Portuguese / English

Middle East Near You

A imprensa brasileira e a narrativa confortável da “guerra” entre Israel e Palestina

Jornalistas registram a destruição da Torre al-Jalaa, que abrigava escritórios da imprensa internacional, após ataques aéreos israelenses, na Faixa de Gaza, 15 de maio de 2021 [Mohammed Abed/AFP via Getty Images]
Jornalistas registram a destruição da Torre al-Jalaa, que abrigava escritórios da imprensa internacional, após ataques aéreos israelenses, na Faixa de Gaza, 15 de maio de 2021 [Mohammed Abed/AFP via Getty Images]

Guerras são formadas por pelo menos dois lados minimamente simétricos. Por vezes, elas vão muito além das armas, tanques e bombas, alcançando um front abstrato que é o do convencimento da opinião pública através da propaganda.

Assim, um lado da guerra só pode se fortalecer quando está interligado por um cimento ideológico que dá sustento. Para tanto, muitas vezes se constrói uma imagem desumanizada do outro lado, ao mesmo tempo em que se fortalece uma identidade nacional, um propósito para se lutar, uma justificativa geral para instigar o apoio popular.

Uma das estratégias é o uso de uma imagem da loucura para descrever o lado ou o grupo contra quem se luta. Foucault traduziu isso com o conceito de “Segregação da Loucura”, no qual um lado toma para si o domínio da razão e da justiça, enquanto o outro é o lado da loucura, representando um discurso desmerecido, descredibilizado, desprovido de lógica – ignora-se o louco e suas razões.

Na história do jornalismo podemos identificar diversos episódios nos quais a grande imprensa se uniu em torno da criação de uma narrativa de guerra para construir a defesa de um lado. A imprensa brasileira não é um ponto fora da curva nesse sentido, sob a autodefesa da “imparcialidade” é possível perceber que seu lado está muito bem escolhido e alinhado.

Análises das notícias mais recentes

A primeira notícia dos recentes conflitos na Folha de S. Paulo é do dia 7 de maio. A chamada cita um “Confronto em Jerusalém” que “deixa 17 feridos”. No texto, citam como feridos 14 palestinos e 3 agentes israelenses; depois diz sobre um “incidente” que resultou em dois palestinos mortos e um terceiro ferido. As fotos dos manifestantes em Jerusalém destacam 4 bandeiras do Hamas – o motivo do protesto foi dado como “contra a expulsão de palestinos que vivem em terras disputadas com colonos judeus.”. Em seguida, “retirada de famílias palestinas”, judeus que provam moradia antes de 1948, “um espaço sagrado” por conta da tumba de Simeão.

LEIA: Estudo aponta que cobertura da mídia brasileira se coloca a favor da ocupação de Israel enquanto ataca palestinos

O jornal também traz um artigo que coloca absolutamente toda a culpa de todo o conflito no Hamas, que todo tipo de ação israelense é na verdade um contra-ataque justo e legítimo. Em nenhum momento traz algo sobre palestinos mortos.

Na notícia sobre o Dia de Jerusalém, a data comemorativa se tratava da “reunificação” de Israel em 1967. Em uma coluna especializada em leituras de conjuntura pelo mundo, o dia de Jerusalém, 1967 é colocado como uma conquista da porção oriental da cidade. Ainda no editorial de um dos jornais mais tradicionais do Brasil, é defendido que as redes sociais são estimulantes para que jovens palestinos comecem a lançar pedras contra as forças de segurança israelenses.

Enfim, a narrativa se constrói nos detalhes. A “expulsão” torna-se “retirada”, e ganha justificativa – a tumba de um sacerdote que viveu perto do ano de 300 a.C. A morte de três palestinos está associada a um “incidente”, os 14 palestinos feridos em protestos na última sexta do Ramadã mal mereceu espaço na manchete. Em nenhum momento existe a palavra “sionista”, mas o verso de uma canção cantada em árabe ganhou destaque: “com nosso sangue e alma, vamos te redimir, Aqsa”, diz a matéria.

Na Isto É a situação é mais desesperadora quando um jornalista assina uma matéria em que diz que Israel nunca atacou nenhum outro povo ou país, é uma vítima dos árabes e prospera na região do Oriente Médio apesar destes. A “Gazeta do Povo” publicou uma tradução de um artigo do ex vice presidente dos Estado Unidos, Mike Pence, no qual ele afirma que o governo Biden-Harris não apenas encorajou grupos terroristas antissemitas, como também encerrou com “anos de paz” no Oriente Médio.

Além disso, pouco importa se a Human Rights Watch, a Anistia Internacional e repórteres internacionais que cobriram Gaza dizem enfaticamente em seus registros e relatórios que não foi constatado o uso de escudo humano em Gaza. O Estadão surfa na onda delirante do ocidente orientalista que diz que o Hamas é o grande culpado pela situação em Gaza, inclusive usando a técnica do “escudo humano” para se proteger e poder passar a imagem de “vítima”, além de destruir propositalmente torres de eletricidade em Gaza, barrar a entrada de alimentos e medicamentos. Não suficiente, diz que o Ministério da Saúde de Gaza é administrado por um projeto tipo o de Goebbels, propagandista diretamente ligado a Hitler. Em outro texto editorial, mais uma vez as palavras “conflito”, “civis inocentes”, “hostilidade mútua”, “crise religiosa”, demonstrando que tampouco tiveram interesse de abordar conteúdo histórico e entidades internacionais que acompanham e reportam a situação da região.

LEIA: Quem é Marcos Susskind, o israelense-brasileiro que age como um supremacista judeu, atacando covardemente jornalistas brasileiras?

Os esforços da imparcialidade do jornalista Guga Chacra, do Globo, são inúteis. Seu foco nos foguetes lançados pelo Hamas ignoram a resistência palestina dentro de Gaza e na Cisjordânia. Chacra, que tem excelente formação em jornalismo, escreve “Palestinos, incluindo crianças, morrerão, como sempre morreram. Prédios serão destruídos, como sempre foram” culpando… os foguetes do Hamas. O jornalista, que também estudou relações internacionais nos Estados Unidos, ainda completa que a Primeira Intifada – caracterizada como pacífica – teve avanço em direção às negociações de Oslo. Negociações essas que pioraram a situação dos palestinos da Cisjordânia, desembocando na tão recriminada Segunda Intifada. Poderia ser uma desinformação em relação às dinâmicas do Oriente Médio vinda do especialista da região?

A resposta é simples – a narrativa do conflito simétrico é confortável, ignorar a complexidade e a história é cômoda, todo mundo aceita. O discurso vazio de que a “paz está longe”, que muitos tentam vender como “opinião”, é aconchegante. Tratar como um conflito religioso é convidativo. E é nesse estado que a grande parte da imprensa brasileira mainstream se encontra, sentada em cima de relatórios, relatos, sentimentos, mortos, demolições, expulsões que são… confortáveis.

No entanto, não devemos nos esquecer do edifício de 13 andares que abrigava jornalistas internacionais como aqueles ligados à Associated Press e a Al Jazeera bombardeado, junto com as outras 450 construções. Bombardeios que somaram 230 palestinos mortos, incluindo 65 crianças, mais de 50 mil desabrigados porque tiveram que abandonar suas casas. Fora a escassez de alimentos, medicamentos, água potável, energia, internet. Tudo isso em onze dias, no meio de uma pandemia.

As formas de exercer poder e oprimir são diversas, o domínio e a divulgação de narrativas seletivas é apenas uma delas. Lembremos do nosso papel, lembremos de companheiros de profissão daquele edifício de 13 andares, lembremos da história, juíza de todos nós.

LEIA: Centro Barão de Itararé promove debate sobre Mídia e Palestina

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
América LatinaArtigoÁsia & AméricasBrasilIsraelOpiniãoOriente MédioPalestina
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments