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Protestos estudantis desafiam hegemonia sobre Israel e Palestina

Na atmosfera do neoliberalismo contemporâneo, a violenta repressão se tornou necessária para preservar o status quo pró-genocídio
Policiais agridem manifestantes pró-Palestina em Nova York, nos Estados Unidos, em 7 de maio de 2024 [Selçuk Acar/Agência Anadolu]

O estrondoso colapso das liberdades acadêmica e de expressão nos Estados Unidos, nos meses recentes, é inédito desde a década de 1950, durante o macartismo e sua violenta repressão aos protestos contra a Guerra do Vietnã, sobretudo no fim dos anos 1960.

Campanhas repressivas também sucederam o 11 de setembro de 2001 e as invasões dos Estados Unidos ao Iraque e ao Afeganistão, principalmente no campo da lei e da vigilância, muitas vezes travadas nos campi universitários. Foi então que as forças de repressão, a fim de suprimir meu ensino sobre Israel e Palestina, me alvejaram pela primeira vez.

Liberais ocidentais talvez pensassem que a atual escala de repressão nunca se repetiria na república americana. Isso era especialmente verdade nas universidades que, na esteira dos métodos coercitivos da década de 1960, haviam se comprometido novamente com ideais liberais que frequentemente brandiam em voz alta.

Contudo, como vítima do assédio contínuo por mais de duas décadas pela minha própria instituição, que colaborou com entes externos para restringir minhas liberdades essenciais, mediante ameaças tácitas e explícitas, nunca me convenci.

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Os compromissos institucionais com princípios como esses nas sociedades liberais falham assim que se mostram eficazes em questionar e ameaçar a ortodoxia política reinante. Me parece que é necessária então uma lição de teoria política para entender o funcionamento do estado liberal e suas instituições.

Mesmo sistema

Em seu notório conselho sobre se os governantes devem almejar ser amados ou temidos, Maquiavel argumenta que “é preferível ser ambos, mas, como não é fácil conciliá-los, se tiver que escolher, é muito mais seguro ser temido do que amado”.

Parte do sistema moderno de governo se refere ao fato de que tanto líderes autocráticos quanto democráticos prefiram atender a esse conselho como um último recurso, ao adotar mecanismos pelos quais possam garantir que sejam fundamentalmente amados.

Karl Marx compreendeu a eficácia desses mecanismos destinados a produzir “amor” e a obediência necessária, não-coercitiva, como “ideologia”.

Em vez de enxergar sistemas contemporâneos de governança autocráticos e democráticos como antagônicos, senão opostos, como a maior parte dos comentaristas políticos tende a fazer, deveríamos entendê-los como duas faces da mesma moeda.

Como apontou o teórico político italiano Antonio Gramsci, leitor perspicaz de Maquiavel, o sistema emprega quantidades variadas de hegemonia e coerção — ambos os ingredientes principais da dominação — para produzir consentimento popular.

O sistema que utiliza mais métodos hegemônicos do que coercitivos costuma ser referido como “democrático”, enquanto o que usa mais métodos coercitivos do que hegemônicos seria “autocrático”. Ambos são projetados para o mesmo objetivo: produzir medo e amor voluntário pelo sistema de governo, conforme receitas que variam.

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Por hegemonia, Gramsci se refere às bases intelectuais, institucionais e morais dominantes da sociedade — o que muitas vezes chamamos de “cultura dominante”. O filósofo francês Louis Althusser denominou essas de “aparelhos ideológicos do Estado”, em contrapartida aos mecanismos coercitivos classificados como “aparelhos repressivos do Estado”.

Pragmatistas de língua inglesa se referem a essa dualidade de estratégias, ao menos desde a Segunda Guerra Mundial, como “a cenoura e o chicote”. Compreender tais mecanismos nos ajuda a desvendar a situação atual nos campi dos Estados Unidos.

Dominação continuada

Quando a hegemonia já não basta para garantir o consentimento do povo nos sistemas de governança considerados “democráticos”, ou se falha em sua tarefa de produzir o mesmo consentimento, levando a uma crise de autoridade, a quantidade de coerção aumenta com celeridade, para permitir a manutenção do controle — atendendo ao ditado de Maquiavel de que é “mais seguro ser temido do que amado”.

Essa estratégia tem sido usada tanto em sistemas “autocráticos” quanto “democráticos” durante os últimos dois séculos. Os Estados Unidos a utilizaram periodicamente todas as décadas desde a Primeira Guerra Mundial, culminando no Patriot Act (Ato Patriota) e na Baía de Guantánamo desde 2001, incluindo casos de sequestros, torturas, assassinatos e outras medidas repressivas direcionadas a cidadãos e não-cidadãos desde 2001.

