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A ilusão do antropoceno: O capitalismo destruiu a natureza, restam saudades

Com Dubai como modelo, este livro de fotografias documenta experiências artificiais que tentam substituir um mundo que nós destruímos

13 de julho de 2025, às 06h00

Visão de satélite das ilhas artificiais de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos [Wikimedia Commons/Reprodução]

Há seis anos, o fotógrafo britânico Zed Nelson iniciou um projeto sobre “como os humanos criaram versões da natureza sob curadoria, enquanto destruíam a coisa real”. Nelson — que acumula prêmios de vídeo e fotografia desde 1990 — compreendeu que os seres humanos se alienaram da terra e de outros animais, muito embora “no fundo, prevaleça o desejo de conexão com a natureza”. 

Para Nelson, isso se manifesta na crescente gama de experiências artificiais e encenadas da própria natureza, como um “espetáculo tranquilizador — uma ilusão”.

Essas experiências incluem zoológicos com animais cativos diante de cenários pintados de seus habitats naturais; parques nacionais percorridos em veículos com ar-condicionado; pistas de esqui com neve artificial; e fazendas de leões onde turistas caçam animais dóceis por puro esporte.

Neste contexto, a crise climática se intensifica e a guerra humana contra o mundo natural persevera. Em 2021, um estudo revelou que apenas 3% das terras do planeta permanecem ecologicamente intactas, com populações saudáveis de seus organismos originais.

Para Nelson, em conversa ao Middle East Eye, por ocasião do lançamento de seu livro, The Anthropocene Illusion A Ilusão do Antropoceno —, um destino primordial de seu projeto era óbvio: “Dubai parecia o epicentro desse fenômeno”.

O livro reúne imagens de 14 países em quatro continentes. “Não há canto do mundo que não tenhamos destruído ou mercantilizado”, adverte o fotógrafo.

Ilhas artificiais e neve de mentira

O que Nelson encontrou nos Emirados Árabes Unidos, em junho de 2018, foi um modelo vivo de um mundo dominado pelo homem — onde nada é real e tudo é insustentável.

Dubai descobriu petróleo em 1966, quando a cidade ainda integrava os Estados da Trégua, como era conhecido o protetorado britânico que anteviu os Emirados. Naquela época, a pequena cidade árida tinha não mais que 46 mil habitantes. Até o final de 2025, espera-se que sua população atinja quatro milhões.

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Nelson nasceu pouco depois da descoberta do petróleo em Dubai. Suas décadas de vida coincidiram com a transformação da cidade em um símbolo reluzente do capitalismo tardio, onde podemos encontrar tudo o que o mundo tem a oferecer — entretanto, em réplica.

Nelson visitou a Ilha da Suécia, descrita em peças publicitárias como uma “ilha privada com dez vilas ultraluxuosas inspiradas na Suécia”, parte do projeto The World — um arquipélago artificial em forma de mapa-múndi, construído com 386 milhões de toneladas de rocha e 321 milhões de metros cúbicos de areia compactada.

O projeto foi interrompido durante a crise financeira de 2008 e permanece incompleto. A Suécia emiradense integra o chamado Coração da Europa — projeto ambicioso que, segundo o relato, pretendia criar uma “experiência europeia imersiva”, incluindo neve artificial e chuva sintética, ativada quando a temperatura externa superasse 27°C.

“Havia uma casa de vários milhões de libras com uma máquina de neve dentro, conectada à sauna”, conta Nelson sobre a ilha.

Visitou também um “ice bar”, mantido a -6°C, enquanto lá fora, nos meses mais quentes, a temperatura gira em torno de 36°C — e ainda aumenta.

“Dubai tem um aquário gigante, uma pista de esqui indoor, um zoológico, um safári, ilhas artificiais”, enumera Nelson. “Você pode estar sempre transitando entre esses lugares, quase sempre em ambientes climatizados. No entanto, quando se constroem pistas de esqui e um mundo de neve nessas condições, o custo ambiental é assombroso”.

O mesmo ocorre na Europa — berço do esqui — onde canhões de neve trabalham incessantemente para compensar a falta causada pelas mudanças climáticas.

Nelson esteve em um resort nos Dolomitas italianos totalmente dependente desses artifícios. “Nossa neve artificial é melhor que a natural”, disse-lhe o proprietário. “Nos últimos 20 anos, os turistas passaram a exigir uma neve perfeita, como é o caso com o champanhe”.

Ursos polares e leões aprisionados

As fotografias em The Anthropocene Illusion são comoventes e muitas vezes perturbadoras. Vemos um urso polar diante de um cenário ártico pintado na parede de um zoológico na China. O animal se senta ao lado do mural, encarando-a. Detrás dessa majestosa criatura, duas portas: presumivelmente a saída do recinto.

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A cena lembra O Show de Truman, filme em que o personagem de Jim Carrey descobre ser o astro de um reality show e que viveu em um mundo absolutamente artificial. No final, ele atravessa os portais e adentra um mundo desconhecido.

