Como era de se esperar, o assassinato do militante de extrema-direita Charlie Kirk desencadeou uma gama de comentários sobre os perigos crescentes da violência política nos Estados Unidos – um debate que, por si só, está inevitavelmente condenado a alimentar ainda mais violência política.
A administração do presidente Donald Trump deixou claro que pretende instrumentalizar a morte de Kirk, argumentando que o seu assassinato reflete algo inerentemente violento naquilo a que chama a ideologia “esquerdista”.
Ora, isso é exatamente o oposto do que mostram as estatísticas: historicamente, a direita é muito mais propensa a recorrer à violência do que a esquerda.
Mesmo os dois homens acusados de tentarem assassinar Donald Trump no ano passado, antes das eleições, tinham, na melhor das hipóteses, agendas políticas confusas. Nenhum deles pode ser seriamente descrito como “esquerdista”.
Mas o nuances não são do interesse de sua administração, que se prepara para intensificar outras formas de violência política contra todos aqueles que classifica como “esquerda”: críticos, opositores do genocídio de Israel em Gaza, a comunidade transgênero, muçulmanos, imigrantes não-brancos e requerentes de asilo.
O vice-presidente J.D. Vance e o assessor sênior de Trump, Stephen Miller, prometeram vingança contra este grupo amorfo que insistem em caracterizar como um “movimento de terrorismo doméstico”, alinhado à esquerda. Ao substituir Kirk no seu podcast, Vance afirmou que o governo “trabalhará para desmantelar instituições que promovem a violência e o terrorismo no nosso próprio país”.
No mesmo podcast, Miller prometeu “usar todos os recursos que temos no Departamento de Justiça, na Segurança Interna [Homeland Security] e em todo o governo para identificar, perturbar, desmantelar e destruir as redes”.
O magnata das redes sociais Elon Musk, no entanto, enquadrou o futuro em termos mais graficamente apocalípticos, ao instigar, multidões de nacionalistas brancos, encabeçados por Tommy Robinson, em Londres. Falando-lhes por videoconferência, alertou Musk: “Quer escolham a violência ou não, a violência vai até vocês. Ou vocês reagem ou morrem”.
Resposta draconiana
Os primeiros alvos desta “guerra”, como chama Steve Bannon, ex-assessor de Trump, já foram escolhidos. Aqueles que se negam a canonizar Kirk – seu supremacismo branco e fundamentalismo cristão, para além de sua intolerância para com mulheres e minorias – serão localizados e punidos.
Um importante analista de direita, Matthew Dowd, foi despedido do seu cargo na MSNBC por ter dito o óbvio: que a própria intolerância de Kirk contribuiu para o clima politicamente carregado que levou a seu assassinato.
Medidas mais e mais draconianas estão iminentemente a caminho. A direção assumida se ilustra por um novo projeto de lei que visa revogar passaportes de cidadãos americanos por discursos políticos de que a administração não gosta.
A procuradora-geral de Trump, Pam Bondi, prometeu criar uma exceção à Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão, para sua interpretação do “discurso de ódio” – o que irá certamente abrir a porta à criminalização de qualquer discurso, como as críticas a Kirk, a que o governo se oponha.
Após Jimmy Kimmel, popular apresentador de televisão, ser sumariamente despedido por notar que a liberdade de expressão sofria restrições na esteira do assassinato de Kirk –supostamente sob forte pressão do chefe trumpista da Comissão Federal de Comunicações (FCC) –, o próprio Trump alertou que as cadeias de televisão seriam punidas caso noticiassem a pauta de forma “negativa”.
Em morte, Kirk foi moldado como santo à extrema-direita, sobretudo através da supressão das coisas que realmente disse, no intuito de alimentar um sentimento de fúria e ressentimento entre núcleos radicalizados. Tyler Robinson, de 22 anos, suspeito por seu assassinato, foi igualmente convertido em caricatura.
A história de Robinson é pouco conhecida, salvo o fato de que foi criado em uma família estritamente mórmon e republicana. Em vez disso, há uma corrida para encontrar quaisquer ligações que o possam pintar como “odiento esquerdista”, útil para construir uma narrativa de vingança para a extrema-direita.
