Há pouco mais de uma década, a Tunísia era a luz mais brilhante da Primavera Árabe — o raro caso em que protestos em massa levaram a uma transição pacífica e à esperança de uma democracia real. A autoimolação de Mohamed Bouazizi em 2010 desencadeou uma revolução que derrubou o regime de Ben Ali e inspirou revoltas em toda a região. A transição da Tunísia em 2011 suscitou esperanças de liberdade, direitos e governança responsável.
Hoje, essa promessa parece distante. O país está recuando para o autoritarismo sob o presidente Kais Saied — antes visto como um reformista, agora governa por decreto e desmantela os freios democráticos. Para muitos tunisianos, ele continua sendo tanto um salvador quanto uma ameaça, personificando as contradições de uma nação presa entre a revolução e a repressão.
A Ascensão de Kais Saied: Salvador Populista ou Homem Forte?
A ascensão meteórica de Kais Saied em 2019 foi impulsionada pela profunda frustração pública com a elite política tunisiana — acusada de corrupção, impasse e fracasso econômico. Professor de direito constitucional sem filiação partidária e com financiamento mínimo, ele concorreu como um outsider, rejeitando doações de campanha e contando com o boca a boca, o apoio popular e as mídias sociais. Percorrendo o país em um ônibus escolar, ele se conectou diretamente com os eleitores e venceu por uma margem esmagadora. Antes da campanha, poucos fora da Universidade de Túnis tinham ouvido falar dele.
As promessas de Saied de restaurar a dignidade, combater a corrupção e devolver o poder ao povo repercutiram entre os tunisianos, cansados da instabilidade e do declínio. Mas a esperança inicial logo deu lugar à preocupação, à medida que sua presidência revelava uma crescente intolerância à dissidência e um impulso para concentrar o poder.
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Agora em seu segundo mandato, Saied continua relativamente popular. A Constituição o impede de concorrer a um terceiro mandato em 2029, mas a ambiguidade permanece. A Constituição de 2022 — redigida sob sua supervisão — concede-lhe autoridade irrestrita para interpretar suas disposições. O Artigo 96 permite que o presidente tome “quaisquer medidas” consideradas necessárias para proteger a República, deixando pouco espaço para supervisão judicial ou contestação constitucional.
A virada ocorreu em 25 de julho de 2021, quando Saied invocou o Artigo 80 da Constituição tunisiana de 2014 para suspender o parlamento, demitir o primeiro-ministro e assumir o poder executivo — ações que ele considerou necessárias para salvar a revolução e o Estado.
Para muitos, este foi um golpe constitucional que desmantelou as instituições democráticas arduamente construídas desde 2011. Saied deixou o parlamento — dominado pelo partido islâmico En Nahda — de lado e impôs medidas de emergência, incluindo restrições à imprensa, às liberdades civis e às liberdades políticas. A medida foi inicialmente bem recebida por uma parcela significativa dos tunisianos, exaustos pelo impasse político e pelo declínio econômico. Os índices de aprovação de Saied dispararam, pois muitos acreditavam que ele era o homem forte necessário para restaurar a ordem e implementar reformas.
Mas, por trás dessa aprovação superficial, havia preocupações crescentes: prisões arbitrárias de figuras da oposição, ataques à mídia independente e um espaço cada vez menor para a sociedade civil. Críticos argumentam que as ações de Saied enfraqueceram os freios e contrapesos democráticos da Tunísia e abriram caminho para um poder presidencial irrestrito.
A Construção de um Estado Policial
Desde 2021, o judiciário da Tunísia tem sido sistematicamente minado. O presidente Saied dissolveu o Conselho Superior da Magistratura eleito e demitiu 57 juízes e promotores por decreto — apesar de uma ordem judicial de 2022 para reintegrar a maioria deles. Legalistas foram colocados em cargos judiciais importantes, enfraquecendo fundamentalmente os freios e contrapesos institucionais.
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Ao mesmo tempo, veículos de comunicação independentes têm sido submetidos a uma repressão crescente. De acordo com as amplas disposições do Decreto-Lei 54 (“anti-fake news”), pelo menos 28 jornalistas e figuras da mídia foram detidos ou investigados. A agência de notícias Reuters também relata que julgamentos de figuras da oposição e jornalistas estão sendo usados “para silenciar a dissidência”, com o controle do governo se estendendo aos tribunais e à polícia.
