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Após o genocídio iazidi em 2014, ‘nunca mais’ deveria significar de fato ‘nunca mais’

10 de fevereiro de 2021, às 12h00

Iazidis iraquianos participam de uma vigília em memória das vítimas de ataques do Daesh (Estado Islâmico) contra a comunidade local, na região de Sharya, a 15 km da cidade de Dohuk, na região autônoma do Curdistão, norte do Iraque, em 3 de agosto de 2020 [Safin Hamed/AFP via Getty Images]

Em 6 de fevereiro último, 104 membros da comunidade iazidi mortos pelo Daesh (Estado Islâmico) foram exumados e sepultados novamente em cerimônia realizada em Kocho, no distrito de Sinjar, norte do Iraque. Os iazidis que vivem em diferentes países da região reuniram-se na sexta-feira para prestar homenagens e velar seus mortos.

Historicamente, os iazidis sofrem da destruição sistemática e da privação de seus direitos religiosos e socioeconômicos. Estão entre os povos deslocados mais vulneráveis do Oriente Médio, sobretudo devido à sua identidade religiosa. Estima-se que ocorreram 74 ataques genocidas ao todo contra o povo iazidi, até então. O último de tais ataques aconteceu em 2014 e parece ainda ignorado pelos países da região e pela comunidade internacional.

Os iazidis são, de modo geral, uma minoria religiosa curda que vive principalmente no norte do Iraque, oeste do Irã, leste da Turquia e norte da Síria. Não há dados específicos, mas sua população é estimada entre 500 mil e um milhão de pessoas.

A religião dos iazidis inclui elementos do zoroastrismo (antiga fé persa), judaísmo, cristianismo e islamismo. Os iazidis frequentemente são difamados como “hereges” e “adoradores do diabo”, de modo que a minoria etnorreligiosa logo tornou-se alvo dos terroristas do Daesh. Em 3 de agosto de 2014, combatentes do grupo fundamentalista atacaram os iazidis em sua terra ancestral de Sinjar. Cerca de 500 mil pessoas viviam na região antes da invasão.

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Segundo o Escritório de Resgate Iazidi, o Daesh sequestrou 6.417 iazidis somente naquele mês, dos quais 3.451 foram resgatados ou fugiram. Contudo, pouco menos de três mil membros da comunidade ainda permanecem em cativeiro e desaparecidos, sem a menor pista sobre seu paradeiro. Mais de 2.700 crianças iazidis tornaram-se órfãs neste processo. Oitenta covas coletivas foram descobertas, até então.

A ONU estima que cinco mil iazidis foram mortos no massacre de 2014. A maioria dos assassinatos ocorreu nos primeiros dez dias da ocupação do Daesh sobre a região de Sinjar.

Vian Dakhil representa o povo iazidi no parlamento iraquiano. Na primeira semana de agosto de 2014, Dakhil caiu às lágrimas ao relatar a seus colegas no plenário: “Há iazidis que vivem hoje nas montanhas de Sinjar. Sr. Presidente, somos chacinados hoje sob a bandeira de ‘não há deus senão Allah’. Sr. Presidente, até então, quinhentos homens iazidis foram executados. Sr. Presidente, nossas mulheres são levadas e vendidas como escravas … Irmãos, para além de nossas disputas políticas, queremos solidariedade humanitária. Falo aqui em nome da humanidade. Salvem-nos! Por favor, socorro!”

Infelizmente, a maioria dos governos e organizações não ouviram seus apelos, uma vergonha para todos nós – uma vergonha para a humanidade. O Iraque e a comunidade internacional de fato fracassaram em proteger as inocentes vítimas iazidis. Alguns dias após o discurso de Dakhil, em 11 de agosto, o maior assassinato em massa contra o povo iazidi sucedeu-se em Kocho, onde mais de 700 pessoas foram executadas – mortas meramente por serem iazidis. O Daesh assassinou, sequestrou e escravizou milhares de homens, mulheres e crianças, além de deslocar populações inteiras a campos de refugiados.

Investigadores da ONU então divulgaram um relatório denominado “They Came to Destroy: [Daesh] Crimes against the Yazidis” (“Eles vieram para destruir: Os crimes [do Daesh] contra os iazidis”), no qual descreveram o genocídio cometido pelo grupo terrorista contra o povo iazidi em solo iraquiano. Em fevereiro de 2016, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução para corroborar com a classificação de crime de genocídio cometido contra iazidis, cristãos e outras minorias etnorreligiosas no Oriente Médio, perpetrado pelo Daesh. No mês seguinte, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos seguiu tais passos.

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Reconhecer os ataques do Daesh contra os iazidis como genocídio é bastante importante, mas não basta. Caso crimes de genocídio e violência sexual permaneçam impunes, o precedente de impunidade ameaça o próprio fundamento dos direitos humanos de grupos minoritários em todo o mundo. Deste modo, o governo iraquiano e a comunidade internacional têm o dever de agir com base em evidências para indiciar e condenar os responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade executados pelo Daesh.

Sepultar novamente 104 iazidis mortos pelo Daesh pode representar parte de um rito de encerramento essencial. Após seis anos, ao menos alguns iazidis conseguiram enfim despedir-se devidamente de seus entes queridos. Lembrem-se, contudo, que cerca de três mil iazidis ainda estão desaparecidos. Não podemos esquecê-los, pois trata-se de algo crucial para mobilizar nosso apoio e solidariedade aos iazidis, a fim de garantir que os mortos e desaparecidos obtenham justiça.

Cada vez que ocorre um genocídio, o mundo todo afirma “nunca mais”. Após o genocídio iazidi em 2014, “nunca mais” deveria significar de fato “nunca mais”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.