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Banda germano-síria Shkoon: por meio da música, aprendemos a ouvir e contar uma história

"Não há família síria na Síria que não tenha perdido alguém", diz o vocalista sírio do Shkoon, Ameen Khayer, ao MEMO enquanto fala sobre o que inspira sua música. A dupla musical Shkoon é composta por um vocalista sírio e um produtor alemão que nem sempre concordam, mas seu sucesso vem da capacidade de desafiar um ao outro e criar sons que os unem.

27 de abril de 2025, às 06h00

A cena eletrônica underground é há muito tempo um caldeirão de influências culturais, mas poucos artistas dominaram a fusão de tradição e modernidade como a banda germano-síria Shkoon. A dupla, formada pelo vocalista e músico sírio Ameen Khayer e pelo produtor alemão Thorben Diekmann, está de volta com “Jadal”, uma faixa hipnotizante que mistura deep house, downbeat e melodias orientais com naturalidade.

Sua música sempre foi uma montanha-russa de emoções, e “Jadal” não é exceção — um reflexo cru e poderoso da tensão e do discurso que moldam o nosso mundo hoje.

Isso é particularmente relevante na Alemanha, onde as tensões políticas estão se intensificando. A recente ascensão do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que conquistou sua maior votação em uma eleição nacional desde a Segunda Guerra Mundial, destaca a crescente polarização no país. Gritos de “Alice für Deutschland” ecoaram enquanto a candidata do partido a chanceler, Alice Weidel, celebrava o sucesso, marcando uma mudança radical em direção ao radicalismo no cenário político alemão.

Com a Europa testemunhando uma onda crescente de populismo de direita, os temas de divisão e debate explorados em “Jadal” repercutem em uma escala mais ampla.

A história da origem de Shkoon é baseada em encontros casuais e profunda sinergia criativa. Ameen foi preso pelo governo Assad em sua cidade natal, Deir Ez-Zor, em 2015, enquanto estudava engenharia naval. Ele foi preso em sua universidade após ser acusado por um colega que trabalhava para o serviço secreto, devido ao seu ativismo contra o regime.

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Após passar 34 dias na prisão, foi libertado, mas percebeu que permanecer na Síria não era mais uma opção. Como centenas de milhares de outros, tomou a difícil decisão de partir, embarcando em uma perigosa jornada para a Europa.

Ele acabou se encontrando em Hamburgo, onde, por acaso, acabou dividindo um apartamento com Thorben e vários outros. Certa noite, enquanto relaxavam na cozinha, a música os uniu. O parceiro de Thorben começou a tocar e Ameen foi questionado se sabia cantar. No momento em que o fez, Thorben reconheceu algo especial. Essa troca espontânea levou à sua primeira apresentação em um evento beneficente em apoio a pessoas que enfrentavam problemas legais por ajudar refugiados.

“Nunca tínhamos feito nada antes, mas perguntei a Ameen se ele queria participar. Nos trancamos por um dia, trabalhamos em algo e, naquela noite, fizemos nosso primeiro show.” Daquele momento em diante, nasceu Shkoon — uma colaboração não planejada, porém orgânica, enraizada na música, na narrativa e na solidariedade.

Em árabe, “Jadal” significa disputa; uma disputa tensa, repleta de conflitos e visões opostas. A inspiração por trás da música vem do estado atual do mundo, onde o conflito e a divisão parecem onipresentes. Ameen explica: “Ultimamente, vivemos em um mundo cheio de conflito e ódio pelo ódio. Quando escrevi a letra, ela veio do fundo do coração, refletindo tudo o que acontece ao meu redor.”

Para Thorben, esses temas são igualmente relevantes. “Nós dois somos seres políticos”, diz ele. Tudo é político de certa forma. E nos tempos em que vivemos, essa luta constante por determinação, por controle sobre as discussões, é frustrante. A música reflete essa luta, esse desejo de recuar e perguntar: ‘Devo participar dessa discussão ou começar a minha própria?'”.

O próximo projeto de Shkoon, Greater Than One, aborda temas como unidade, anseio e transformação. O que o torna único é a forma como a música evoluiu organicamente por meio de suas apresentações ao vivo. Em vez de seguir o processo tradicional de produzir um álbum e depois fazer turnês, eles testaram ideias musicais na estrada, incorporando o feedback do público.

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“A turnê moldou as músicas”, compartilha Thorben. “Tocamos ideias ao vivo, observamos o que repercutia nas pessoas e levamos essa energia de volta para o estúdio. Abandonamos expectativas rígidas e permitimos que a música crescesse naturalmente.”

O resultado é um som mais dinâmico e imprevisível. Ameen o descreve como “padrões diferentes, estruturas diferentes”, uma abordagem que rompe com seus trabalhos anteriores, mas ainda mantém a profundidade emocional que define Shkoon.

A música de Shkoon não se resume a batidas e melodias, mas sim a contar histórias. A jornada pessoal de Ameen como refugiado, suas experiências com a prisão na Síria e as narrativas mais amplas de deslocamento e resiliência estão entrelaçadas em cada nota.

“Teatros e palcos são lugares onde as pessoas ouvem”, explica ele. “Minha história na prisão é pequena em comparação com muitas outras, mas sinto a responsabilidade de falar, não apenas por mim, mas por aqueles que não conseguem.”

No entanto, a música de Shkoon não reflete apenas dor – ela também carrega esperança. Mesmo nos temas mais sombrios, há um fio de conexão, um lembrete de que nunca estamos verdadeiramente sozinhos em nossas lutas.

Apesar do forte vínculo, Ameen e Thorben nem sempre concordam, e é exatamente isso que faz sua colaboração funcionar. “Nem sempre há uma harmonia tranquila entre nós”, admite Thorben. “Mas o conflito leva à resolução. É importante desafiar um ao outro.”

Ameen concorda, observando que trabalhar com Thorben lhe ensinou o valor de ouvir. “Eu sempre fui um rebelde, sempre gritando a minha verdade. Mas, através da música, aprendi que ouvir é igualmente importante. Se não ouvirmos, não podemos cantar.”

Para Thorben, trabalhar com Ameen tem sido uma forma de encontrar a sua voz. “Ameen sempre foi o seu verdadeiro eu, sem pedir desculpas. Ele não é ator. Essa autenticidade me ensinou a falar por mim e pelos outros.”

A música de Shkoon é um apelo à conexão. Ela prova que o som tem o poder de unir culturas, transformar a dor pessoal em cura coletiva e nos lembrar de que, apesar das nossas diferenças, somos, de fato, maiores do que um. 

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