Os EUA e a disputa geopolítica por meio do investimento em infraestrutura

PROTESTO PELO FIM DO ISOLAMENTO SOCIAL NOS EUA. FOTO: AFP

A eleição de Maurício Claver-Carone, candidato estadunidense à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), rompendo um tradição que remonta ao acordo de sua criação, é apenas mais um capítulo da verdadeira cruzada promovida por Donald Trump na disputa geopolítica em curso no América Latina.

Esse movimento do governo dos EUA tem várias frentes de intervenção, inspiradas por uma espécie de nova Doutrina Monroe e volta a tratar de maneira explícita o sul do continente como um grande quintal da superpotência.

A intervenção dos EUA na região parece ter dado certo. Foram presos ou processados criminalmente mais de uma dezena de presidentes não alinhados aos interesses do norte-americanos. Numerosas empresas locais – particularmente nos setores de infraestrutura – foram à falência ou encontram-se mortalmente enfraquecidas. Diversos governos pro-EUA ascenderam ao poder, muitos deles patrocinados por golpes, como no Paraguai, Bolívia e Brasil.

Agora a ação estadunidense continua, mas com algumas novas peças, aliás , previstas na mencionada Estratégia de Segurança Nacional. Na disputa por abertura de mercados, um fato relevante ocorreu em fins de 2018. Uma nova legislação chamada de BUILD Act (acrônimo para, em tradução livre, Melhor Utilização do Investimento para o Desenvolvimento) que cria os US International Development Finance Corporation (US-DFC).

O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, destacou: “O ‘BUILD Act’ oferece às empresas americanas oportunidades de competir no exterior e criar empregos em casa. Esta é uma parte importante da estratégia econômica nacional do presidente Trump” . Segundo Daniel Runde e Ramina Bandura, do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) em Washington, “esta é a mais importante peça de legislação para promoção de soft power dos EUA em mais de uma década” .

O BULD Act traz algumas inovações importantes na política de promoção de investimentos estadunidenses nos países em sua órbita econômica. Permite o uso de recursos públicos para financiar investimento patrimonial (equity) e aquisições. Flexibiliza os requerimentos de origem do capital, trocando a exigência por preferência ao capital estadunidense, permitindo triangulações com investidores outros países onde o risco para investidores americanos é elevado . Finalmente, mais que dobra os recursos destinados ao financiamento do desenvolvimento no exterior.

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Em tempos de desmonte de nosso BNDES, a nova legislação cria um banco de desenvolvimento, ao substituir a agência até então dedicada ao financiamento externo do desenvolvimento (OPIC) pela Corporação Financeira para o Desenvolvimento Internacional (US-DFC), fundindo setores da USAID e da própria OPIC. O DFC teve autorizado pelo congresso americano um limite US$ 60 bilhões para começar suas operações. Para termos ideia do que isso significa , o capital subscrito inicial do New Development Bank, o banco dos Brics, é de US$50 bilhões.

O estabelecimento do DFC é considerado um mecanismo para neutralizar a Iniciativa “Belt and Road” da China que conta com seus bancos estatais como elemento-chave tanto no investimento direto quanto no financiamento para empresa e governos. É fato conhecido que os dois principais policy banks chineses, o Eximbank e o CDB emprestaram em nossa região, no últimos dez anos, mais que o BID e o Banco mundial juntos.

Os EUA reagem em diversas frentes à “ameaça chinesa”. Do ponto de vista da disputa conceitual, as críticas ao “modelo Cinturão e Rota” são contemporâneas ao seu próprio anúncio, em 2013. A partir daquele momento, os EUA e seus aliados denunciaram um suposto modelo de investimento baseado em endividamento excessivo promovido pela China. A China, de acordo com a diplomacia americana, estaria promovendo um alto endividamento dos países pobres da Ásia e da África, e pior, em uma carteira de projetos de viabilidade econômica duvidosa.

As instituições multilaterais parecem professar o mesmo evangelho: o FMI, o Banco Mundial e o G20 emitiram advertências contra um padrão de investimento em infraestrutura baseado em dívida externa. “Não afogamos nossos parceiros em um mar de dívidas. Não coagimos, corrompemos ou comprometemos a sua independência” , disse o vice-presidente estadunidense Michael Pence em 2018 na cúpula de Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico em Papua Nova Guiné. Já na reunião do G20 em Osaka em 2019, a declaração final dos líderes envia algumas mensagens subliminares à China:

“Endossamos os Princípios do G20 para Investimento em Infraestrutura de Qualidade como nossa direção estratégica comum e alta aspiração. [] Ressaltamos a importância de maximizar o impacto positivo da infraestrutura para alcançar um crescimento e desenvolvimento sustentáveis, preservando a sustentabilidade das finanças públicas.”

Nessa toada, adjetivos nada elogiosos como “quebra de regras”, “predação econômica”, “expansão geográfica”, “capacidade de produção de excesso” e “destruição ambiental”, além da “armadilha da dívida” são frequentemente usados para acusar a China na sua trajetória de investimento e cooperação econômica com países ao longo da nova rota da seda.

A US-DFC e o “América Cresce”

Em dezembro de 2019, o presidente Trump, após ter mudado a legislação e criado um banco, lançou um programa finalístico: o “América Cresce”, que tem como objetivo declarado se contrapor a iniciativa Cinturão e Rota na América Latina.

O América Cresce é uma iniciativa guarda-chuva que visa coordenar as atividades de agências distintas do governo dos Estados Unidos. Seu plano piloto começou ainda em 2018 como uma iniciativa focada em infraestrutura de energia no Caribe chamada Caribbean Energy Security Initiative (CESI) – um programa de garantia de empréstimo, com foco em projetos de energia na região em cooperação com o Banco Comercial Nacional da Jamaica. A partir de 2019, expandiu para abranger áreas de infraestrutura mais amplas, como telecomunicações, energia, portos, rodovias, aeroportos, entre outros.

O América Cresce apresenta características tradicionais da política pública daquele país: uma robusta mobilização de recursos públicos e apoio estatal para apoiar a ação de seu capital privado, seja domesticamente ou no exterior. Dessa forma, os Departamentos de Estado, Tesouro, Comércio e Energia, bem como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), a Agência de Comércio e Desenvolvimento dos Estados Unidos (USTDA), além do US-DFC estão mobilizados no programa.

É importante notar que Maurício Claver-Carone era o responsável por coordenar, no governo Trump , o América Cresce, e, com sua eleição para a presidência do BID, promete transformá-la em uma prioridade daquele banco multilateral. O BID pode passar a ser, mais que nunca, instrumento da intervenção dos EUA na disputa com a China na região.

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O América Cresce é, na verdade, um filho da família de inciativas promovidas pelo governo dos EUA em uma longa tradição que envolve a criação de agências nacionais como o Eximbank americano (1934) e até mesmo bancos multilaterais no pós-Segunda Guerra Mundial, cujo objetivo era financiar investimentos em infraestrutura nas nações em desenvolvimento e promover o soft power dos EUA. Mais recentemente, também foram criados alguns programas regionais com o mesmo espírito, como o Connect Africa (2018), cujo objetivo é facilitar o investimento em logística e tecnologia da informação e abrir mercados para empresas estadunidenses.

Mas qual o objetivo principal da Iniciativa América Cresce?

Em primeiro lugar, o programa está focado na promoção do investimento do setor privado em energia e infraestrutura, com foco especial em infraestruturas 5G nos países latino-americanos.

O foco nos mercados 5G e conectividade digital é claro no anúncio concomitante de que os Estados Unidos expandirão a Parceria de Conectividade Digital e Segurança Cibernética (DCCP) da da Ásia e Oceania para a América Latina e o Caribe.

De acordo com a ficha técnica do DCCP, o foco da “parceria” promovida pela USAID é “o envolvimento do setor privado no desenvolvimento da infraestrutura de comunicações, promovendo reformas regulatórias que criam mercados digitais abertos e competitivos e construindo a capacidade de segurança cibernética dos parceiros para lidar com ameaças mútuas”. Portanto, mais do que apenas oferecer financiamento para empresas norte-americanas, o América Cresce busca “ajudar os países a melhorar seus marcos regulatórios e estruturas de aquisição para atender aos requisitos de financiamento de projetos de recursos limitados”.

Isso significa que o programa também tem uma agenda política de reformas para adequar a legislação e as instituições locais às necessidades do capital sediado nos Estados Unidos. É por isso que pretendem “facilitar os projetos do setor de infraestrutura desde os estudos de viabilidade em estágio inicial até as decisões finais de investimento” (Ibid, 2019) e promover “a cooperação bilateral expandida entre os Estados Unidos e os países da região [para] reduzir o excesso de regulamentação , barreiras legais, de compras e de mercado ao investimento. ”

De acordo com informações oficiais, os Estados Unidos assinaram MOUs formais com Argentina, Chile, Jamaica, El Salvador, Colômbia e Panamá. O governo dos Estados Unidos não informam o valor total dos recursos envolvidos no América Cresce. No entanto, identificam atualmente US $ 1,1 trilhão em Oportunidades de Mercado Total para empresas dos EUA em energia e infraestrutura nos próximos cinco anos .

Atualmente, muitas ações da extinta OPIC são contabilizadas como iniciativas do América Cresce. Curiosamente, parte desses investimentos foram caracterizados exatamente pelos problemas que os norte-americanos acusam na iniciativa chinesa. Esse é o caso do Porto do Açu, onde a brasileira Prumo Logística obteve financiamento de US$ 350 milhões da OPIC e onde as condicionantes ambientais, típicas de empréstimos do Banco Mundial e BID, não foram observadas, segundo diversas entidades ambientalistas e por uma CPI criada na Alerj durante a construção do porto.

As obras do porto foram amplamente denunciadas pelos conflitos ambientais que causaram. Para realizar a construção do porto, cerca de 10.000 hectares de terras residenciais e campos foram ocupados. Os residentes locais que viviam com plantações agrícolas e criação de animais foram forçados a se mudar. As empresas coligadas baixaram deliberadamente o valor da terra e reduziram as indenizações às famílias realocadas, o que causou insatisfação na população. Para iniciar a construção do porto o mais rápido possível, algumas famílias que não quiseram se mudar foram expulsas de suas casas por policiais militares e seguranças particulares, o que gerou até protestos em grande escala. Nesse sentido, o conflito pode ser entendido como um conflito ambiental territorial, onde dois grupos disputam a mesma região espacial e, o Estado se manifesta por facilitar a aquisição desse espaço em favor dos controladores do porto, seguindo um molde já identificado por Zhouri e Laschefski

Embora o US-DFC continue o trabalho da OPIC no fornecimento de financiamento de investimento na forma de empréstimos de longo prazo, garantias e seguro contra risco de investimento estrangeiro (taxa de câmbio, governo, riscos políticos diversos), parece que a inovação mais importante são as operações de capital. O América Cresce está pronto para operar uma plataforma na qual recursos do governo dos EUA serão usados para ajudar fundos financeiros a adquirir empresas – ou ações dela – na região, a fim de estabelecer uma posição melhor para o capital originado nos EUA.

A disputa pelo 5G

Dentre os motivos estratégicos que movimentam as diversas iniciativas do governo americano é além de abrir o mercado brasileiro, principalmente na área de construção civil e infraestrutura de transportes, influenciar na disputa contra a chinesa na licitação 5G em 2021.

Como sabemos, o governo dos EUA está pressionando o seu homólogo brasileiro para bloquear a participação da Huawei na implementação da respectiva infraestrutura e, ao mesmo tempo, usará fundos públicos para promover a participação de empresas americanas no próximo processo de licitação.

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Essa não será uma tarefa fácil para o governo dos EUA devido a ampla presença da Huawei na infraestrutura nacional de telecomunicações existente no país. A maioria das empresas de telecomunicações usa equipamentos Huawei, que são mais baratos e de boa qualidade, segundo especialistas do setor. Recentemente, um grupo das principais operadoras de telecomunicações do Brasil fez um apelo ao governo brasileiro em defesa da Huawei, já que sem o seu fornecimento de equipamento, os custos de operação nas redes existentes e futuras aumentarão consideravelmente no Brasil .

Em um país sem projeto nacional assistimos, bestificados, as disputas das potências estrangeiras pelos nossos recursos e amplo mercado. Seguimos uma receita liberal inexistente no centro do capitalismo e perdemos assim a janela de oportunidade que os conflitos EUA e China propiciariam para nosso desenvolvimento autônomo.

Este artigo foi publicado originalmente no (cartacapital)

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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