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Como Israel planta as sementes da guerra no Sudão do Sul

Famílias sul-sudanesas deslocadas pelo conflito em fila para vacinação, após fugirem da cidade de Pajok pela fronteira sul do país, em direção ao distrito de Lamwo, norte da Uganda, 5 de abril de 2017 [James Akena/Reuters]

Em 2015 – dois anos após a eclosão da violenta guerra civil no Sudão do Sul, que levou milhões à margem da fome –, o governo sul-sudanês lançou um projeto agrário multimilionário chamado Horizonte Verde. O objetivo declarado do projeto era desenvolver fazendas de modo que o país pudesse alimentar sua população e produzir excedente para exportação.

A oferta de tão necessário projeto foi concedida por Israel Ziv, ex-diretor de operações do Exército de Israel, que vangloriou-se na ocasião da experiência israelense em desenvolvimento agrário. Tal aventura internacional foi iniciativa própria de Israel Ziv.

Ao invés de combater a fome, no entanto, o Horizonte Verde foi utilizado para alimentar o conflito mortal entre o presidente sul-sudanês Salva Kiir e seu ex-vice-presidente e companheiro de levante, Riek Machar.

Em julho, o jornalista investigativo Sam Mednick, residindo na capital Juba, em relatório à organização não-governamental Projeto de Investigação sobre Corrupção e Crime Organizado (OCCRP, em inglês), revelou como Ziv transferiu ao menos US$ 140 milhões ao banco central do Sudão do Sul para a venda de armas israelenses ao governo sul-sudanês. Para tanto, Ziv utilizou seus contratos com os Ministérios de Defesa e Agricultura do país africano, Ministério de Defesa de Israel e a empresa multinacional Trafigura, que comercializa bens primários. As armas incluíam rifles, lançadores de granadas e lança-foguetes.

A história suja de Israel Ziv

Em 2016, a imprensa israelense revelou que Ziv estava auxiliando o Presidente do Sudão do Sul Salva Kiir a limpar sua reputação, após a ONU descobrir que seu governo permitia o estupro como arma de guerra.

Outra investigação demonstrou como a empresa privada de Israel Ziv esteve envolvida em acordos de segurança no Sudão do Sul, ao invés de financiar projetos agrários, como afirmava o militar israelense.

Em dezembro de 2018, o Departamento de Tesouro dos Estados Unidos impôs sanções a Ziv por seu papel na extensão do conflito, ao alegar que a guerra civil resultou em 400.000 mortos e quatro milhões de deslocados.

Armas como diplomacia

Os acordos obscuros de Ziv e a história suja de suas transações comerciais representam bem a abordagem israelense sobre a diplomacia na África. “Por décadas, Israel investiu muito pouco em sua diplomacia formal no continente e preferiu contar com diversos empreendedores privados e intermediários para manter suas relações com os líderes africanos,” afirma Yotam Gidron, cujo livro a ser lançado “Israel in Africa” (“Israel na África”), concentra-se nas relações entre o estado sionista e os países africanos.

A exportação de armas a países africanos é fundamental à abordagem israelense sobre o continente e à sua tentativa de contrapor críticas sobre a brutal ocupação da Palestina, declara Gidron. Ziv personifica o uso de intermediários à diplomacia que Israel decidiu empregar sobre o continente africano.

Israel Ziv, ex-diretor de operações do Exército de Israel [Wikipedia]

Cultivando conflito

Israel possui uma história longa e sangrenta no Sudão do Sul.

Oficialmente, desde que o país africano conquistou sua independência, em 2011, Israel continuamente lhe vendeu armas, tecnologia de vigilância e forneceu treinamento militar e de segurança doméstica – a maior parte destes, utilizados para cometer crimes de guerra.

Em 2015, o Conselho de Segurança da ONU adotou um banimento sobre a venda de armas aos lados em conflito. Um comitê, então estabelecido para  monitorar a implementação das sanções, descobriu que ambos os lados na guerra civil no país conseguiam adquirir armas apesar do banimento.

O relatório do inquérito divulgou evidências fotográficas do uso de rifles de ataque ACE, fabricados em Israel, entre os arsenais tanto do governo sul-sudanês quanto das forças de oposição.

Israel também vendeu equipamentos de escuta ao Sudão do Sul após o início da guerra civil. Este equipamento foi utilizado para identificar e prender oponentes políticos do governo, além de jornalistas. Segundo Eitay Mack, advogado e ativista israelense, Israel não somente instalou os equipamentos de escuta para o governo sul-sudanês, como também continuou a operá-lo por meio de técnicos israelenses posicionados no país africano.