Uma imagem igualmente inquietante foi capturada na África do Sul, onde Nelson visitou uma “fazenda” que proporciona “passeios com leões”. Filhotes são separados de suas mães ao nascer e alimentados com mamadeira. Turistas pagam para acariciar os animais semidomesticados. Quando adultos, todavia, esses leões costumam ser vendidos para serem caçados por visitantes em busca de uma “experiência autêntica” — totalmente controlada e segura.

Os caçadores ficam com a cabeça e o couro do animal abatido, enquanto os ossos são enviados à China para o uso em “medicina tradicional”.

Capitalismo e colonialismo

Essa experiência movida a lucro se manifesta ainda no “piquenique com champanhe ‘Out of Africa’”, oferecido em safáris de alto padrão no Masai Mara, no Quênia, e em expedições para avistar ursos polares no Ártico canadense, onde hóspedes são transportados em caminhões movidos a diesel.

“Durante a expansão colonial europeia, a natureza passou a ser compreendida como um espaço perigoso, selvagem e primitivo, que demandava ser conquistado e domado — ou meramente explorado”, aponta Nelson em sua obra, entremeada por suas reflexões e citações de pensadores como John Berger e Guy Debord.

Nelson também inclui dados alarmantes sobre os estragos do capitalismo no planeta: “Estima-se hoje que cinco trilhões de partículas de plástico no mar pesam mais do que toda a biomassa da espécie humana”; ou ainda “o número de animais selvagens na Terra caiu pela metade nos últimos 40 anos”.

Enquanto isso, o fotógrafo investiga as motivações psicológicas por trás de tamanha destruição e recriação artificial.

“Dubai virou um playground”, destacou ao Middle East Eye. “Seria um sintoma dos desejos humanos? Criamos esse desejo ou estamos atendendo a uma necessidade contemporânea por espetáculo e entretenimento?”

Para Nelson, este é um mundo moldado nem tanto por humanos, mas pelo capitalismo — um mundo onde tudo é mercantilizado e a natureza foi debelada.

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Seu livro parece sugerir que os seres humanos, quem sabe, guardam uma insegurança ancestral de quando éramos animais na base da cadeia alimentar. Esse sentimento pode explicar por que subjugamos tão completamente nossos companheiros de planeta.

Conexão perdida a natureza

Sendo nós mesmos animais, o desejo por conexão com o mundo ao redor, no entanto, jamais desaparece. 

Parte da perspicácia nas imagens de Nelson advém justamente dessa tensão. Animais adorados e reverenciados por nós, humanos, são, porém, encarcerados em condições artificiais.  Montanhas, lagos, rios e outros ecossistemas — que acaloram nossos corpos e nossos corações — são vistos das janelas dos carros ou dos mirantes, ou mesmo recriados com materiais sintéticos.

“Criamos uma ilusão para satisfazer a conexão que perdemos com a natureza”, alerta o fotógrafo. “Isso nos proporciona uma espécie de eco do que tivemos um dia e, ainda assim, esconde as consequências de nossas ações. Portanto, temos a natureza, mas sem os insetos e os espinhos … Suas trilhas são suaves e têm espaços para fazer piquenique — uma versão de consumo”. 

No Golfo — onde não se pode caminhar sobre a grama, onde a vida é quase impossível sem ar-condicionado, onde enormes torres de vidro não tem qualquer correlação com a paisagem, onde as luzes permanecem acesas mesmo quando as cidades estão vazias —, tudo isso se torna evidente.

“Nos vários parques temáticos e zoológicos que visitei, percebi uma coisa estranha: nesses lugares, nada acontece. Não existem surpresas. Tudo se repete — se repete, e se repete”, ressalta o autor em seu livro ilustrado. 

Duas histórias se destacam em The Anthropocene Illusion.

Primeiro, a jornada de William Temple Hornaday, taxidermista do Instituto Smithsonian, de Washington, que, em 1886, viajou ao oeste americano para caçar bisões a uma nova exposição. Hornaday relatou, sem qualquer apreensão: “Matamos quase todos aqueles que vimos e estou confiante de que não sobraram 30 cabeças em Montana. Nesta época, no próximo ano, os caubóis terão destruído tudo aquilo que restou”.

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Em vez de se mostrar maravilhado, Hornaday celebrou o assassinato e a captura em massa daquele icônico animal, para criar “uma série de espécimes a serem enviados a outros museus”. 

Sua história remonta o destino de Harambe, célebre gorila do Zoológico de Cincinnati. Após um menino de apenas três anos de idade cair em sua jaula, em 2016, Harambe se aproximou para investigar a criança, mas se mostrou agitado pelos gritos constantes dos visitantes e curiosos.

O gorila foi então morto pelos guardas do zoológico.

“No ano seguinte”, conclui Nelson, “o zoológico criou um novo ambiente indoor onde o público veria os gorilas por trás de um vidro”. 

The Anthropocene Illusion, de Zed Nelson, foi publicado em inglês pela Guest Editions.

Artigo publicado originalmente em inglês na rede Middle East Eye, em 20 de junho de 2025

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.