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Negação de comida, emboscadas, assassinatos em massa e campo de concentração revisitados em 2025

12 de julho de 2025, às 11h11

Palestinos que buscam ajuda alimentar tentam escapar dos ataques desferidos contra aglomerados nos postos de distribuição que se tornaram alvo de tiros e bombas no centro da Faixa de Gaza, em 2 de julho de 2025. [ Ali Jadalla/Agência Anadolu]

Nos últimos 50 dias e até o fechamento deste artigo foram 832 pessoas mortas nas filas de comida para as quais foram atraídas após quase três anos de tortura, ferimentos, fome, sede, medo e perdas de casas e familiares. O fim da linha para esses palestinos foi, conforme as vozes da ONU, uma emboscada armada pelos Estados Unidos, que montou com Israel a  Fundação Humanitária de Gaza (GHF, da sigla em inglês)  para supostamente entregar alimento, e por Israel, que mobilizou seus atiradores e drones armados pelos Estados Unidos  para a área. 

A mídia regional exibiu casos de crianças que criaram coragem e enfrentaram o risco de serem atingidas, na esperança de levar comida para si e suas famílias. A mãe de uma delas, desolada ao saber da morte de sua filha quando chegava ao posto de distribuição de alimentos, disse que a menina confiava no fim da guerra e que estava certa de que voltaria à escola. Ela tinha apenas 11 anos. A sequência monstruosa empurra pessoas, pela fome e pelas bombas  para fora dos abrigos, para as áreas abertas, onde muitas são caçadas ou mortas aleatoriamente.  A matança  ocorre regularmente nas áreas da ajuda, desde que a agência israelo-americana  instalou-se em Gaza como uma isca envenenada. 

Ao receber o relato da Unicef sobre as quinze mortes registradas na quinta-feira, incluindo nove crianças e quatro mulheres, o  chefe da Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA), Philippe Lazzarini, denunciou o silêncio e a inação da comunidade internacional como formas de cumplicidade com o que chamou de “o esquema mais cruel e maquiavélico para matar, em total impunidade.” 

Em um post na rede X  Lazarini disse que Gaza foi transformada em cemitério de crianças e pessoas famintas. E que a armadilha de Israel deixou as demais “sem saída. A escolha que têm é entre duas mortes: por fome ou por tiro”. A inação da comunidade internacional, disse ele,  trará mais caos. “Nossas normas e  valores  estão sendo enterrados”, lamentou. 

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Os fatos estão colocados abertamente para uma plateia global atordoada. O alvo desse ataque é tanto Gaza quanto o sistema multilateral que estabelece regras de segurança para o mundo desde a Segunda Guerra, e que se revela impotente ao ser desafiado a agir contra os interesses de seu principal mantenedor.

Os EUA deixam claro que a ONU não pode dar ordens sem que seu governo as aprove e que nada vale quando ele é o réu por trás do réu.   Países aliados procuram relativizar o genocídio e reprimem internamente as vozes que o denunciam. Governos críticos, entre eles o Brasil, protestam e pedem o cessar-fogo, mas acabam tendo de lidar com a subordinação da ONU e, ao mesmo tempo, buscam alternativas independentes, como os BRICS, que estão longe de uma posição mais incidente.

Não chegamos ao fundo do poço. O jogo de espelhos do governo Trump prossegue tresloucadamente, criando emergências que afundam países em seus próprios problemas nacionais, enquanto Israel avança em sua limpeza étnica.  Assim como nos ataques ao Irã, os EUA fazem a tarefa de obrigar o mundo a tratar de ameaças econômicas criadas deliberadamente, enquanto Israel avança em Gaza em seu genocídio por meio de práticas de triste memória nazista.

Os BRICS são alvo da vez, ameaçados com tarifas de 50% sobre importações, incluído o Brasil, com um ataque a mais. Trump tenta dar asas renovadas ao bolsonarismo extremista contra o governo Lula e o STF,  desrespeitando a soberania brasileira.  A extrema-direita, que já reproduz e naturaliza o discurso israelense,  tenta responsabilizar o governo Lula por ter incomodado o governo Trump com a defesa da Palestina e as declarações no BRICS.

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Na medida em que a mídia global reproduz a alegação de Israel de estar mirando em terroristas quando mata civis, o genocídio vai se normalizando e a cumplicidade internacional vai digerindo o anúncio do próximo passo: o confinamento em campos de concentração. 

O plano ratificado pelo primeiro ministro-israelense, Benjamim Netanyahu e divulgado pelo jornal israelense Haaretz é de jogar centenas de milhares de civis na ruínas da cidade de Rafah, em um cerco chamado de “cidade humanitária”, da qual não mais poderão sair. O  ministro da Defesa israelense, Israel Katz, afirmou a repórteres que, a princípio, haveria a realocação de 600 mil palestinos de uma área em al-Mawasi, já restrita,  para os destroços de Rafah. 

Palestinos se aglomeram por ajuda humanitária no Corredor Morag, rumo ao noroeste de Rafah, na Faixa de Gaza, em 29 de maio de 2025 [Doaa Albaz/Agência Anadolu]

Essas pessoas passariam antes por uma triagem, significando previsivelmente uma sentença de morte para os demais  considerados não civis, ou de agonia pela fome e doenças para os confinados que poderão chegar aos dois milhões de palestinos, conforme especulações do mesmo jornal.

A tal cidade poderá ser deixada à própria sorte ou ser entregue à mesma agência usada atualmente para atrair os famélicos, a quem caberia o fornecimento de ração. Israel, no máximo,  daria deslocamento, tendas, de acordo com a fonte do Haaretz, e com certeza daria os muros finais desse túmulo em vida no qual a comunidade internacional vem enterrando os palestinos desde 1948. E se enterrando nele.

A normalização de todos esses crimes vai, aos poucos, emboscando a humanidade.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.