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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Reino Unido sabia de tortura contra palestinos há 50 anos, mas recusou agir

Autoridades britânicas sabem que Israel conduz tortura contra palestinos detidos há mais de meio século, confirmaram documentos do Arquivo Nacional, analisados pelo MEMO; o governo optou, porém, por lidar com matéria apenas por canais não-oficiais.
Soldados israelenses detêm palestinos de Gaza, vendados e algemados, na fronteira do enclave, em 1º de agosto de 2007 [David Furst/AFP/Getty Images]
Soldados israelenses detêm palestinos de Gaza, vendados e algemados, na fronteira do enclave, em 1º de agosto de 2007 [David Furst/AFP/Getty Images]

Documentos do Escritório de Relações Exteriores e da Commonwealth do Reino Unido comprovaram que as autoridades britânicas não apenas tinham ciência de que autoridades israelenses conduziram tortura contra prisioneiros árabes e palestinos em meados de 1977, como optaram por não pressionar Israel para interromper as práticas.

Em junho de 1977, o Sunday Times publicou um dossiê chocante expondo a tortura brutal de prisioneiros árabes e palestinos nas cadeias e centros de detenção israelenses. A reportagem descreveu os atos de tortura como “sistemáticos … organizados de forma tão metódica que não pode ser meramente descartada como obra de alguns ‘policiais desonestos’, supostamente excedendo ordens”. Constatou-se ainda que a tortura “parece ser sancionada em algum nível como uma política deliberada”; e detalhou 17 métodos diferentes de abuso, incluindo espancamentos, apertos dos órgãos genitais, inserção de objetos estranhos em orifícios do corpo, suspensão de cabeça para baixo, queimaduras de cigarro e tortura de familiares na frente dos prisioneiros.

O dossiê do Sunday Times se baseou em entrevistas com ex-detidos que descreveram diversos abusos físicos e psicológicos enquanto em custódia.

Na época, os relatórios do Escritório de Relações Exteriores já indicavam aproximadamente 3.200 árabes e palestinos sob custódia de Israel, sejam no território de 1948 — ou Palestina histórica, designado Israel — como nos territórios de 1967 — Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental. Os presos não eram apenas palestinos, como também egípcios, sírios e jordanianos.

Os documentos mostram que, antes de publicar a reportagem, o Sunday Times compartilhou suas descobertas com o então Secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, David Owen. Diplomatas britânicos em Tel Aviv e Jerusalém conduziram entrevistas confidenciais com representantes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e do Serviço Quaker (QS), uma organização de caridade da Irlanda do Norte, para obter opiniões sobre as alegações de tortura.

James Fine do QS confirmou a Mike Jenner, cônsul-geral do Reino Unido na cidade ocupada de Jerusalém Oriental, que “todas as táticas de tortura que vimos serem usadas na Irlanda do Norte também foram aplicadas aqui [contra os palestinos, por Israel]”. Segundo o alerta, “em todos os interrogatórios, foi usado algum grau de espancamento”; em alguns casos, prosseguiu, houve espancamento “grave”. Fine observou também táticas mais “sofisticadas”, incluindo “choques elétricos e inserção de objetos no ânus e no pênis”. Apesar de reconhecer as evidências, trazidas à tona por ex-prisioneiros árabes e palestinos, Fine reiterou que “qualquer exagero deve ser descartado”.

Documentos da Secretaria de Relações Exteriores do Reino Unido mostram ciência de tortura sistemática contra prisioneiros árabes e palestinos por autoridades da ocupação israelense, em 1977; contudo, sob negativa britânica para agir sobre a matéria [Reprodução]

Jenner informou seus superiores no Escritório de Relações Exteriores que Fine acreditava que o conjunto de provas era “tão consistente que, no mínimo, havia um caso prima facie para uma investigação completa sobre as alegações de tortura”.

O representante da Cruz Vermelha em Jerusalém, Alfredo Witschi, corroborou as conclusões do Sunday Times, ao descrever a reportagem como “uma compilação muito justa das evidências disponíveis”, embora pudesse contar “alguns erros”. Witschi destacou que sua organização possuía “evidências semelhantes, embora em quantidade muito maior”, ao alertar a diplomacia britânica de que o peso das evidências sobre espancamentos e outras formas de tortura — “gravíssimos” em alguns casos, ressaltou — era tamanho que poderiam ser “equivaler a prova”.

Witschi sugeriu que interrogadores israelenses “provavelmente não agiam sem instruções” e que estas “possivelmente lhes davam carta branca, desde que não fossem longe demais”. Witschi observou, no entanto, que a reportagem do Sunday Times “dedicou pouca atenção” às técnicas de tortura psicológica utilizadas pelas autoridades israelenses, como “ameaça de tortura após exaustão do suspeito por privação de sono e exercícios rigorosos”. O representante da Cruz Vermelha, contudo, fez questão de alertar Jenner que sua conversa deveria permanecer confidencial.

O Departamento de Pesquisa do Escritório de Relações Exteriores revisou a reportagem e concluiu que as alegações eram “consistentes com evidências disponíveis de outras fontes, incluindo a Cruz Vermelha”. Então, admitiu que pressão psicológica era “provavelmente tolerada pelas autoridades de alto escalão em Israel” e que casos mais graves de maus-tratos seriam supostamente isolados, mas de fato ocorriam. O departamento chamou a atenção de seus oficiais para o fato de que as acusações mais graves eram “contra o pessoal do Shin Bet [Serviço de Segurança Interna em Israel], nas prisões de Moscobia, Hebron e Sarafand”.