Oficiais israelenses garantiram à ONU que Israel interromperia todas as transferências de equipamentos letais às partes em conflito no Sudão do Sul, Entretanto, a Agência de Controle de Exportações de Defesa (DECA, em inglês), vinculada ao Ministério da Defesa de Israel, continuou a conceder licenças de exportação a empresas israelenses para venderem armas letais por meio de Israel Ziv e do projeto Horizonte Verde – em clara violação aos embargos da ONU, Estados Unidos e União Europeia.

Como se retrocedesse aos tempos nos quais Israel vendia armas ao apartheid da África do Sul, o estado sionista voltou a demonstrar a falta de qualquer pudor em armar um regime condenado universalmente.

A indústria secreta de armas em Israel

Em 2017, Eitay Mack e outros 54 ativistas israelenses registraram uma queixa na Suprema Corte de Israel para que investigassem a exportação de armas israelenses ao Sudão do Sul. As cortes israelenses impuseram sigilo sobre o caso, preservando o segredo e as ambiguidades sobre o processo de autorização da venda de armas de Israel a países africanos. Diversos requerimentos por liberdade de informação foram registrados junto ao Ministério da Defesa de Israel; contudo, também negados.

Israel reconhece os benefícios econômicos e a importância diplomática de exportar armas (testadas em campo sobre os palestinos) a países africanos. Por essa razão, o governo israelense protege com tamanho afinco as informações sobre exportações de armas à África, ao obstruir esforços de ativistas e representantes da sociedade civil que desejam obter acesso, transparência e fiscalização de interesse público às exportações militares de Israel.

O apoio mortal de Israel à África

Diplomatas israelenses instalados no continente africano propagandeiam com louvor ofertas de tecnologia agrária e suprimento de água feitas por Tel Aviv, assim como suas promessas de libertar o continente da seca e escassez alimentar. Com isso, buscam encobrir outro aspecto, muito mais letal, da assistência de Israel à África: o fato de que o estado sionista armou os mais sanguinários regimes no continente africano.

Na década de 1990, Israel violou outro embargo internacional à venda de armas, ao fornecer equipamentos às forças do governo de Ruanda, dominadas pela etnia hutu, ao mesmo tempo em que armava o exército rebelde liderado por Paul Kagame, com munição, rifles, granadas e outros acessórios, enquanto o genocídio ocorria flagrantemente no país. Israel também treinou forças militares e paramilitares ruandesas nos anos que antecederam o massacre.

Além disso, Israel treinou unidades de guarda dos regimes opressivos em países como Camarões, Togo e Guiné Equatorial.

Forças da ONU deslocam-se no interior do Sudão do Sul, em 1° de maio de 2018 [UNMISS/Flickr]

Israel e Sudão do Sul: uma relação especial

O envolvimento atual de Israel nos conflitos no Sudão do Sul é “excepcional” em sua história de exportações militares, afirma Mack. “Isso vai muito além da ganância. Israel luta hoje pela viabilidade de um projeto no qual investiu bastante durante anos e anos.”

Segundo Yotam Gidron, embora o Sudão do Sul não tenha sequer uma década desde sua independência e reconhecimento, sua relação amistosa com Israel data de fato dos anos 1960, quando o Mossad passou a fornecer apoio militar a rebeldes sul-sudaneses, em sua luta histórica por independência. O Mossad chegou a produzir peças de propaganda em nome do Anya-Nya, grupo rebelde sul-sudanês, entre 1969 e 1971.

Israel reconheceu o Sudão do Sul apenas 24 horas depois de declarar independência, em 2011.

“Para Israel, as relações com o Sudão do Sul representam uma via de acesso para conter a influência árabe e iraniana na região conhecida como Chifre da África, particularmente porque o Sudão é historicamente o aliado mais importante do Irã nesta região. Para o Sudão do Sul, relações próximas com Israel auxiliaram a assegurar e manter a simpatia e o apoio americano, o que explica parcialmente a razão pela qual continua a ser um dos estados mais pró-Israel dentre todas as nações africanas nos votos da assembleia das Nações Unidas,” explica Gidron.

De acordo com Eitay Mack, Israel deve suspender imediatamente todas as exportações militares e relacionadas à segurança ao Sudão do Sul, caso não queira ser caracterizado como cúmplice de crimes de guerra e lesa-humanidade no continente africano.

Dado o longo histórico de Israel em crimes de guerra contra palestinos e suas recorrentes violações do direito internacional nos territórios palestinos ocupados, é bastante improvável que o estado sionista faça a coisa certa e pare de alimentar o conflito no Sudão do Sul.

Conforme correm a venda de armas e os programas de treinamento militar, corre também o sangue dos povos oprimidos.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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