A organização de defesa da liberdade de imprensa Repórteres Sem Fronteiras classificou a Tunísia em 129º lugar entre 180 países em seu Índice de Liberdade de Imprensa de 2025 — sinalizando “pressão judicial, política e econômica” que sufoca o jornalismo independente. A Human Rights Watch alerta que as autoridades estão recorrendo à detenção arbitrária e a tribunais militares contra jornalistas, advogados, ativistas e opositores políticos, criando um clima de repressão que restringe severamente o debate público e a liberdade de expressão.
Tais tendências apontam para um país, cada vez mais, moldado pelos mecanismos de um estado policial — onde o medo, e não o livre debate, se tornou a força dominante
Aprofundamento da Crise Econômica e Social
A crise política da Tunísia é inseparável da piora de suas condições econômicas e sociais. O país enfrenta persistentemente problemas econômicos clássicos, como desemprego, inflação, falta de investimento estrangeiro e um fardo insustentável da dívida pública.
Muitos tunisianos agora veem a crescente repressão política como uma troca pela estabilidade — um preço doloroso pela ordem diante do caos. Isso reflete uma ironia trágica: as mesmas liberdades conquistadas em 2011 estão agora sendo sacrificadas em nome da segurança e do controle centralizado.
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O cenário econômico oferece poucos motivos para otimismo. O desemprego atingiu 15,7% no primeiro trimestre de 2025, enquanto a inflação continua a corroer as já apertadas poupanças das famílias, atingindo 5,4% em junho. A dívida pública está entre 79% e se aproxima de 82% do PIB, e a dívida externa permanece elevada, em torno de 79%, colocando a Tunísia sob forte pressão fiscal. Embora não esteja tecnicamente falido, o Estado está profundamente limitado — sua crise econômica é motivada tanto por falhas de governança e ineficiências estruturais quanto por custos de segurança. Nesse sentido, a crítica do presidente Saied à ordem política pós-2011 repercute em alguns tunisianos.
O turismo, outrora o motor econômico da Tunísia, ainda não se recuperou totalmente do trauma dos ataques terroristas de 2015 em Sousse e Bardo. Em 2010, o país recebeu mais de 7 milhões de turistas; em contraste, os números de 2023 ainda estavam abaixo dos níveis de 2021, oscilando em torno de 6 milhões. Essa lenta recuperação enfraquece um setor que já foi uma importante fonte de divisas, empregos e orgulho nacional.
Por que alguns ainda prezam Saied?
Apesar do crescente autoritarismo, Kais Saied mantém uma base leal. Para muitos tunisianos, ele representa uma ruptura completa com as elites corruptas e um baluarte contra as forças islâmicas, culpadas por anos de disfunção. Sua ascensão também enfraqueceu a elite há muito dominante, educada na França, que moldou o Estado tunisiano pós-independência.
Seu tom populista e suas mensagens nacionalistas repercutem entre os cidadãos desiludidos com promessas não cumpridas. Sua rejeição veemente à normalização com Israel, apoiada pelo Ocidente, e sua condenação ao genocídio em Gaza aumentaram ainda mais sua popularidade, alinhando-o a uma causa árabe profundamente sentida.
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Apoiadores frequentemente descartam as críticas a Saied como intromissão estrangeira ou nostalgia do antigo regime. O resultado é uma sociedade fragmentada, dividida entre dois futuros: um de democracia liberal e pluralismo, o outro de autoridade centralizada que promete ordem — mesmo à custa da dissidência.
O que nos espera?
O declínio da Tunísia não é inevitável, mas revertê-lo exigirá liderança ousada e pressão real — interna e internacional. Acima de tudo, a economia continua sendo o cerne da crise, independentemente de quem detenha o poder.
Ainda assim, a sociedade civil, os jovens ativistas e a mídia independente do país oferecem esperança. Eles continuam a exigir responsabilização e o retorno às normas democráticas. Mas sem reformas estruturais, garantias constitucionais e um verdadeiro compromisso com o pluralismo, a Tunísia corre o risco de se tornar apenas mais um regime autoritário.
O berço da Primavera Árabe merece algo melhor. O mundo precisa estar atento — não apenas para defender as frágeis liberdades da Tunísia, mas para honrar os sonhos de milhões que um dia acreditaram na mudança.
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