O Departamento do Oriente Próximo e Norte da África (NENA) do Escritório de Relações Exteriores do Reino Unido reiterou, no entanto, que as fontes das denúncias eram sobretudo prisioneiros árabes e seus representantes legais, ao sugerir que os testemunhos teriam um viés em potencial. Ainda assim, reconheceu que as acusações de tortura nas prisões de Israel “não eram totalmente inconsistentes com o que emerge de outros materiais que nos são disponíveis e, em particular, com o que o representante da Cruz Vermelha em Jerusalém contou em confiança ao cônsul-geral”.

William R. Tomkys, chefe do NENA, alertou contra tensões entre as partes, ao pedir discrição ao levar a matéria a Avraham Kidron, embaixador israelense em Londres, em vez de envolver sua representação britânica em Tel Aviv. “Podemos começar com o pé esquerdo com o Sr. Kidron, mas é menos arriscado do que se o embaixador de Sua Majestade em Tel Aviv perca a confiança do governo do Sr. Menachem Begin [então primeiro-ministro de Israel]”, escreveu Tomkys, ao aconselhar a ocupação a conduzir um “inquérito público … consistente com a preocupação do país sobre os direitos humanos”, para atenuar apreensões britânicas sobre os prisioneiros.

Contudo, Owen — o chanceler — instruiu sua pasta a esperar até que levasse a questão ao então secretário de Estado dos Estados Unidos, Cyrus Vance.

Diante da reportagem e da recomendação de Tomkys, Owen ordenou que “nenhuma ação fosse tomada”, para que a questão fosse “tratada em nível político, não em nível diplomático”. Para Owen, abordar as denúncias deveria ocorrer “com certeza [embora] não imediatamente”. O ministro britânico destacou a sua equipe que “seria necessário discutir com os americanos, que — como sei — precisam de tempo para ponderar”.

Como se não bastasse, o chanceler confirmou ter conversado com Harry Evans, editor do Sunday Times, sobre a reportagem, apesar de os documentos não indicarem se compartilhou detalhes da conversa com a sua equipe.

Quando o embaixador britânico levantou a questão à Secretaria de Estado em Washington, oficiais afirmaram “levar a sério” a reportagem. Neste sentido, Walter Smith, chefe de Assuntos Israelenses e Árabe-Israelenses da pasta americana, disse ao embaixador que sua equipe estaria preparando um documento ao ministro, no intuito de “incentivar um ou dois membros da Ordem Americana dos Advogados a entrar em contato com colegas israelenses, para avaliar a possibilidade de uma investigação mais aprofundada, levando a eventuais ações corretivas”.

A reportagem do Sunday Times gerou considerável apreensão tanto entre o público quanto entre a classe política do Reino Unido. Em julho de 1977, trinta e três membros do Parlamento assinaram uma moção para debater a matéria, enquanto outros encaminhavam cartas ao chanceler e outros ministros. David Watkins, deputado e membro do Conselho de Oriente Médio do Partido Trabalhista, condenou o “fracasso” do governo em abordar as violações e em tratar das denúncias “de forma mais vigorosa e aberta” junto ao governo israelense, considerando as evidências disponíveis. Watkins advertiu ainda que o Reino Unido corria o risco de ser implicado em “padrões duplos”, caso não agisse como agiu na África do Sul.

O parlamentar pressionou o governo a informá-lo se Londres havia feito tudo o que deveria para descobrir a verdade sobre “as persistentes alegações de tortura” nas cadeias de Israel. Então, condenou o que descreveu como “encobrimento” dos maus tratos contra os prisioneiros árabes e palestinos — “tanto oficialmente quanto na mídia” — ao mencionar como exemplo um documento do Departamento de Estado americano, que apontou ter tido acesso, reportando a não-observância dos direitos humanos por Israel nos territórios ocupados.

O parlamentar descreveu ainda um documento, preparado para o então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, como “notavelmente desonesto … elaborado para assegurar ao presidente que, em circunstâncias [supostamente] difíceis, o regime israelense estaria adotando esforços louváveis, mesmo que não totalmente bem-sucedidos, para proteger e respeitar os direitos humanos dos palestinos, tanto em Israel quanto nos territórios ocupados”.

Em resposta a Watkins, Frank Judd, ministro de Estado do Reino Unido para o Oriente Médio, concordou que as denúncias publicadas pelo Sunday Times seriam “perturbadoras” e notou a demanda para que Israel respondesse. Judd reiterou que, “caso verdade”, tais relatos “refletiriam uma situação a qual nós, como um governo comprometido com a promoção de direitos humanos em todo o mundo, teríamos que ver com a máxima seriedade”.

Judd sugeriu um “inquérito independente”, mas consentiu que seu eventual êxito dependeria da absoluta cooperação israelense. Não obstante, rejeitou qualquer noção de pressionar Israel, ao expressar receios de que, caso Londres abordasse violações supostamente individuais de direitos humanos por oficiais israelenses, tal medida “quase certamente, seria mal interpretada, como uma tentativa de impor pressão política a Israel sobre questões mais amplas de assentamento no Oriente Médio”.

Watkins insistiu, entretanto, que pressionar Israel era imperativo, ao argumentar — desde então — que o regime israelense jamais deixaria os territórios ocupados ou reconheceria os direitos palestinos “salvo sob pressão”.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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