Ataque israelense ao Catar: Novo prego no caixão da liderança regional dos EUA

Andreas Krieg
3 meses ago

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Helicóptero da Força Aérea catari e jato americano na base militar de al-Udeid, no Catar, em 10 de janeiro de 2026 [Força Aérea dos EUA/Divulgação/Wikimedia]

Um dos mediadores mais ativos do Golfo foi violado, sua soberania pisoteada, enquanto a Casa Branca lutava para encontrar palavras. O ataque israelense ao Catar na terça-feira (9) atingiu diretamente o processo de mediação.

É o segundo ataque a Doha por um parceiro de mediação em pouco mais de dois meses — a primeira, pelo Irã, porém contra bases americanas no país, após disparos encomendados por Trump a seus sítios nucleares. Ainda assim, é a segunda vez que Washington é incapaz de deter um ataque a seu aliado mais próximo no Golfo.

Foi um ataque cuidadosamente planejado, embora imprudente e mal executado, contra a diplomacia, a estabilidade e a segurança regional.

Este incidente ocorreu precisamente em um momento em que eleitores trumpistas pedem a seu presidente que deixe para trás o turbilhão na região. Lutando para encontrar palavras, Donald Trump parece impotente para controlar seus cães de guerra.

Em vez disso, mais uma vez o rabo abana o cachorro — uma realidade que, em todo o Golfo, parece fraca e impotente.

Esperança vira ilusão

Durante décadas, o Catar viveu com a esperança reconfortante de que seu papel de mediador, a Suíça do Oriente Médio, lhe daria segurança.

Neutralidade principista, diálogo e discrição, um aperto de mão aqui, outro acolá, sempre foi o modo catari de lidar com as coisas, sempre com o endosso americano e com os interesses de Washington em primeiro plano — além, é claro, da maior base americana no Oriente Médio, al-Udeid, a última apólice de seguro do regime em Doha.

Ser indispensável para Washington significava que a Casa Branca faria de tudo para proteger o Catar. Mas essa ilusão foi destruída.

Na verdade, já fora seriamente minada no primeiro mandato de Trump, quando sua administração deu crédito às alegações de que o Catar seria um apoiador do “terrorismo”, ao permitir um bloqueio de três anos imposto por rivais no Golfo: Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Bahrein.

Com Trump de volta à Casa Branca, Doha foi atingida duas vezes: primeiro pelo Irã em 23 de junho e agora por Israel. A neutralidade principista a serviço e da “estabilidade” resultou em um alvo nas costas do próprio Catar.

O ataque foi ainda um insulto a Washington. Netanyahu criou o hábito de intimidar presidentes americanos, e desta vez humilhou Trump em plena luz do dia.

A reunião que Netanyahu tentou atingir discutia um plano de cessar-fogo apoiado pelos Estados Unidos, apresentado pelo emissário trumpista Steve Witkoff, que trabalha intimamente com seus colegas cataris para solucionar o impasse de levar as partes à mesa. Mas como Netanyahu provou reiteradamente, está muito mais interessado em prosseguir com a guerra do que em qualquer cessar-fogo.

Com efeito, Israel bombardeou a própria diplomacia de Trump. Um tapa na Casa Branca e um lembrete para os acólitos trumpistas de que a promessa de acabar com os emaranhados estrangeiros escapa por entre seus dedos.

Enquanto o Golfo — sobretudo o Catar — tentava fornecer à América uma saída de suas guerras intermináveis, Netanyahu garantia que fosse sempre arrastados de volta.

Credibilidade sangrando

É também um assalto à frágil arquitetura dos Acordos de Abraão. O experimento trumpista de normalização entre Israel e o Golfo, de meados de 2020, parece agora mais incerto do que nunca.

Se “cortar a grama” já serviu de metáfora israelense para manter o Hamas sob controle, especialmente em Gaza, mediante massacres, o intuito agora é “podar o jardim do vizinho”. Sem regras, sem limites, sem freios e contrapesos.

O que torna tudo pior é o caos em Washington. A administração parece desorganizada, com quase nenhuma influência prática remanescente na geopolítica regional. A credibilidade dos Estados Unidos como guardião ou protetor está sangrando.

Desde o início da década de 1990, a liderança catari jamais teve motivo para duvidar do compromisso americano para com a região. Havia até esperanças de que a interdependência entre Washington e Doha elevaria o país árabe ao mesmo status de Israel. Durante anos, Doha colocou todos os seus ovos na cesta americana.

Os líderes em Doha agora têm de se perguntar se foram ingênuos, ao confiarem nessa aliança enquanto vizinhos, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, buscavam se proteger e diversificar seus parceiros. Para o Catar, subitamente, a questão de autonomia estratégica, outrora um ponto de discussão acadêmico, torna-se necessidade.

Relatos conflitantes circulam sobre quem foi avisado por quem e, mais importante, quando. Seria revelador, caso comprovado, que o aviso à Casa Branca sobre um ataque de Israel dos militares americanos e não diretamente de Netanyahu. Também é preocupante pensar que os avisos ao Catar só foram emitidos depois que os mísseis já haviam atingido a capital.

O fato de Israel ter agido sem um claro aceno americano mostra o quanto a balança mudou. Netanyahu não perguntou, presumiu.

Trump, diante da escolha entre seus parceiros do Golfo e o lobby israelense, acaba contorcido, tentando guardar o bolo e comê-lo também. Para todos os outros, restam as migalhas.

Ironia amarga

Israel falhou operacionalmente. Os líderes do Hamas seguem vivos. Khalil al-Hayya, um mandatário quieto e pouco carismático, pode emergir fortalecido, sua estatura ampliada pela sobrevivência.

O ataque pode dar novo ânimo a apoiadores do Hamas, dado que, mesmo no coração de Doha, Israel não conseguiu silenciá-los. Para os prisioneiros de guerra israelenses remanescentes em Gaza, após dois anos de genocídio contra o povo palestino, a situação se torna ainda mais precária.

Resta uma ironia amarga: um ataque que pretendia enfraquecer o Hamas pode robustecê-lo. Este ataque temerário sacrificou a primavera de Israel no Golfo, ao deus da guerra, para recuperar alguma influência na interminável batalha de Washington por corações e mentes.

Para o Catar, a lição é cruel, mas clara. Ser o mediador da região não concede imunidade. Pode, em vez disso, atrair fogo de todas as direções. A estratégia de Doha de entrelaçamento pragmático ainda importa, mas não pode mais contar com a esperança de que a América sempre estará lá com seu escudo.

A autonomia estratégica não é um luxo. Estrategistas em Doha agora precisam reavaliar premissas básicas.

Na verdade, parece o fim de uma era. Os Estados Unidos já foram o regente na orquestra do Oriente Médio. Agora são superados por seu próprio violino.

O Catar, como os outros Estados do Golfo, terá de se perguntar se quer seguir com a mesma música ou montar sua própria orquestra, ao reunir capacidades e recursos para emergir como um polo independente na região.

A única certeza parece a incerteza. Regras não se aplicam mais. E nesse vazio, microestados como o Catar devem encontrar novas maneiras de perdurar, de mediar, de ter alguma importância. A neutralidade pode não o manter seguro, mas ainda necessário.

Em um tom mais otimista, enquanto Trump lutava para encontrar as palavras, a comunidade internacional condenou inequivocamente Israel e permaneceu ao lado do Catar. Isso mostra que a estratégia de mediação de Doha não foi totalmente em vão — da Europa, do Sul Global e do mundo árabe, até organizações internacionais, todos culparam Israel por uma grave violação do direito.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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