Após ataque a Doha, proteção dos EUA acabou; Estados árabes têm de reagir

Soumaya Ghannoushi
2 meses ago

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Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deixa a Casa Branca a Nova York, em 22 de setembro de 2025 [Yasin Öztürk/Agência Anadolu]

O ataque de Israel não é uma escalada comum. Trata-se de um abalo sísmico a alcançar todo palácio, toda esplanada de ministérios, toda rua e avenida do mundo árabe. Não se trata de um ataque a Gaza, ou mesmo ao Hamas, mas sim à ideia de que qualquer capital árabe, qualquer que seja, esteja segura.

Em de semanas, Israel bombardeou Gaza, Cisjordânia, Líbano, Síria, Iêmen e Irã. No ano passado, atacou também o Iraque. Como se não bastasse, alvejou embarcações civis da Flotilha Sumud, em Túnis, na Tunísia. Então, dentro de horas, enviou aeronaves militares a Doha. Ademais, mantém sua ocupação ilegal no Corredor da Filadélfia, na fronteira com o Egito. Seus drones e mísseis sobrevoam os céus árabes, noite e dia, a bel-prazer.

Israel não está em guerra com um único movimento ou uma única faixa de terra. Está em guerra com toda a região. Não reconhece soberania alguma, tampouco fronteira.

Netanyahu sequer hesitou, ordenou um bombardeio a negociadores do Hamas então em Doha, apesar de o Catar ser um dos mediadores do cessar-fogo. Seis pessoas morreram, incluindo um oficial catari, tornando-se o primeiro ataque israelense ao território do país. Doha tampouco é uma capital comum: abriga a maior base militar dos Estados Unidos no Oriente Médio, com o status de “aliado majoritário não-OTAN” e bilhões repassados aos cofres americanos.

Nada disso importou.

Em um único dia, Israel bombardeou um país do Golfo no coração da Península Arábica e um Estado norte-africano no Mediterrâneo — dois continentes, duas nações, milhares de quilômetros de distância entre si. A mensagem é inequívoca, escrita em fogo e estilhaços: ninguém está seguro; ninguém está imune.

Israel busca instaurar uma nova ordem: toda a terra, água e céu árabes será seu, se assim desejar. A lei internacional jaz em cinzas — resta apenas a lei da selva.

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Mensagem entregue

Amir Ohana, presidente do parlamento israelense (Knesset), deixou clara intenção após o ataque a Doha: “Esta é uma mensagem a todo o Oriente Médio”. Não deixou de traduzir a ameaça ao árabe, para se assegurar da humilhação.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu insistiu se sentir “bastante” comprometido com a visão expansionista de “Grande Israel”, incluindo não apenas a Palestina como também vários Estados árabes.

Washington assentiu mansamente. Um mês atrás, o presidente americano Donald Trump viajou a Doha, ao ostentar um acordo de US$1.2 trilhão, embolsar impostos e até mesmo ganhar de presente um jato particular de US$400 milhões, vangloriado como um “palácio nos céus”.

Doha acabou de mediar um acordo entre Congo e Ruanda, sob a tutela da Casa Branca. Ainda assim, quando Netanyahu encomendou o ataque, Trump não fez nada para impedir, salvo um telefone momentos depois.

Então veio a condenação global. A Rússia classificou o ataque como “violação grosseira” das leis internacionais; a Turquia acusou Israel de recorrer o terrorismo como política de Estado; e a Organização das Nações Unidas, União Europeia e Liga Árabe denunciaram o bombardeio como ameaça à estabilidade regional.

A máxima do presidente egípcio Hosni Mubarak segue intacta: “Quem busca cobertura da América, acaba nu”.

Trump retornou da viagem ainda mais rico, com espólios do Golfo. Em Gaza, o genocídio somente se agravou. A fome toma todos. Na Cisjordânia, colonos incendeiam aldeias sob escolta militar. Soldados invadem impunemente Jenin, Nablus, Hebron.

Israel embolsa o dinheiro árabe com uma mão e queima o solo com outra. Saqueia suas riquezas, lança seus aviões de guerra — esta é a nova ordem em vigor.

Negociadores sob ataque

A ironia vai além. Os homens bombardeados em Doha não eram combatentes, mas sim negociadores — emissários presentes na capital porque Washington havia pedido a Doha para recebê-los.

Assim como o Catar recebeu o Talibã a pedido da Casa Branca, recebeu líderes do Hamas para seguir com o diálogo. Ainda assim, Israel conduziu seu bombardeio sob a anuência americana. Se o Catar, com suas bases, impostos e presentes, não está impune, quem é que está?

E quando a operação fracassou, os Estados Unidos não perderam tempo em voltar atrás, lavar as mãos e deixar que Tel Aviv encarasse as críticas.

O embaixador israelense nas Nações Unidas comentou: “Às vezes, informamos a gestão americana; às vezes, não. No fim, nós carregamos sozinhos a responsabilidade por essas operações”.

Washington colhe os louros quando Israel tem êxito, mas recusa o ônus em caso de fracasso. O lobo e sua coleira sabem bem os seus papéis.

Sobre as fronteiras regionais, Tom Barrack, enviado especial americano, chegou a admitir: “Para Israel, as linhas de Sykes-Picot não querem dizer nada. Vão aonde querem, quando querem; fazem o que querem”.

