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Vítimas Perfeitas e a Política do Apelo

3 de agosto de 2025, às 06h35

  • Autor do livro: Mohammed El-Kurd
  • Publicado em: 2025
  • Editora: Haymarket Books
  • ISBN-13: 9798888903162

“Não é apenas a dor que torna a escrita em tempos de genocídio uma tarefa tortuosa; é, sobretudo, o reconhecimento da palavra escrita como vergonhosamente insuficiente diante de bombas de 900 kg”, escreve Mohammed El-Kurd na introdução de seu livro Vítimas Perfeitas e a Política do Apelo (Haymarket Books, 2025). A frase basta para compreender as discrepâncias entre o poderio militar do colonizador e as palavras do povo colonizado.

Mas o livro tem uma nuance mais profunda. “Não há como negar que os palestinos no Ocidente e em muitas partes do mundo árabe enfrentam níveis alarmantes de violência, repressão e apagamento”, continua El-Kurd. O que alimenta o apagamento dos palestinos? El-Kurd aponta para a “política do apelo” – a linguagem e a lógica usadas para tornar os palestinos cativantes e dignos da atenção do Ocidente. E, no entanto, apesar das manobras conscientes ou inconscientes para alcançar esse estado de ser fabricado, os palestinos continuam desumanizados, assassinados, deslocados, torturados, famintos e sofrendo genocídio. O que leva o leitor a reconhecer a totalidade do título do livro, especialmente as palavras iniciais: Vítimas Perfeitas.

As vítimas são desumanizadas, e os desumanizados tentam se humanizar. Ao fazê-lo, porém, correm o risco de cair na armadilha da desumanização do colonizador. El-Kurd ilustra esse ciclo não apenas com exemplos da vida de palestinos, mas também expondo a teia de cúmplices ocidentais do sionismo que impedem o surgimento de narrativas palestinas. Se os palestinos pudessem falar livremente, o que diriam? Se os palestinos não tivessem que calcular cada palavra, como seria a experiência narrada sob o colonialismo sionista?

El-Kurd afirma que “É a relutância ou incapacidade do mundo em ver nossas tragédias como tragédias e nossas reações como reações, sua insistência em categorizar nossas normalidades como desvios”. Este é o espaço que o povo palestino é coagido a habitar. Ser palestino é percebido como uma condenação, e o Ocidente exige que os palestinos incorporem essa condenação.

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A humanização, na perspectiva ocidental, oprime o povo palestino e sua narrativa. “É a infantilização incessante do sujeito desumanizado”, observa o autor, observando que o deslocamento dos palestinos ocorre não apenas com a perda territorial, mas também com a perda de suas próprias narrativas. Humanizar os palestinos os enquadra em uma narrativa higienizada, que os força a uma coexistência subjugada com os colonizadores sionistas. Como El-Kurd demonstra, cada vez que a experiência palestina é validada, ela é imediatamente contrariada pela priorização da narrativa colonial israelense, de modo que as vítimas palestinas não recebem uma plataforma por seus próprios méritos humanos, mas existem para desviar a atenção para a narrativa de segurança de Israel, por exemplo.

Isso força o povo palestino a usar uma linguagem complacente e a explicar a narrativa palestina em termos apaziguadores. Os palestinos precisam justificar sua existência por meio de realizações que sejam familiares às narrativas ocidentais – diplomas, profissões, dupla nacionalidade, passaportes da UE são apenas algumas das categorias que humanizam os palestinos para um público ocidental. No entanto, El-Kurd observa que nem mesmo a dupla nacionalidade foi suficiente para Shireen Abu Akleh – uma jornalista palestina também com cidadania americana que foi alvo e morta por atiradores israelenses em Jenin.

Ao longo do livro, a indignação é palpável. El-Kurd explica como “a invenção do civil” despolitizou a causa palestina, transformando a resistência anticolonial em uma “crise humanitária” desprovida de direitos políticos. Os palestinos, diz ele, “são interpretados como atores desonestos, causando estragos sem sentido, para o desespero de espectadores indefesos – mulheres e crianças desinteressadas, paramédicos e jornalistas imparciais”. Como El-Kurd explica no livro, o homem palestino é frequentemente o ponto central de sua escrita, combatendo a categorização ocidental dos palestinos em merecedores e não merecedores da vida e da atenção humanitária.

A vigilância também alimenta a desumanização dos palestinos. Até mesmo o luto, observa El-Kurd, é feito sob vigilância. Os palestinos precisam vivenciar o luto de uma forma que o Ocidente possa aceitar. “Temos nós”, pergunta El-Kurd, “nos nossos esforços para repudiar o legado dos colonos terroristas criados em nosso subconsciente?” A humanidade palestina é restringida e remodelada para o que é aceitável pelos padrões ocidentais, portanto, os palestinos não estão autorizados a lamentar através de sua própria experiência como uma população colonizada que está legítima e ativamente envolvida em várias formas de resistência. O Ocidente define a vítima, e a vítima é frequentemente definida como Israel.

Israel, auxiliado pelo Ocidente, promove a narrativa da vítima por meio de “descobertas” – um exemplo dado por El-Kurd é o do presidente israelense Isaac Herzog, que afirma ter encontrado um exemplar de Mein Kampf em uma casa palestina. “Na sala de estar de uma criança”, disse Herzog à BBC, enquanto lembrava ao apresentador que os britânicos lutaram contra os nazistas. El-Kurd lamenta a defesa que busca desmascarar as alegações de Herzog e, ainda, questiona por que a descoberta do livro justificaria o genocídio em Gaza.

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Se o livro tivesse sido descoberto em uma sala de estar ocidental, nenhum outro atributo teria sido associado ao livro ou ao seu dono. El-Kurd escreve: “Antes, eu acreditava, credulamente, que nossos testemunhos só seriam considerados críveis quando atingíssemos a ‘respeitabilidade’. A lógica colonial nos induz a acreditar que são nossas deficiências, e não o colonialismo em si, que nos separam da libertação.” Essa afirmação resume a essência do livro que, apesar de narrar muitos casos já conhecidos, assume uma crítica extremamente ampla justamente devido à força da narrativa sionista, apesar do seu absurdo.

Contrariar a narrativa é reconhecer a imensidão do que os palestinos enfrentam. El-Kurd reconhece a dificuldade de falar sem justificar cada palavra, ao mesmo tempo em que ilustra a armadilha desse raciocínio. Desmascarar os mitos coloniais sionistas toma tempo e espaço do povo palestino. “Como palestinos, cada compromisso nosso se torna um julgamento público”, observa o autor. As narrativas ocidentais se preocupam com os colonos, mas não com os seis milhões de refugiados palestinos. Eles estão preocupados com a narrativa de segurança de Israel, não com o genocídio contra os palestinos em Gaza.

Falar sobre a Palestina implica uma responsabilidade diferente daquela a que estamos acostumados. Exige consciência da linguagem e da intenção. Uma consciência despertada pela compreensão de que o colonialismo não é invencível.