Nesses casos, quando um regime ainda projeta e administra o “amor” — e, portanto, sua legitimidade —, seu uso excessivo da coerção pode ameaçar a estabilidade e desencadear uma mobilização popular ainda maior contra ele e suas instituições — incluindo as gestões universitárias — em vez da tão desejada desmobilização.

Ao catalisar as ações em curso, o regime corre o risco de perder tanto o “amor” quanto o “medo” de seu povo, de modo que a fórmula aconselhada costuma indicar menos coerção e mais hegemonia para restaurar a estabilidade. É neste ponto exato que a presidente da Universidade de Columbia, Minouche Shafik, e outros que acompanharam seus passos nos últimos meses cometeram um erro crasso de aritmética. A campanha contra professores e estudantes nas universidades dos Estados Unidos ilustra essas estratégias.

Tais esforços foram precedidos por um ensaio geral dez anos atrás, durante a agressão de Israel contra Gaza em 2014, quando Steven Salaita perdeu sua cátedra na Universidade de Illinois porque um de seus tuítes contra a morte de cidadãos palestinos expôs os limites da dissidência tolerável na cultura política predominante pró-Israel nos Estados Unidos.

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As universidades e o sistema liberal de normas e regras que as sustentam funcionam bem quando as liberdades não levam à dissidência das ideias hegemônicas, salvo até um grau que não ameace a cultura dominante.

Isso significa que a defesa dessas liberdades é garantida apenas quando não são, de fato, testadas. Uma vez que a dissidência das ideias hegemônicas representa risco à ideologia dominante e testa sua tolerância, a repressão surge de diversas formas tanto dentro das universidades quanto por forças externas, sejam públicas como privadas.

Policiais prendem estudantes pró-Palestina em frente ao Instituto de Tecnologia de Moda (FIT) de Nova York, nos Estados Unidos, em 7 de maio de 2024 [Selcuk Acar/Agência Anadolu]

Como bastião à manutenção da ideologia da elite dominante, a Universidade de Columbia se mostra essencial à preservação da própria estabilidade ideológica. A apreensão é que, quando seus próprios alunos e professores se afastam do roteiro liberal predeterminado, isso leve a um efeito em cascata por todo o sistema universitário americano, ou mesmo se espalhe a outros sistemas liberais, como nos recentes acampamentos discentes inspirados pela iniciativa na Europa Ocidental, no Canadá e na Austrália.

Marginal a mainstream

De fato, a agitação dos estudantes e professores contra o genocídio realizado por Israel na Faixa de Gaza se espalhou para dezenas de universidades, incluindo Yale, Cornell, Harvard, Princeton, Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), Emory, Universidade do Texas em Austin, Universidade de Nova York (NYU), Berkeley e Universidade do Sul da Califórnia — dentre muitas outros —, onde a repressão massiva ou sua ameaça foi efetivamente implementada.

Os estudantes e professores de Columbia foram condenados e demonizados pela Câmara dos Representantes, pela Casa Branca, por magnatas dos negócios, por entidades privadas, por CEOs de empresas, pela imprensa liberal e conservadora e mesmo pelos curadores das universidades, como a presidente Shafik. A reitora convidou o Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) a reprimir os estudantes e revogar suas liberdades liberais, que a mesma diz cinicamente defender em sua retórica contraposta à ação.

Poderíamos pensar que esses estudantes e professores apoiam o genocídio, em vez de se oporem a ele; que apoiam a supressão de um povo e não a cessação do genocídio de um povo perseguido por Israel desde a fundação do Estado colonial sionista em 1948, com um forte apoio de liberais e conservadores no Ocidente; que apoiam a crescente cumplicidade de Columbia em sustentar o apartheid e o colonialismo israelense, em vez de exigir o fim desses males.

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A inversão de papéis no caso palestino-israelense em todo o chamado mundo ocidental é tão orwelliana que os próprios palestinos, subjugados das formas mais violentas possíveis por uma colônia de conquistadores europeus estabelecida há três quartos de século, são retratados como genocidas antissemitas por nada menos que fundamentalistas cristãos e supremacistas brancos, europeus e americanos, que defendem o genocídio de Israel, cujos antecessores políticos perpetraram, apoiaram ou permaneceram em silêncio perante os crimes hediondos do Holocausto.

No clima neoliberal de hoje, a repressão ampliada dentro dos Estados Unidos se tornou necessária para preservar o status quo pró-genocídio. Esta tarefa não tem sido conduzida desde o 11 de setembro de 2001 por meio de uma legislação cada vez mais repressiva e uma vigilância policial — legal e ilegal —, além da militarização muito mais abrangente das forças policiais em todo o país.

