistiu que seu marido jamais apoiaria atrocidades terroristas, como os ataques de 11 de setembro de 2001 ou os atentados em Londres, em 2005, por exemplo.

Samira culpava a falta de conhecimento da religião islâmica pelos atos terroristas e reiterou a mim que as ações dos envolvidos jamais poderiam representar a “verdadeira jihad” que seu marido defendia. Tenho certeza que Samira ficou chocada pela ascensão do Daesh (Estado Islâmico) e pelo comportamento atroz de alguns grupos islâmicos na Síria e além, que hoje utilizam a fé para justificar suas ações.

Embora seja verdade que Abdullah Azzam tenha inspirado e mobilizado árabes a viajar ao Afeganistão para combater as forças da União Soviética, Samira insistia que o nascimento do grupo terrorista Al-Qaeda e seus atentados subsequentes — incluindo o 11 de setembro — não poderiam ser colocados sobre os ombros do marido. Samira deixava claro que a morte de inocentes, não importa a religião, a deixava tremendamente apreensiva e que Azzam teria o mesmo sentimento.

Atentado terrorista contra as torres do World Trade Center, em Nova York, 11 de setembro de 2001 [Fabina Sbina/Hugh Zareasky/Getty Images]

Samira mantinha a essência de uma educadora dedicada a esforços humanitários, com prioridade nos desastres naturais e provocados pelo homem, permanecendo ao lado de viúvas, órfãos e da população carente. Quando falava, expressava preocupação com a forma como a grande imprensa ocidental tentava sequestrar o legado de seu marido para retratá-lo como extremista islâmico que promovia o terrorismo. Nos últimos anos, mostrou indignação com esta cobertura; em entrevista à Anadolu, destacou que Azzam “jamais permitiu ataques a civis, russos ou quaisquer outros”. E prosseguiu: “Ele dizia: ‘Combatemos apenas aqueles que nos são hostis e que ocupam nossa terra’. Nunca soubemos de onde surgiu a palavra ‘terrorista’”.

Quando nos conhecemos, eu era recém convertida ao Islã e possuía ainda diversas dúvidas, particularmente sobre conceitos como “jihad” e o papel da mulher muçulmana. Samira demonstrou enorme paciência comigo e passou bastante tempo me explicando a etimologia do termo, ainda representado com elementos de pânico pela grande imprensa. Jihad significa “luta” — nada mais.

Sua postura liberal em torno do papel feminino na resistência também refletia a visão de seu marido: a jihad é uma responsabilidade exercida por todos, não somente no Afeganistão — na época —, como certamente na Palestina. Embora se mantivesse conservadora nos costumes, Samira era apoiadora veemente da emancipação das mulheres islâmicas e as aulas que concedia em Peshawar eram bastante populares.

O empoderamento feminino em Peshawar durante os anos 1980 decorreu em boa parte da influência de Samira — um grande exemplo entre as mulheres da resistência que ali se assentaram. Suas ações também refletiam a conexão do casal com a Irmandade Muçulmana — à qual Azzam filiou-se em 1953 —, organização notável pela participação das mulheres desde o princípio.

De fato, o termo “feminismo islâmico” é pouco difundido ainda no mundo árabe, mas Azzam promoveu notoriamente os direitos das mulheres, de modo que Samira e suas filhas, quem sabe, sejam o melhor exemplo desta postura. Samira careceu de educação formal quando jovem, mas compensou posteriormente como ávida leitora e estudiosa dos preceitos islâmicos.

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Embora alguns grupos combatentes salafitas mantenham suas esposas e filhas em reclusão absoluta, Samira contou-me como ela e suas filhas foram encorajadas à educação e a participar ativamente das decisões relativas à comunidade. Samira, penso, sentia-se em casa e abriu caminho para outras mulheres e meninas, apesar das dificuldades óbvias de viver à margem de uma zona de guerra com uma família jovem.

A chegada em Peshawar de outra pioneira do feminismo islâmico, Zaynab Al-Ghazali, em novembro de 1985, foi motivo de entusiasmo. Seus pontos de vista foram publicados em revistas às quais Samira contribuía regularmente.

Como muitas mulheres cujos maridos lutaram na vanguarda, Samira temia pelo bem-estar e segurança do sheikh Azzam. Dizia como, ao retornar de operações armadas, revelava ao marido ter orado bastante por sua chegada. O respeito e humor compartilhados que possuíam um pelo outro reflete-se ainda na anedota de Samira: “Ele me repreendia por orar por seu retorno e me perguntava porque eu negava a ele o descanso e o paraíso”.

Liderar a resistência afegã era tremendamente árduo; portanto, no ápice de certa batalha, Azzam decidiu escrever seu testamento no qual referiu-se a Samira diversas vezes. “Você foi paciente comigo e ficou ao meu lado diante de cada obstáculo, com enorme coragem. De você, ganhei o apoio que precisava para carregar essa luta … Caso não fosse paciente, jamais eu poderia suportar este fardo sozinho”. Em seguida, Azzam a elogiou por seu desapego material e concluiu: “Oro para que Deus nos reúna no paraíso como nos uniu em vida”.

Não deixei de perguntá-la sobre quem estava por trás do assassinato de seu marido, em 24 de novembro de 1989 — ainda um dos maiores mistérios da região. Samira listou possíveis responsáveis: o Mossad israelense, serviços de inteligência do Paquistão, Estados Unidos, Arábia Saudita, Jordânia, entre outros. Azzam havia inspirado tantas pessoas sobre a importância da comunidade islâmica e da luta contra o autoritarismo nos países árabes e além, que poderia ser considerado ameaça por quase todos os regimes regionais, incluindo seus aliados no Ocidente. Samira enaltecia a habilidade de seu marido de mobilizar e motivar cidadãos árabes e muçulmanos de todas as idades, a fim de ajudá-los a redescobrir seu propósito em vida.

Afegãos sentam-se sobre um tanque soviético abandonado no Vale do Panjshir, em 10 de setembro de 2006 [Shah Marai/AFP via Getty Images]

Samira continuou a honrar a memória do marido ao manter sua vida modesta após a sua morte. Jamais casou-se novamente, algo pouco surpreendente, pois como alguém poderia substituir o sheikh Azzam?

Lembro de sua resposta quando perguntei se a questão da poligamia fora abordada pelo casal. Samira sorriu e disse que a família era de importância máxima ao marido e que, apesar de diversas ofertas de novo matrimônio, Azzam recusou todas ao admitir que deveria dar mais atenção à sua esposa. “Ele me dizia, ‘Como vou poder justificar a Deus assumir outra mulher quando não passo tempo suficiente com você?’ Jamais foi uma questão para nós”.

Quando concluímos nossa entrevista, senti que havia vislumbrado uma fresta da vida particular de um casal absolutamente devoto, cuja vida seria tão diferente caso a chamada Guerra dos Seis Dias e a ocupação israelense não tivessem ocorrido.

Seria impossível fazer justiça à vida de Samira Mohyeddin nesta curta homenagem; então exorto a todos, sobretudo às mulheres, que compartilhem suas memórias de Samira nas redes sociais. É importante ao mundo saber mais sobre ela e seu papel incontestável na luta de Abdullah Azzam para unir o mundo islâmico e superar a opressão. O legado do líder da resistência continuou através da esposa, mas a contribuição de Samira pelo bem-estar dos refugiados, em particular, mudou inúmeras vidas em todo o mundo. Certamente recordam seu nome. Nós também deveríamos fazê-lo.

Samira Mohyeddin (1948-2021): Inna lillahi wa inna ilayhi raji’un — De fato, pertencemos a Deus e a Ele retornaremos.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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