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Arábia Saudita via a Turquia como fiador de segurança, em 2011. Por que não em 2020?

Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro e governante de fato da Arábia Saudita, e Presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan, durante foto de abertura da Cúpula do G20, em Costa Salguero, Buenos Aires, Argentina, 30 de novembro de 2018 [Daniel Jayo/Getty Images]
Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro e governante de fato da Arábia Saudita, e Presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan, durante foto de abertura da Cúpula do G20, em Costa Salguero, Buenos Aires, Argentina, 30 de novembro de 2018 [Daniel Jayo/Getty Images]

Dúvidas desconfortáveis emergiram recentemente pela revelação dos chamados arquivos Clinton. O despacho diplomático submetido à ex-Secretária de Estado dos Estados Unidos Hillary Clinton, datado de 12 de outubro de 2011, revelou que os sauditas de fato consideravam a Turquia um eventual fiador de segurança, após a descoberta de um suposto complô iraniano para assassinar Adel Al-jubeir, então embaixador saudita nos Estados Unidos. O documento cita Hakan Fidan, chefe da Organização de Inteligência Nacional da Turquia, que recordou o fato do Rei Abdullah e seus assessores próximos terem “levantado a possibilidade da Turquia substituir Estados Unidos como fiador de segurança ao reino, em particular, em relação ao Irã.”

Nove anos é um longo período em termos de relações internacionais; no Oriente Médio, em especial. A Arábia Saudita já não vê mais a Turquia como eventual protetor, mas sim como adversário, ao ponto de, em setembro de 2020, a Liga Árabe – sob hegemonia saudita – condenar o que descreveu como interferência da Turquia e do Irã nos assuntos árabes.

Além disso, aliados sauditas no Golfo, isto é, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, normalizaram relações com Israel, como forma ostensiva para proteger-se do Irã.

Não há dúvidas de que os levantes árabes que varreram as velhas ditaduras na Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen reconfiguraram os alinhamentos regionais. Após seu período inicial de observação, o governo americano de Barack Obama decidiu engajar-se com a nova gestão do Egito, encabeçada pela Irmandade Muçulmana. A decisão levou a um desconforto considerável entre os estados do Golfo; Emirados Árabes Unidos, em particular.

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Em 5 de setembro de 2012, Yousef al-Otaiba, embaixador emiradense nos Estados Unidos, enviou uma análise escrita por Andrew Hammond e Rania El Gamal ao conselheiro político de Clinton, Jacob Sullivan, solicitando leitura assim que possível. O artigo intitulado “Some Gulf rulers wary of U.S. shifts on Islamists, Iran” (“Governantes do Golfo temem aproximação dos EUA a islamitas e Irã”, divulgado pela Reuters) foi encaminhado à Clinton logo a seguir. Destacava o temor enraizado que afligia alguns regimes do Golfo, na ocasião. Dhahi Khalfan, ex-chefe de polícia de Dubai, ilustrou tais receios quando alegou haver uma conspiração dos Estados Unidos a favor da Irmandade Muçulmana, para depor uma série de governos do Golfo.

Embora Khalfan defendesse que seus tuítes representavam sua opinião pessoal, diplomatas ocidentais na região acreditavam tratar-se de um reflexo das preocupações inerentes à elite governante. Seu temor implícito era de que a proposta de democracia parlamentar representada pela Irmandade de fato impusesse uma ameaça a direitos inatos ao governo.

Após a deposição do governo de Mohammed Morsi, primeiro presidente eleito do Egito, milhares de membros da Irmandade Muçulmana no país obtiveram ofertas de asilo da Turquia e Catar. Este fato representou um ponto de inflexão crítico nas relações entre ambos os países e os estados do Golfo. No caso da Turquia, foi o assassinato do proeminente jornalista saudita Jamal Khashoggi, dentro do consulado saudita em Istambul, em 2018, que levou as relações entre Riad e Ancara ao fundo do poço. Desde então, não melhoraram.

Os arquivos Clinton, no mínimo, destacaram a dimensão da mudança na paisagem política de toda a região, entre 2011 e os tempos atuais. Neste período, a Arábia Saudita indiciou e julgou 78 cidadãos palestinos e jordanianos, incluindo Muhammad al-Khodari, representante do Hamas no reino, de 81 anos. A Turquia, por outro lado, buscou ativamente promover a unidade e reconciliação entre Hamas e Fatah.

Diferente do Egito e dos estados do Golfo, que concederam apoio tácito ao chamado “acordo do século”, promovido pelo atual Presidente dos Estados Unidos Donald Trump, a Turquia manteve-se firmemente ao lado da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), contra a proposta, que permitiria a anexação israelense de Jerusalém ocupada e negaria o direito de retorno aos refugiados palestinos. Não é surpresa, portanto, que as lideranças da Liga Árabe tenham se indignado com a “teimosia” palestina. Os ataques do príncipe saudita Bandar bin Sultan, via imprensa, contra a liderança palestina, são evidentemente o exemplo mais recente.

Em um momento no qual a resiliência do povo palestino é testada a seu limite, sob as piores ameaças a seu projeto nacional em décadas, os estados do Golfo – liderados pelos Emirados Árabes Unidos – escolheram normalizar relações com Israel. Sem qualquer plano claramente definido para dar fim à ocupação ilegal da Palestina, tais estados organizaram uma conferência econômica no Bahrein, em junho de 2019, prometendo à OLP e Autoridade Palestina um pacote assistencial de US$50 bilhões, como parte do “acordo do século”. Naturalmente, a proposta foi imediatamente rejeitada. Em seguida, o Hamas negou uma oferta de US$15 bilhões para encerrar o bloqueio israelense sobre a Faixa de Gaza, caso o movimento entregasse as armas e desse fim à resistência.

Os arquivos Clinton, sobretudo, expõem o mito da solidariedade árabe. A noção de colaboração estabelecida na fundação do Conselho de Cooperação do Golfo, em 1981, está agora aos pedaços. Em 2011, os sauditas consideravam absolutamente aceitável a hipótese de convidar a Turquia a exercer papel de cobertura militar aos limites do reino. Hoje, contudo, a Liga Árabe considera a presença de tropas turcas no Catar como “fator desestabilizador” na região do Golfo. O mero fato da organização manter-se em silêncio sobre a cooperação militar dos Emirados com Israel é argumento expressivo o bastante. Trata-se de algo considerado estrategicamente correto e necessário. Decerto, só pode haver um resultado de tais considerações: que a ocupação de Israel sobre os Emirados Árabes Unidos e aliados do Golfo é apenas questão de tempo.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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