Spencer Cox, governador republicano do Utah, tem sido central em manipular a narrativa sobre o caso até o momento. Foi ele um dos que “perguntou” para onde leva o assassinato de Kirk: “A questão é: o que vai mudar? Esse capítulo ainda escrevemos. Será este o fim de um capítulo sombrio da nossa história ou o início de um capítulo ainda mais sombrio?”
A pergunta é obviamente facciosa. A direita MAGA vê a morte de Kirk como tiro de partida, para legitimar uma rápida escalada de mais e mais violência política por parte do fascismo, emergente há anos, nos Estados Unidos, do qual Trump é protagonista. Fornecerá à extrema-direita os fundamentos para racionalizar sua repressão legal e social contra seus opositores – repressão que almejava desde o início.
Bolha de negação
O assassinato de Kirk é um álibi para a extrema-direita fascista se convencer de que a sua própria violência política não é mais do que “legítima defesa”.
Esta é uma fórmula já testada e aprovada.
Israel tem explorado esta estratégia à exaustão nos últimos dois anos, ao alegar que o massacre e mutilação de centenas de milhares de civis palestinos em Gaza seria “legítima defesa”. Isso só faz sentido para os israelenses porque sua classe política e midiática apagou da narrativa décadas de violência de Estado – apartheid, limpeza étnica e um cerco brutal de 17 anos a Gaza – que levaram diretamente à operação transfronteiriça do Hamas de 7 de outubro de 2023.
Israel apelou a essa mesma bolha de negação em meados de setembro, quando as Nações Unidas concluíram inequivocamente que seu regime tem cometido genocídio em Gaza.
O movimento MAGA de Trump tem feito basicamente o mesmo nos Estados Unidos, apagando os seus próprios atos de violência que antecederam a morte de Kirk. Claro que tampouco perdeu tempo em apagar registros da insurreição de extrema-direita no Capitólio, em janeiro de 2021, que pontuou o primeiro mandato de Trump.
No poder há menos de um ano, o segundo governo de Trump também tem erodido, retórica e materialmente, os alicerces das garantias constitucionais e legais do país para abrir caminho a uma repressão mais e mais dura.
Isso inclui o desaparecimento, sob detenção por agentes do ICE, de opositores internos que ousem falar dos direitos palestinos. Abrange a deportação de imigrantes e requerentes de asilo a países terceiros, muitas vezes contrariamente a decisões judiciais. Abrange igualmente suas tentativas de acabar com a cidadania automática, para as crianças nascidas nos Estados Unidos, de imigrantes regulares ou não. E ainda, cortes de financiamento brutais às universidades americanas, para as coagir a reprimir ainda mais estudantes que protestem contra o genocídio israelense em Gaza.
Tamanha opressão estrutural é muito mais perigosa e mesmo violenta do que qualquer coisa que um homem armado possa conseguir com uma única bala.
Narrativa superficial
É talvez compreensível que aqueles que tentam contrapor a pressão por uma repressão legal e social mais dura estejam ansiosos por encontrar falhas na narrativa oficial. A tarefa pode ser facilitada consideravelmente pela maneira como o FBI — a Polícia Federal americana — decidiu montar seu caso publicamente.
Robinson supostamente confessou seu crime em uma nota por escrito – nota esta que o diretor do FBI, Kash Patel, mencionou, apesar de afirmar ter sido destruída. Patel tampouco explicou como é que a nota foi destruída ou como é que é capaz de citar um documento que sequer já existe.
O relato do FBI sobre como Robinson se preparou e executou o assassinato é tão desnecessariamente labiríntico que é difícil acreditar que alguém se comportasse dessa forma, a menos que quisesse ser apanhado.
No entanto, Robinson não só executou um assassinato notavelmente preciso a 200 metros de distância, como conseguiu fugir das autoridades até que, segundo relatos, sua família o entregou.
Tudo isto cheira ou a uma incompetência gritante por parte de um FBI altamente politizado sob o comando de Patel, ou a uma narrativa conveniente e fabricada por essa mesma agência, altamente politizada, ansioso por implicar “a esquerda” e desencadear uma ronda mais violenta de guerras culturais.
Perante tais circunstâncias, não surpreende que alguns observadores – lembrando-se de uma série de assassinatos de líderes políticos identificados com a “esquerda” na década de 1960, como o presidente John F. Kennedy, seu irmão Robert Kennedy e o líder dos direitos civis Martin Luther King – estejam menos dispostos a acreditar nas narrativas oficiais que estão sendo promovidas.
Mas há uma coisa em que a esquerda e a direita mainstream parecem concordar. Culpam prontamente os “cantos obscuros” da internet – uma cultura de videojogos desumanizada, e interações polarizadoras e sem rosto nas redes sociais – que parecem ser particularmente prejudiciais a jovens rapazes descontentes e sem rumo, porventura assolados por problemas, diagnosticados ou não, de saúde mental.
Certamente, é satisfatório atribuir a deterioração do tecido cívico à fuga crescente deste grupo do mundo real ao isolamento online ou trocas anônimas. Contudo, até esta forma de compreender o aumento da desarmonia social e política serve para escamotear verdades mais profundas e priorizar uma narrativa outra, superficial.
Violência enraizada
Ofuscado pelo assassinato de Kirk, houve mais um ataque a tiros em uma escola em Denver, no estado do Colorado, no mesmo dia. Um jovem de 16 anos de idade, supostamente conhecido por defender visões neonazistas, feriu gravemente dois colegas com uma pistola antes de se suicidar.
Os dados mostram que a violência armada é um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos, não replicado em outros países, com uma cultura similar de videojogos ou mesmo maior, à qual esses jovens solitários parecem tão frequentemente atraídos.
Convenientemente, nosso olhar é direcionado a esses indivíduos perturbados, e não ao contexto político mais amplo que eles e nós habitamos.
Alguns afirmam que as razões à sua violência se encontram em seus comportamentos individuais. Outros procuram atribuir a culpa ao longo de fronteiras partidárias absolutamente sem significado – divisões políticas fabricadas por um aparelho de Estado servido por igual pelos dois grandes partidos que controlam o Congresso.
O assassinato de Kirk não é nem o começo nem o fim de um “capítulo sombrio” de violência política em âmbito doméstico, mas parte de uma longa linhagem de violência bastante enraizada no sistema político norte-americano.
Mais obviamente, a violência foi normalizada há eras na política externa bipartidária de “choque e pavor” (shock and awe), assumida por Washington.
Somente nos últimos anos, os Estados Unidos apoiaram materialmente a Arábia Saudita em seu bombardeio de anos ao Iêmen, levando o país à Idade das Trevas; negaram assistência ao Afeganistão, ainda a se recuperar de duas décadas de ocupação militar americana, recentemente encerrada, agora tomado pela fome; sobretudo, ostensivamente forneceram as bombas e cobertura diplomática para Israel apagar Gaza do mapa e materializar seu plano de fome contra os palestinos.
O impacto de tamanha violência implacável, nitidamente imposta por Washington a grandes partes do globo, e uma cobertura midiática que prontamente a celebra e mesmo a santifica, não pode ser isolado do público que a observa.
Onde é que Robinson teria obtido a ideia de gravar mensagens de ódio, como memes, nos seus cartuchos de bala? Poderá ter sido ao ver a ex-governadora republicana e ex-presidenciável americana Nikki Haley escrevendo “Acabem com eles” em projéteis de artilharia a serem usados no genocídio de Israel em Gaza?
De fato, essa glorificação depravada da violência em massa pelo establishment político norte-americano mal surpreende. Contudo, nosso foco se põe firmemente a Tyler Robinson, como se seu suposto ato solitário de violência fosse uma espécie de momento decisivo que apenas agora exige reflexão – previsivelmente, apenas por parte dos chamados “esquerdistas”.
Gasolina no fogo
O nosso verdadeiro foco, porém, não deve estar tanto nos indivíduos perturbados, mas sim nos sistemas políticos, sociais e económicos que os danificaram e que lhes forneceram meios e motivos para levar a cabo suas agendas deturpadas.
Os videojogos e as redes sociais não são a causa do problema. São a gasolina a ser jogada em um incêndio que arde há anos entre uma parte da juventude alienada e niilista dos Estados Unidos.
Esse niilismo – a sensação de que o mundo e seus valores são completamente insignificantes e as nossas vidas sem propósito – não pode ser explicado simplesmente pela fuga para um mundo online. Tais vícios são onde o niilista procura consolo, fugindo de uma realidade que se tornou uma carga demasiado pesada.
O caldeirão da visão de mundo niilista desses atiradores solitários é o papel único que os Estados Unidos assumiram a si próprios na moldagem do mundo nas últimas oito décadas – tanto como centro imperial para a reinvenção do colonialismo ocidental, como principal exportador e agente de um capitalismo neoliberal super-acelerado.
Exemplificada pelo atual genocídio em Gaza, a política externa americana não somente demanda uma campanha constante de intimidação e violência racista contra o Sul Global, como celebra esta violência como um valor moral e mesmo um dever, defendido pela direita e por figuras como Charlie Kirk.
Ainda assim, a direita MAGA exalta os excessos do capitalismo neoliberal, ao ignorar os abusos e a exploração dos mais fracos e marginalizados, a devastação da saúde do planeta e as ameaças resultantes para o futuro da espécie humana.
Nada disso constitui um ambiente político são para se crescer.
O nacionalismo cristão de Charlie Kirk partiu da premissa – contra todas as evidências – de que os Estados Unidos estariam cumprindo uma missão de Deus ao promover “valores” internos e externos que servem apenas a interesses restritos de uma classe de bilionários representada por Donald Trump.
Embora seja ainda impossível saber o raciocínio por trás das ações de Tyler Robinson, parece provável que ele tenha perdido esse tipo de fé irrefletida.
Quem pode dizer qual deles abrigava uma visão da realidade mais sombria?
Criado como cristão devoto, tal como Kirk, talvez Robinson já não conseguisse comprar a narrativa vendida por sua vítima, de que a vontade de Deus, a vontade de Trump e a vontade de Israel seriam idênticas.
Ataque total
O que é muito mais claro é que uma porção crescente da juventude descontente nos Estados Unidos está cada vez menos disposta a digerir um sistema de valores bipartidário que exige guerras permanentes e fome genocida no estrangeiro, o seu próprio empobrecimento e marginalização em âmbito doméstico, e um futuro sombrio em que um capitalismo neoliberal suicida, baseado em crescimento infinito num planeta finito, permanece sem soluções de curto e médio prazo.
Se esses são os únicos valores disponíveis, alguns – como os autores de tiroteios nas escolas e o assassino de Kirk – escolhem valor nenhum. Escolhem, de fato, ir à luta com tudo que têm.
Por que Charlie Kirk foi então selecionado por seu assassino? Porque muito provavelmente não eram muito diferentes.
A fuga de Kirk da realidade a um mundo de excepcionalismo americano violento, supostamente justificado pela Bíblia, é tão niilista quanto a fuga do seu assassino ao mundo dos memes e dos videojogos.
Ambos estavam ligados a um sistema onde o sentido deriva principalmente da capacidade de infligir violência sobre os outros. Kirk através de estruturas de poder opressivas existentes; seu assassino através do cano de uma arma.
Kirk exerceu sua influência através da internet, alimentando o ressentimento e a raiva online. O niilismo e a alienação do seu assassino foram fomentados por telas onde a vida real não vale nada, exceto um mundo real obscuro, onde deixar bebês e crianças morrerem de fome é visto como normal.
Tais paralelos, obviamente, não são algo que a direita MAGA possa tolerar, pois apontam não a uma “esquerda” imaginada, mas a sua própria visão de uma América de cada-um-por-si, na qual os modelos de solidariedade e valores compartilhados são removidos da equação. Uma América onde apenas a força faz o direito.
A “esquerda” será culpada pelo assassinato de Kirk, independentemente da verdade, porque a lógica de um sistema político americano baseado na violência estrutural contra os outros, dentro e fora do país, muito anterior à chegada de Trump à Casa Branca, exclui necessariamente a verdadeira introspeção.
O império americano, cuja força e legitimidade rapidamente desmoronam, demanda seus bodes expiatórios. Por décadas, estes foram fornecidos em terrenos estrangeiros, onde os Estados Unidos escolheram exportar a sua violência numa suposta guerra contra “terroristas”.
Agora, a superpotência em declínio precisa racionalizar seus fracassos – seus flagrantes e monstruosos crimes no estrangeiro e o colapso econômico interno –, em termos semelhantes, como uma guerra contra terroristas domésticos.
O terrorismo real, não obstante, é infringido por um establishment político bipartidário que almeja apenas seu próprio enriquecimento, disposto a utilizar de qualquer violência a seu dispor para proteger sua posição e riqueza.
Não tenham dúvidas, isso significa muito mais violência política – precisamente da parte daqueles que prometem acabar com ela.
Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 19 de setembro de 2025
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