Pode ser difícil ouvir estas palavras da boca de uma menina de 13 anos, mas Meera merece ser ouvida: “Depois que a guerra começou, fui privada dos meus direitos: sem escola, sem amigos, sem desenhos, sem natação … sem vida, apenas dor e sofrimento.”
Desde que o genocídio israelense se intensificou em outubro do ano passado, vemos frequentemente manchetes repletas de declarações de políticos ocidentais, cúmplices das violações, sobre o “direito de Israel de se defender” ou citações sobre falsas negociações de cessar-fogo feitas pelos principais responsáveis pelo genocídio, como o premiê israelense Benjamin Netanyahu ou o presidente americano Joe Biden.
Muito raramente, no entanto, ouvimos as vítimas mais vulneráveis deste horror: as crianças de Gaza.
Meera Waleed Abu Sultan é filha de Waleed, um professor de inglês antes do genocídio, e Tahreer, proprietária de um salão de beleza que foi destruído pelo regime de ocupação israelense em maio deste ano. A família — Waleed, Tahreer, Meera e seus três irmãos mais novos — vivia no campo de refugiados de Jabalia, no norte de Gaza, antes de outubro de 2023, mas foi sucessivamente deslocada e vive hoje em uma tenda improvisada na cidade de Deir Al-Balah, no sul do território. Após semanas tentando encontrar um horário em que a família pudesse acessar a internet com uma conexão suficientemente estável, acabamos conversando por mensagens de voz no WhatsApp, pois não havia sinal suficiente para nossa planejada chamada de vídeo.
Preparando-me para respostas de partir o coração, comecei perguntando a Meera como sua educação foi afetada por esta guerra, e ela respondeu que não frequenta a escola desde outubro de 2023. Em setembro — o mesmo mês em que a Al Jazeera revelou que mais de 85% das escolas de Gaza foram destruídas pelas forças de ocupação —, Meera começou a aprender novamente em uma tenda. Um relatório do Centro Al-Mezan para Direitos Humanos destacou que Israel está cometendo “escolasticídio”, enquanto outro relatório da Agência das Nações Unidas para a Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA) corroborou que a crise em Gaza atrasará a educação das crianças em até cinco anos e corre o risco de criar uma geração perdida de jovens palestinos permanentemente traumatizados.
Perguntei a Meera sobre sua vida antes da guerra. Como a maior parte da população de Gaza, sua família chegou ao enclave mediterrâneo como refugiados. A família de seu pai, Waleed, originalmente da vila de Qubaiba, no centro da Palestina histórica, território hoje considerado Israel, e fugiu para Gaza sob massacres cometidos pelas milícias sionistas durante a Nakba, ou “catástrofe”, de 1948. A família de sua mãe, Tahreer, tem raízes na vila de Hamama, na costa palestina. Ambas as aldeias permanecem ocupadas por Israel desde então.
“Antes da guerra, eu tinha uma vida muito bonita”, disse Meera, mesmo com a história trágica de sua família. “Eu acordava e ia à escola para aprender, encontrava meus amigos e minha professora. Eu fazia minhas coisas favoritas, como desenhar, nadar e ler histórias.”
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Aspectos simples da vida de uma criança, que muitos de nós no Ocidente tomamos como garantidos, tornaram-se sonhos distantes e memórias cada vez mais inalcançáveis para as jovens vítimas desse genocídio. E como é o dia a dia de Meera agora? Ela não esconde sua indignação ao descrever:
Todos os dias, meus irmãos e eu ficamos na fila por muito tempo, sob o calor do sol, para pegar água. Depois, carregamos os galões até nossa tenda. Desde que a guerra começou, não temos água limpa nem comida. Para cozinhar, sofremos muito. Meu irmão e meu pai procuram raízes e cactos para minha mãe, porque não temos gás para cozinhar. E isso é só uma pequena parte do nosso sofrimento diário durante a guerra.
De fato, Israel bloqueou a maior parte da ajuda humanitária desde o início de sua campanha, com apenas 5% do número necessário de caminhões assistenciais entrando em Gaza nos primeiros dez dias de outubro de 2024, comparado a números anteriores a 7 de outubro de 2023.
“Durante a guerra, todos os dias tento desenhar, mas não tenho materiais”, continuou Meera. “Tento ler histórias, mas não tenho livros. Leio o Alcorão na tenda. Tento ser uma menina normal, mas nossas condições não são normais, e isso é muito ruim para nós. Então nos sentimos estranhos o tempo todo”.
Poderíamos dizer que descrever as condições de Gaza como “estranhas” ou “não normais” é subestimar profundamente os fatos flagrantes.
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A família, como muitas outras no território, se viu forçada a documentar seu sofrimento no Instagram, na esperança desesperada de que o mundo exterior — até agora incapaz ou desinteressado em interromper a carnificina infligida por Israel — preste atenção, eventualmente os ajude e os resgate de suas condições abjetas.
Meera recordou o momento em que tiveram de evacuar sua casa no campo de Jabalia, uma área atualmente sujeita ao “Plano dos General”, uma campanha declarada de limpeza étnica. Foi então que Meera pronunciou palavras que nenhuma criança deveria ter que dizer:
Quando fomos expulsos de nossa casa no norte, debaixo de fogo e bombardeios, muitas e muitas pessoas foram mortas nas ruas ao nosso redor. Foi horrível e aterrorizante.
O que a ajudou a superar aquele momento?
“O apoio da minha família e pedir a Deus para nos proteger do bombardeio. Na verdade, nenhum lugar é seguro em Gaza…” Sua voz falha. “Nada — e nenhum lugar — me faz sentir segura. A única coisa [que me faria feliz] é que a guerra acabe e que eu possa voltar para minha casa.”
Pergunto-me, vivendo esses horrores, se há algo — mesmo uma memória — que ajuda Meera a se sentir calma ou mais segura?
“Sempre me lembro do ano passado, quando participei da Semana de Diversão de Verão da UNRWA e também do encerramento, onde cantei uma música chamada ‘Um milhão de sonhos’”, me explicou a menina. Então cantou para mim: “Porque todas as noites, quando me deito, as cores mais brilhantes enchem minha cabeça, um milhão de sonhos me mantêm acordada.”
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Não está claro se, e quando, a poeira finalmente baixar após esse genocídio, Meera será capaz de participar novamente de atividades como essa organizada pela UNRWA. O parlamento do regime israelense, o Knesset, aprovou recentemente leis para impedir a agência de operar em Israel — a sede da UNRWA fica em Jerusalém ocupada —, uma notícia que o enviado palestino à ONU descreveu como um “novo nível” na guerra de Israel contra as instituições e parte integral de um ataque total contra o povo palestino.
O que Meera sonha, além de parar a guerra? A primeira parte de sua resposta, sem qualquer hesitação, ecoa o sonho de muitos jovens palestinos:
Meu sonho é ser médica, para ajudar as pessoas que estão sofrendo.
É comovente que uma criança, que vive hoje no lugar mais perigoso do mundo para as crianças, tenha uma ambição tão altruísta. Mas Meera tem outros sonhos também:
Quero ser uma artista. Uma artista famosa. Porque amo desenhar.
Meera tem um milhão de sonhos e muito mais. Saiba mais sobre a história da família Waleed e ajude Meera e sua família, ao acessar sua campanha no GoFundMe.
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