No relato bíblico das mulheres acusadas de adultério, Cristo disse: “Aquele dentre vós que estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”, invocando assim um teste de pureza contra os poderosos. Nos tempos contemporâneos, no entanto, tais testes de pureza são por vezes equivocados, direcionados não contra as estruturas de dominação, mas, paradoxalmente, contra intelectuais, escritores ou artistas públicos que buscam dar voz aos marginalizados. Essa inversão do teste bíblico frequentemente desvia o fardo das verdadeiras forças dominantes e congela ou sobrecarrega aqueles que, em essência, tentam resistir ou criticar os poderosos. Um exemplo desse teste de pureza equivocado, invocado contra Roy, apareceu há alguns dias em um artigo intitulado “Penguin, Palestina e o preço da Resistência de Roy”, publicado pelo Middle East Monitor.
Embora nenhum intelectual público esteja isento de responsabilidade, escritores, acadêmicos e artistas que assumem o papel da consciência devem ser questionados, até mesmo desafiados. A própria Arundhati Roy frequentemente nos lembra que a dissidência só tem sentido quando recusa conforto e conveniência. Portanto, é razoável buscar responsabilidade. Mas a estrutura para tal responsabilidade deve ser analítica, racional e consistente. Ela não pode ser criada do nada, aplicada seletivamente ou usada como ferramenta para exibicionismo moral.
O raciocínio apresentado no artigo é simples: desde que Roy publicou seu novo livro pela Penguin, ela perdeu o fundamento moral, e sua crítica ao sionismo, ao Hindutva e a estruturas semelhantes, ao longo da vida, é mera retórica, pois ela adotou o papel de uma intelectual cooptada. Lembramos que a Penguin publica Nerendra Modi sobre a Caxemira, portanto, publicar com eles é comprometer a posição moral e equivale a apertar a mão do império. À primeira vista, tal raciocínio parece intransigente e justo, mas a avaliação crítica revela inconsistências, vieses e contradições gritantes. Esse argumento exemplifica uma ladeira escorregadia de pureza impossível, na qual nenhum intelectual jamais consegue atingir o padrão, e toda crítica é desqualificada. Se seguirmos esse argumento à risca, Noam Chomsky, o crítico mais incansável da política externa dos EUA, torna-se o “cúmplice do colonialismo”, simplesmente porque passou sua carreira no MIT, uma instituição que recebe enormes financiamentos do Pentágono e de empresas de defesa dos EUA. Por esse padrão, suas palestras contra as guerras dos EUA são todas contaminadas, porque a eletricidade em sua sala de aula era paga pelo Estado. No entanto, nenhum observador sério confunde a filiação institucional de Chomsky com sua política. Sua autoridade reside precisamente em sua capacidade de gerar dissidência dentro de instituições comprometidas.
Também somos relutantemente tentados a invocar o teste moral bíblico para o próprio escritor: ele pode desacreditar Roy por publicar pela Penguin, porque ela publica Modi? Obviamente, não nos entregamos a tal postura moral fútil, pois estamos plenamente cientes e apreciamos as lutas dos pesquisadores acadêmicos que se esforçam para recuperar espaços de dissidência, enquanto suas próprias identidades e posições são constantemente escrutinadas. A questão, no entanto, é: podemos esperar a mesma cortesia oferecida a Roy? Recusá-la a ela seria presumir a existência de um ponto de vista arquimediano impossível, intocado pela história, pelo Estado e pelo capital. Tal perspectiva ignora as realidades complexas em que todos operamos e corre o risco de submeter os intelectuais a padrões que nenhum engajamento humano jamais poderá atingir. A inconsistência aumenta quando consideramos os pensadores que o próprio escritor invoca: Talal Asad, Edward Said, Achille Mbembe. Todos eles lecionaram em universidades ocidentais financiadas por Estados que travaram guerras, ocuparam terras e construíram impérios coloniais. Se aplicarmos o mesmo teste de culpa por associação usado contra Roy, esses intelectuais também devem ser condenados como “cooptados”.
O perigo mais profundo dessa estrutura de pureza reside na banalização da cumplicidade no genocídio, desviando o foco dos verdadeiros facilitadores ou colaboradores para aqueles que oferecem críticas. Nesse cálculo moral de soma zero, todos são traidores ou culpados e, em essência, ninguém é responsabilizado e, como tal, a traição ou a cumplicidade são esvaziadas de seu significado. É pertinente mencionar aqui o senso único de Roy de nunca, ao contrário de outros, tentar se apropriar das lutas dos marginalizados. Por exemplo, no contexto da Caxemira, quando questionada sobre o que deveria acontecer com a Caxemira, ela respondeu honestamente: “Não sou ninguém para dizer o que deveria acontecer com a Caxemira; minha posição é que os caxemires devem ter a chance de expressar suas opiniões sem medo, o que eles querem”. Também é importante mencionar o enorme custo pessoal que a dissidência tem.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.
![Autora e ativista política indiana Arundhati Roy [Wikipedia]](https://www.monitordooriente.com/wp-content/uploads/2025/09/1024px-Arundhati_Roy_Man_Booker_Prize_winner.webp)