Portuguese / English

Middle East Near You

A agenda não declarada do Brasil em Israel

Visita da delegação brasileira a Israel liderada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo [Foto: Divulgação/Itamaraty]
Visita da delegação brasileira a Israel liderada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo [Foto: Divulgação/Itamaraty]

“De onde menos se espera, daí é que não sai nada.” A máxima do jornalista Aparício Torelly, conhecido como Barão de Itararé (1895-1971), serve como uma luva tanto para Bolsonaro quanto para seu aliado preferencial, o Estado racista de Israel. De ambos, nada de bom pode vir.

A visita da comitiva bolsonarista que o diga. Depois de três dias de vergonha nacional e nada de prático ou efetivo para conter a pandemia, revela-se o objetivo não declarado da viagem: um pacto contra a mínima justiça para os palestinos, trazer a pauta de criminalizar críticos do Estado de Israel taxando-os falsamente como antissemitas e voltar a tirar da cartola a promessa de transferência da Embaixada do Brasil para Jerusalém. É o que revela a cobertura da mídia.

No dia 7, uma declaração pública conjunta emitida pelos ministros das Relações Exteriores de Israel, Gabi Ashkenazi,  e do Brasil, Ernesto Araújo, não deixou dúvidas quanto ao engodo de dizer que a viagem tinha como propósito central “cooperação” para combate à pandemia – ao que são dedicados especificamente apenas dois parágrafos genéricos na nota.

Afora o escárnio de dizer que a parceria entre Brasil e Israel se baseia em valores compartilhados como liberdade, democracia, justiça e paz, a nota explicita “seu compromisso em salvaguardar o princípio da liberdade de culto e lutar contra o antissemitismo”.

A declaração enfatiza a gratidão de Israel pelos serviços prestados pelo desgoverno Bolsonaro, como o apoio ao chamado “acordo do século” que abriu as portas ao avanço da normalização entre países árabes e o apartheid sionista, em troca de interesses políticos e econômicos, e suas posições consistentes. Entre elas, contra a abertura de investigação pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, dos crimes contra a humanidade cometidos por Israel durante o massacre de 2014 em Gaza.

LEIA: Nem a Lua escapa da propaganda Israel-Brasil

O Estado sionista quer barrar a todo custo a ação do TPI, importante para expor esse capítulo da limpeza étnica e para abrir precedente. Isso não obstante seja absolutamente limitada e nem de longe signifique justiça para os palestinos, o que implicaria retroceder a investigação aos primeiros passos da contínua Nakba – a catástrofe palestina que se consolidou com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada.

Para Bolsonaro, as razões para se opor não se restringem a empunhar a bandeira do sionismo cristão na cadeira do Planalto. Também denunciado no TPI pela responsabilidade ante as mortes de brasileiros na pandemia e sobretudo o genocídio indígena, interessa deslegitimar a investigação. Afinal, pode ser o próximo a se sentar no banco dos réus.

A falácia de “lutar contra o antissemitismo”

A declaração conjunta demonstra que o Brasil está engajado em taxar de antissemita quem é antissionista. Como afirmou o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Bruno Hubermann, em atividade durante o Fórum Social Mundial no início deste ano, esse é “possivelmente o principal front de propaganda do Estado de Israel e dos movimentos sionistas no mundo em defesa dos seus crimes na Palestina”.

A confusão deliberada visa colocar um sinal de igual entre aqueles que criticam a colonização, ocupação e apartheid israelenses e a discriminação contra semitas de forma geral, sobretudo judeus. Nessa direção encontra-se o Projeto de Lei 4.974/2020, de autoria do deputado federal Roberto de Lucena (Podemos-SP). Em tramitação na Câmara, a proposição altera a Lei 7.716/1989, que trata da punição a “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Em sua justificativa inclui de contrabando, na redefinição de antissemitismo, “a condenação excessiva ao Estado de Israel”. É a esse tipo de pretensão, incluída na agenda de viagem capitaneada por Ernesto Araújo, que se alia Bolsonaro e seus asseclas.

O alvo principal têm sido internacionalmente os apoiadores da campanha de BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel, em função de suas vitórias. A busca é por silenciar a solidariedade aos palestinos, que se posiciona claramente contra qualquer tipo de discriminação, opressão e exploração, inclusive contra o antissemitismo. Com isso, ataca-se o direito democrático ao boicote.

Colocar o carimbo de antissemita a quem luta para que se garantam os direitos humanos fundamentais dos palestinos, inclusive ao retorno dos milhões de refugiados as suas terras, se assemelha a chamar de racistas aqueles que se somaram ao boicote ao apartheid na África do Sul nos anos 1990 – em que se inspira o BDS. Vale lembrar que durante essa iniciativa que ajudou a pôr fim à segregação de negros naquele país também houve tentativas de impedir o avanço do boicote, por exemplo por parte da Inglaterra. Em sua Lei do Governo Local de 1988, havia um item sobre licitação que proibia as autoridades locais a utilizarem critérios políticos para os contratos, ou seja, boicotarem o comércio e negócios com a África do Sul. As lições da história mostram, contudo, que essa tentativa está fadada ao fracasso.

LEIA: Para Bolsonaro é “Israel acima de tudo”

Por fim, a “cloroquina sionista”

Numa viagem marcada por segundas intenções e pelas patacoadas de Ernesto Araújo, a quem sionistas chamaram atenção por não usar máscaras, selou-se ao final da jornada um acordo como que para validar a justificativa inicial à ida da comitiva a Israel: trazer o tal spray nasal EXO CD-24 – a “cloroquina” sionista – para ser testado nas cobaias brasileiras. E também à produção de uma vacina inexistente em cooperação.

A animação de Bolsonaro e seus asseclas com o spray nasal sem comprovação científica e testado em apenas 30 pacientes surpreendeu até quem se reuniu com a comitiva para firmar o acordo que fará dos brasileiros suas cobaias. Em entrevista publicada na Folha de S. Paulo no dia 10 de março, Ronni Gamzu, CEO do Centro Médico Sourasky, demonstra isso e admite que “a melhor maneira de sair da crise do coronavírus é com a vacinação. Temos algumas drogas antivirais e estamos desenvolvendo outras. Mas é um processo longo, uma jornada”. Segundo ele, mesmo que venha a dar certo, isso pode levar “meses ou até anos”.

Enquanto isso, mais de 2 mil brasileiros perdem a vida todos os dias como consequência do desgoverno de Bolsonaro. Faltam vacinas, vagas em UTIs e os mais pobres se veem no pior momento da pandemia entre morrer de fome ou da doença. Na Palestina, o apartheid sanitário é a regra para 5 milhões que vivem sob ocupação na Cisjordânia e em Gaza, em meio ao aumento de casos de Covid-19.

A comitiva bolsonarista é cúmplice dessa situação, ao saudar o enclave colonial sionista e fortalecer alianças que servem para sustentar a colonização, tristemente em nome do Brasil, que hoje chora a morte de 270 mil pessoas. A essa tragédia, Bolsonaro, em 4 de março, dois dias antes do início dessa viagem para apertar mais uma vez mãos sujas de sangue, expressou-se da forma abjeta característica: “Chega de frescura e de mimimi! Vão ficar chorando até quando?”

Que não se engane. As lágrimas dos oprimidos e explorados não são fraqueza, mas sinal de humanidade. Nesse oceano de dor, na Palestina e no Brasil, navegam os que farão finalmente prevalecer a justiça e hão de colocar esses criminosos contra a humanidade no lugar que merecem.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
América LatinaArtigoÁsia & AméricasBrasilIsraelOpiniãoOriente MédioPalestina
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments