Há quase 18 anos, Tony Blair, então enviado especial no Oriente Médio, apresentou um documento de 34 páginas que delineava um “corredor para paz e prosperidade”, estendendo-se do Mar Vermelho às colinas ocupadas de Golã.
O plano de Blair previa um parque agroindustrial perto de Jericó, na Cisjordânia ocupada, para facilitar o transporte de mercadorias ao Golfo via Jordânia. Outro parque industrial, ou “projeto de impacto rápido”, seria criado em Tarqumiya, em Hebron, e um terceiro em Jalameh, ao norte de Jenin.
Pouco disso era novo. Os Acordos de Oslo, assinados em 1993 e 1995, previam a criação de até nove zonas industriais ao longo da Linha Verde, de Jenin, no norte, a Rafah, em Gaza.
Cheio de otimismo e com o apoio da Autoridade Palestina, das Nações Unidas, da União Europeia, da USAID e do Japão, Blair anunciou, como visionário que sempre imaginou ser: “Se o pacote funcionar, será seguido por outros semelhantes. Dessa forma, com o tempo e progressivamente, o peso da ocupação pode ser aliviado, mas de uma forma que não coloque em risco a segurança de Israel.”
E acrescentou: “É minha firme convicção que estas medidas também facilitarão as negociações em curso entre as partes, visando alcançar um acordo de paz viável e duradouro entre dois países, vivendo lado a lado em paz e prosperidade.”
Hoje, pouco resta do parque industrial de Blair no cruzamento de Jalameh com Israel. Durante anos, o local permaneceu vazio, até que a Autoridade Palestina — com apoio de investidores turcos — tentou instituir uma “cidade industrial” em Jenin. Agora, um punhado de estradas e armazéns são tudo o que resta daqueles sonhos.
Em 2008, Blair reivindicou crédito por reduzir o número de bloqueios viários na Cisjordânia ocupada, que então somavam cerca de seiscentos. Hoje, são 898 postos de controle militar, incluindo dezenas de portões que selam cidades e aldeias palestinas durante a maior parte do dia. A vida econômica segue estrangulada.
Milícias de colonos percorrem a região, ao aterrorizarem cidades palestinas e expulsar palestinos de vastas extensões de terra, reivindicadas por “fazendas de pastores” terminantemente ilegais, em coordenação com o ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, que assumiu o controle da Administração Civil — instituição colonial — na Cisjordânia ocupada.
Precursor da anexação
Tudo isso é visto como um precursor do amplamente antecipado anúncio da anexação por Israel da Área C, que compreende cerca de dois terços da Cisjordânia.
Mais de 40 mil palestinos foram desabrigados pela demolição de campos de refugiados em Jenin, Tulkarm e Nur Shams, em uma operação do exército israelense intitulada “Muralha de Ferro”, em seu oitavo mês.
Em 2009, Blair recebeu um prêmio por sua “liderança” em seu plano natimorto: um prêmio de US$ 1 milhão, a maior parte a sua própria fundação “para fins de entendimento religioso”.
Hoje, após 23 meses de genocídio em Gaza, Blair volta aos negócios, ao reposicionar, quase duas décadas depois, como conhecedor do Oriente Médio. Supostamente tem aconselhado a Casa Branca e conversado com o genro de Donald Trump, Jared Kushner, sobre o mais recente plano do presidente americano para Gaza.
A estratégia, ou pelo menos uma versão dela, está contida em 38 páginas de slides que contém uma visão do pós-guerra.
Desde outubro de 2023, Gaza tem sido o maior laboratório de morte do século XXI — uma lição horrível de como reescrever as regras da guerra, ao usar drones e robôs para maximizar danos colaterais; alavancar a inteligência artificial para rastrear alvos; explorar a fome e pontos de distribuição de suposta ajuda humanitária, no intuito de dissuadir a resistência; desmantelar sistemas de saúde e educação; e desabrigar toda uma nação.
Josef Mengele, médico nazista que conduziu experimentos mortais nos prisioneiros de Auschwitz, veria como conquistas muitos dos parâmetros de desempenho israelenses.
Um novo experimento humano está prestes a se impor sobre a população civil de Gaza, no objetivo de construir US$ 324 bilhões em “megaprojetos” — a la Dubai — sobre suas sepulturas.
Os imperadores de Gaza
A primeira coisa a notar sobre os slides é sua brutalidade. O projeto é desprovido de qualquer reconhecimento de Gaza como terra palestina. Nisso, seus autores regrediram aos padrões morais da Rússia czarista, e ao que aconteceu em um campo nos arredores de Moscou apenas quatro dias após a coroação de Nicolau II.
Até meio milhão de russos se reuniram em Khodynka para receber comida e “presentes” do imperador, que supostamente incluíam pães, salsichas, pretzels, pães de mel e copos comemorativos. Quando surgiram rumores de que não haveria cerveja e pretzels suficientes a todos, e que os copos esmaltados continham moedas de ouro, houve um tumulto, com mais de 1.200 pessoas mortas e até 20 mil feridas.
Não importou. O imperador e a imperatriz prosseguiram com seus planos. Apareceram na frente das multidões na varanda do pavilhão de campo do czar, momento em que cadáveres já eram removidos.
É equivalente a como imperadores contemporâneos se comportam sobre a população faminta e moribunda de Gaza — só que, hoje, a escala da tragédia faz a indiferença de Nicolau II com o destino de seu povo parecer comedida.
Trump pretende construir uma maravilha no estilo Dubai sobre as sepulturas frescas de 64 mil mortos — e contando. Tamanha falta de empatia, ou psicopatia plena, estende-se tanto aos vivos quanto aos mortos: o paraíso a ser convertida Gaza, de um “proxy iraniano em ruínas” a um “próspero aliado abraâmico”, não será apenas “livre do Hamas”, mas também livre da grande maioria dos palestinos.
Na verdade, quanto mais palestinos saírem, mais barato o projeto. Para cada emigrante, o plano calcula uma economia de US$ 23 mil; para cada 1% da população que se relocar, são US$ 500 milhões em economias. Para induzir os palestinos a deixarem sua terra, o plano propõe dar a cada pessoa US$ 5.000 e subsidiar seu aluguel em outro país por quatro anos, bem como comida por um ano.
Acredita-se que os autores do plano sejam israelenses. A proposta parece encabeçada por Michael Eisenberg, investidor israelo-americano, e Liran Tancman, empreendedor de tecnologia e ex-agente de inteligência militar. Suas iniciais surgiram na primeira página dos slides, ao lado de um misterioso “TF”.
Eisenberg e Tancman fizeram parte de um grupo de oficiais e empresários israelenses que concebeu a Fundação Humanitária de Gaza (GHF) no fim de 2023, semanas após a ação do Hamas em Israel, segundo o New York Times.
Supõe-se que um rascunho do plano de redesenvolvimento tenha sido concluído em abril passado, apresentado ao governo Trump. Não se sabe se esta proposta foi discutida durante o recente encontro entre Kushner e Blair, ambos os quais têm elaborado ideias semelhantes.
Mas a direção é clara.
Fadado ao fracasso
Blair, por exemplo, deveria perceber que qualquer plano concebido sobre o pretexto de tornar Gaza “livre do Hamas” está fadado ao fracasso. Deveria recordar de sua própria passagem como primeiro-ministro britânico, e os esforços de seu governo para negociar com o Exército Republicano Irlandês (IRA).
Imagine se alguém o abordasse com a proposta de desrepublicanizar o Short Strand, então lar do Exército de Libertação Nacional Irlandês, ou toda a Belfast Ocidental como uma condição para a paz.
Por sorte, a direção assumida por três premiês consecutivos — Margaret Thatcher, John Major e Tony Blair —, no processo de paz, foi precisamente oposta. O reconhecimento do papel de Dublin no Norte foi uma conquista sob Thatcher, seguida por conversas diretas sob Major, que fez a maior parte do trabalho.
As ações incluíram uma série de reuniões entre Michael Ancram, então ministro do governo de Major, e o líder do IRA, Martin McGuinness. Anos depois, Ancram detalhou as reuniões, com notável alegria. Mas a existência desta comunicação desafiavam absolutamente a linha do governo: de que o Reino Unido não falaria com aqueles que considera terroristas.
O IRA iniciou o processo de descomissionamento após Londres prometer libertar prisioneiros republicanos da prisão de Maze, e quando garantias políticas se concederam para o compartilhamento de poder em Stormont como parte do chamado Acordo de Sexta-Feira Santa.
McGuinness e seu arqui-inimigo de outrora, Ian Paisley, chefe do Partido Unionista Democrático, tornaram-se aliados. Era tanta sua afinidade que ficaram conhecidos como os “Irmãos Risonhos” — os Chuckle Brothers.
Agora aplique a fórmula que trouxe paz à Irlanda do Norte a Gaza e ao Hamas, proscrito como grupo terrorista no Reino Unido, e o que temos em mãos? Conversas diretas com o Hamas sobre a libertação de prisioneiros, seguidas de negociações com os grupos de resistência sobre um suposto governo técnico, junto com a restauração de todas as agências assistenciais das Nações Unidas, o fim do cerco e um enorme fluxo internacional de dinheiro e concreto para reconstruir o território.
A longo prazo, o Hamas poderia oferecer uma pausa indefinida ao conflito armado.
Essa é a fórmula irlandesa aplicada a Gaza. Mas o curso diametralmente oposto está sendo tomado, porque todo o pensamento sobre a Palestina é visto através do prisma da necessidade de defender e armar o Estado sempre expansionista de Israel.
A paz na Irlanda do Norte não poderia ter sido alcançada sem o envolvimento ativo de Dublin e Washington. Os Estados Unidos hoje — representados por uma sucessão de presidentes, democratas e republicanos — são o principal sustentáculo da Grande Israel e o principal obstáculo a uma paz sustentável.
O Hamas é excluído do processo político mais amplo desde que o partido venceu as últimas eleições livres na Palestina em 2006. A tarefa de Blair a esse respeito se facilitou pelo comportamento da Autoridade Palestina e dos regimes árabes. Blair está longe de estar sozinho na tentativa de aplicar uma solução inquisitiva e contra a vontade do povo palestino.
Dez anos atrás, Blair se reuniu com Khaled Meshaal, então diretor político do Hamas. Dois desses encontros ocorreram em Doha, no Catar, quando Blair ainda era emissário internacional. As reuniões, porém, continuaram por algum tempo mesmo depois de sair do cargo.
Blair, acompanhado pelo MI6, tentou obter crédito por um documento fundacional do Hamas que reconheceria as fronteiras dos territórios ocupados de 1967 e se oferecer a encaminhá-lo a Washington, segundo fontes palestinas. O Hamas naturalmente recusou a tentativa de Blair de se intrometer em um assunto interno.
Seus encontros foram vistos na época como reconhecimento de que a tentativa de excluir o Hamas do governo e das conversas sobre um futuro para a Palestina havia fracassado.
Nos últimos 23 meses, Israel tem tentado conquistar pela força o que 17 anos de um cerco cada vez mais brutal não conseguiram alcançar.
Hoje, Blair se mostra mais um homem extremamente rico e bronzeado, absolutamente à vontade na companhia de outros multimilionários como Kushner. Um milhão de dólares não lhe seria mais nada. Sucessivos fracassos no Oriente Médio têm sido um negócio lucrativo para Blair, ao constranger os planos de enriquecimento próprio pós-mandato do premiê Boris Johnson.
Mas não tenham dúvidas: seu plano para Gaza, ou qualquer outro esquema arquitetado sobre as cabeças do povo palestino, terá o mesmo destino de todos os outros projetos natimortos. Gaza não pode ser “limpa” do Hamas, assim como a Inglaterra não pode ser limpa de seus trabalhistas e conservadores ou a França de seus liberais.
Nenhum processo de paz existiria na Irlanda do Norte sem o consentimento do IRA, e mesmo com ele, ainda hoje existem grupos dissidentes ativos.
Nenhum governo palestino pós-guerra conseguirá operar em Gaza sem o consentimento do Hamas, declarado ou implícito. Este é o único fato em campo efetivamente estabelecido pelos últimos 23 meses de resistência.
Além disso, em todos os clichês acrônimos — planos vertiginosos para portos, aeroportos, arranha-céus, sistemas viários no estilo saudita, entre outros projetos faraônicos — um pequeno detalhe segue faltando.
Que lugar haveria na Riviera de Gaza, aventada por Trump, para um monumento aos mais de 64 mil palestinos mortos e 160 mil feridos no genocídio executado por Israel? E como afinal chamaríamos isso? Um memorial para o Holocausto?
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