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Novo relatório da Anistia Internacional critica duramente o Catar

Logotipo oficial da Copa do Mundo FIFA Catar 2022 é projetado no edifício do Arquivo Nacional do Catar, em Doha, Catar, 3 de setembro de 2019 [Mohammed Dabbous/Agência Anadolu]

“Por cinco meses, tive de viver com muito pouca comida e nenhum salário. Minha família foi bastante afetada. Lágrimas me vêm aos olhos quando me lembro onde tivemos de chegar para encontrar comida… nas latas de lixo!” Este é Jack, trabalhador imigrante do Quênia descrevendo o que lhe ocorreu no país com a maior renda per capita do mundo. O país é o Catar, país anfitrião da Copa do Mundo FIFA de 2022. Também anfitrião de quase dois milhões de imigrantes que trabalham nas obras de infraestrutura para a maior festa do futebol mundial.

A história de Jack não está sozinha, em uma nova investigação conduzida e divulgada pela Anistia Internacional que condena o governo do Catar pelas promessas vazias de dar fim a abusos e explorações de trabalhadores imigrantes. O relatório, intitulado “All Work, No Pay” (“Somente trabalho, sem pagamento”, em tradução livre) foi publicado hoje (20). O documento detalha como centenas de operários não receberam qualquer pagamento por sua força de trabalho ou foram até mesmo coagidos a aceitar acordos parciais pelos salários devidos, após a falência de três empresas de construção civil, uma das quais propriedade de um alto membro da família Al Thani, que governa o país.

Que os catarianos, apesar de alguns esforços para reverter o tratamento aos imigrantes no país, viram-se outra vez enfrentando críticas severas da comunidade internacional não deve ser visto com espanto. Em junho de 2019, uma investigação conduzida pela emissora alemã WDR revelou que o não-pagamento de salários é um problema comum a milhares de operários do Nepal, por exemplo, em projetos realizados no Catar. A reportagem reuniu entrevistas com imigrantes que relataram diversas formas de abuso além da inadimplência, incluindo a suspensão de vistos, péssima acomodação e condições de trabalho nocivas ou mesmo insalubres. Outras investigações também detalharam o modo como as autoridades costumam tratar as mortes repentinas de trabalhadores imigrantes.

Muitos dos abusos retomam ao infame sistema kafala de trabalho, que vincula empregados a empregadores de forma compulsória e torna virtualmente impossível trocar de trabalho. Há muitos anos, as autoridades catarianas prometem abolir o sistema kafala. Em dezembro de 2016, a rede pública britânica BBC reportou que “o Catar está encerrando seu sistema de promoção de trabalho… O país afirma que uma nova lei com base contratual assumirá o lugar do sistema kafala, garantindo maior flexibilidade e proteção.” No entanto, quase três anos depois, como torna-se claro pelo relatório da Anistia Internacional, o sistema kafala ainda permanece vigente, a despeito de qualquer legislação promovida para substituí-lo.

De fato, é uma questão recorrente no Catar: a legislação, embora documentada, não é cumprida, senão parcialmente. Em outubro de 2017, por exemplo, o governo do Catar chegou a um acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) para reverter seus sistema empregatício, após a agência das Nações Unidas aplicar pressão global por meio de uma extensiva campanha de mídia – ao mencionar a Copa do Mundo – para compelir o país do Golfo a acelerar as mudanças. Sob os olhares da OIT, a fim de apaziguar sua imagem pública, o governo comprometeu-se a melhorar o acesso à justiça aos trabalhadores imigrantes.

Sua principal maneira de fazê-lo foi por meio de reformas ao sistema pelo qual os trabalhadores podem registrar reclamações, substituindo as cortes trabalhistas conhecidamente ineficazes do país por novos “Comitês de Conciliação das Disputas Trabalhistas”. Os comitês passaram a operar em março de 2018. A Anistia caracteriza tais medidas como “reformas potencialmente promissoras”, em particular conforme tais comitês têm por responsabilidade (supostamente) julgar casos trabalhistas e garantir o acesso à saúde aos trabalhadores em, no máximo, seis semanas.

Trabalhadores realizam obra no Catar [Richard Messenger/Flickr]

“Em alguns casos, trabalhadores imigrantes receberam benefícios, observa o relatório. “Entretanto, a realidade de muitos trabalhadores imigrantes é muito menos promissora e os profundos desafios ainda enfrentados pelos trabalhadores em busca de justiça por meio dos Comitês – em particular, processos demorados e o não-pagamento de indenizações – são bastante comuns em tais casos, envolvendo centenas de trabalhadores representados por este relatório.” Trabalhadores como o queniano Jack desejam receber o dinheiro devido apenas “para voltar para casa com minha esposa e filho.”

O relatório da Anistia Internacional menciona outros exemplos de promessas não-cumpridas, incluindo um programa anunciado em 30 de outubro de 2018 que supostamente pretende auxiliar os trabalhadores que aguardam pelo pagamento de salários atrasados. O plano, chamado de Fundo de Garantia e Apoio aos Trabalhadores, resultou de uma lei aprovada pelo Emir catariano, a fim de apoiar vítimas de abusos trabalhistas que enfrentam dificuldades financeiras.

Antes da aprovação da lei, os imigrantes em situação degradante de miséria, sem qualquer renda, eram sistematicamente forçados a abordar seus empregadores em cortes civis, a fim de receber os salários devidos. No entanto, devido aos enormes atrasos e às taxas impostas, os requerimentos quase nunca eram aplicados. Supostamente, o fundo pretende dar fim a este problema e diminuir as privações impostas aos trabalhadores imigrantes, ao lhes pagar os salários atrasados. O governo então deveria cobrar tais valores dos empregadores e requerer o reembolso do fundo. Na teoria, parece bom.

Todavia, a realidade é outra. O relatório da Anistia Internacional observa claramente “até a data desta publicação, autoridades catarianas ainda não colocaram em prática os fundos de garantia e nenhum trabalhador recebeu qualquer apoio proveniente desta fonte.”

Jack e centenas de outros imigrantes sentem-se impotentes, sem qualquer rendimento, em condições de vida bastante sombrias, sobrevivendo por meio de alimentos doados. Trata-se de uma história que deveria envergonhar o Catar e preocupar incisivamente a alta cúpula da FIFA (Federação Internacional de Futebol), que administra o esporte no mundo. Trata-se de uma história que deveria voltar a chamar a atenção da OIT. O desafio de dar fim aos abusos trabalhistas contra imigrantes não pode ser deixado de lado, abandonado ao léu. A legislação precisa ser adotada, as regulações precisam ser cumpridas e os compromissos feitos pelo governo devem ser aplicados por completo. E tudo isso, imediatamente.

Caso contrário, as dúvidas postas sobre os méritos do Catar ao ser escolhido como sede da próxima Copa do Mundo de Futebol somente aumentarão.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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