Plano às claras

Tamanha doutrina de impunidade tampouco é improviso, mas sim segue o plano Yinon de 1982. Divulgado por Oded Yinon no jornal Kivunim, traduzido por Israel Shahak, o plano previa a fragmentação dos Estados árabes em enclaves sectários: o Iraque entre sunitas, xiitas e curdos; a Siria entre alauítas, drusos e sunitas; o Egito debilitado ao ponto de ver o Sinai novamente ocupado; os palestinos expulsos ao outro lado do rio Jordão.

A mesma visão retomada, hoje, no discurso israelense.

Em uma entrevista, o político israelense Avi Lipkin, fundador do partido fundamentalista Bloco da Bíblia, preconizou fronteiras “do Líbano à Arábia Saudita, do Grande Deserto ao Mediterrâneo e Eufrates”.

“E quem é que ficará do outro lado do Eufrates?”, acrescentou. “Os curdos, nós gostamos dos curdos. Então teremos o Mediterrâneo às nossas costas e os cursos a nossa frente … O Líbano, o Líbano realmente precisa da proteção de Israel, então vamos tomá-lo. Creio que vamos tomar Meca, Medina e o Monte Sinai, e purificar esses lugares”.

Autores sionistas fantasiam abertamente sobre fronteiras que cheguem a Meca e Medina; seus livros esboçam mapas bíblicos a suas conquistas.

O objetivo sempre esteve claro: dissolver as capacidades árabes em frangalhos, para que Israel reine supremo. Veja ao redor: a Síria em ruínas, o Iraque dividido, o Iêmen abalado por anos de guerra, Gaza sitiada e faminta, o Líbano sangrando. O mapa de Yinon é nosso tempo presente.

Cumplicidade árabe

Regimes árabes carregam a responsabilidade por avalizar tamanho projeto expansionista e supremacista. Década após década, venderam sua dignidade sob ilusões de segurança: Camp David, Oslo, Wadi Araba e Abraão. Todas as vezes, pensaram cair nas graças dos Estados Unidos e se consagrarem “parceiros” de Israel. Todas as vezes, Israel embolsou suas capitulações e voltou sedento por mais e mais.

O Egito é o exemplo mais nítido: enquanto seus oficiais emitem repúdio retórico aos atos de genocídio em Gaza, seu comércio com Israel segue a todo vapor. Exportações egípcias à ocupação dobraram em 2024, com mais 50% de aumento no primeiro semestre do ano corrente. Como se não bastasse, o Cairo negocia um acordo de gás natural com Israel no valor de US$35 bilhões — o maior da história —, enquanto o fundo soberano da Noruega, por sua vez, busca desinvestir de empresas israelenses por cumplicidade à ocupação e a seus crimes de guerra.

Pior ainda, Netanyahu usa esses acordos como vantagem contra o Egito, ao suspendê-los quando interessa em troca de novas concessões políticas.

Além do comércio, os regimes árabes permitem que Israel use seu espaço aéreo. Após o início da guerra na Ucrânia, os europeus fecharam seus céus a toda e qualquer aeronave russa — civil, comercial, particular. Os americanos seguiram a deixa. A Rússia retaliou na mesma moeda. Ninguém cortou relações, mas os céus foram fechados.

Ainda assim, governantes árabes e islâmicos sequer ousaram fazer o mínimo. Aeronaves comerciais israelenses ainda cruzam os céus sauditas, jordanianos, omanis, ao encurtar suas rotas à Ásia, enquanto aviões militares da ocupação bombardeiam Gaza e, agora, o Catar. A Turquia também, mantém os sobrevoos. A mensagem não é outra senão de clara cumplicidade.

O resultado é paralisia e traição.

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Ninguém espera que os regimes árabes declarem guerra a Israel, mas poderiam ao menos impor sanções, fechar seus espaços aéreos e suspender negócios. Ao contrário, prendem manifestantes, proíbem protestos e censuram a solidariedade.

A paralisia se aplica em casa, mas, no exterior, Israel corre solto. Não é uma receita para “estabilidade”, mas a uma explosão prestes a acontecer.

O silêncio não durará para sempre. O povo árabe está vendo. Veem os palestinos sujeitos à fome e às bombas; veem a solidariedade tomar as ruas de todo o mundo, de Londres a Cidade do Cabo, Jacarta, Nova York. E perguntam por que seus governantes insistem em não agir. A tendência é tudo isso transbordar às ruas, aos céus e aos mares. Pouco tempo resta aos regimes para enfim fazer sua escolha: persistir na ilusão de normalização com um Estado fascista e expansionista ou construir defesas junto de aliados?

A menos que os Estados árabes reconheçam Israel — não o Irã ou qualquer outro — como a maior ameaça a sua sobrevivência, seguirão expostos, humilhados.

A promessa de proteção americana jaz em ruínas. Por décadas, os governantes do Golfo acreditaram que o petróleo, suas bases militares e seus investimentos poderiam comprar sua segurança. Trump e Netanyahu implodiram seu delírio. No Oriente Médio de hoje, os Estados Unidos e Israel são um só: mecenas e executor.

Juntos, emitiram a única mensagem que importa: ninguém está seguro — em Gaza, Doha, Túnis, ninguém. A menos que a região acorde, sequer Meca e Medina serão poupadas.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye, em 11 de setembro de 2025

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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