Como manifestantes pacíficos contra a miséria e outros problemas socioeconômicos foram considerados “não não-violentos”, surgiu também uma nova mentalidade sobre as formas de reprimi-los. No entanto, embora a polícia militarizada tenha sido mobilizada para tratar dos dissidentes “não não-violentos”, seja durante o movimento Occupy Wall Street ou nos levantes do Black Lives Matter, não poderia fazê-lo tão facilmente com dissidentes dentro dos muros da academia, pelo menos não até que Shafik os convidasse duas vezes a fazê-lo nas últimas semanas.

Alcançar essa tomada repressiva do sistema universitário a longo prazo, no entanto, não seria prático em uma cultura que afirma valorizar as liberdades acadêmica e de expressão. Era preciso encontrar um elo fraco na corrente da liberdade acadêmica, em torno do qual cidadãos poderiam se mobilizar — algo oportuno para estabelecer um precedente. Entra em cena a questão palestina.

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Como argumentei há uma década, se consolidou um consenso sobre Israel entre os ramos mais distintos da opinião formada pela elite americana, acompanhado por amplo apoio público, desde 1948. Embora sempre tenha existido dissidência do consenso, esta estaria confinada a grupos políticos marginalizados e indivíduos, e se os indivíduos não fossem já marginalizados, sua marginalização seguiria imediatamente.

Nos últimos 25 anos, porém, a dissidência sobre a questão palestina e a ocupação militar israelense saiu das margens da sociedade para o mainstream nos Estados Unidos — para artistas, cientistas, jornalistas, acadêmicos e estudantes, incluindo judeus.

Estudantes da Universidade de Nova York (NYU) reforçam solidariedade ao povo palestino durante cerimônia de graduação no Yankee Stadium, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, em 15 de maio de 2024 [Lokman Vural Elibol/Agência Anadolu]

Noam Chomsky foi certa vez o único acadêmico judeu proeminente a discordar em público do consenso sobre Israel, ostracizado pela opinião pública mainstream como uma punição por sua dissidência. Hoje, contudo, uma série de estudiosos judeus e muitos outros mais estudantes judeus divergem da conjuntura.

Esmagando a dissidência

O persistente consenso sobre Israel é o que faz com que os poderes estabelecidos estejam convencidos de que o sucesso de sua campanha para suprimir a dissidência nos campi será mais provável se seu ponto de entrada for a questão palestina. Ao fazê-lo, poderiam quem sabe redirecionar o foco a questões em torno das quais há realmente consenso, como é o caso do antissemitismo e da história do Holocausto, muito embora sob instrumentalização a favor de Israel, ao rotular o Estado de apartheid como a única “democracia” no Oriente Médio.

Usar Israel e Palestina como ponto de entrada para normalizar a supressão da dissidência dentro dos muros da academia é tanto tático quanto estratégico. É tático porque, uma vez bem-sucedido, tiraria aspectos-chave da governança do corpo docente e os transferiria às administrações universitárias neoliberais — como transcorreu em Columbia nas semanas recentes — e estabeleceria um precedente e um efeito de dissuasão subsequente sobre outros tipos de dissidência, talvez ainda mais perigosos, que comandam um apoio público ainda mais amplo do que o povo palestino.

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Lembremos aqui que a Fundação Ford usou Israel e Palestina, em 2003, para exigir que potenciais beneficiários assinassem uma declaração se comprometendo à oposição a toda e qualquer forma de “violência, terrorismo, intolerância ou destruição de um Estado”. A medida gerou condenação na época dos reitores universitários de Princeton, Stanford, Harvard, Chicago, Pensilvânia, MIT, Yale, Cornell e mesmo Columbia. Na época, as gestões não hesitaram nem por um segundo em defender a liberdade acadêmica.

Os reitores redigiram uma carta à Fundação Ford em abril de 2004 — seis meses antes da caça às bruxas contra mim em Columbia ter oficialmente começado — expressando “sérias preocupações” sobre a nova linguagem, ao indicar que tentava “regular o comportamento e o discurso das universidades além do escopo das bolsas”. “É difícil enxergar como essa cláusula não entraria em conflito com o princípio básico da liberdade de expressão em nossos campi”, acrescentaram.

Recorrer à questão da Palestina e Israel dessa maneira também é estratégico para parar a crescente maré de dissidência acadêmica sobre o regime israelense, especificamente em relação ao boicote, desinvestimento e sanções que afetam os mecanismos neoliberais de envio de recursos e a política geral dos Estados Unidos sobre toda a região.

Foi nesse contexto que se intensificou a batalha contra mim entre os anos de 2002 e 2009, na Universidade de Columbia, até que — apesar dos melhores esforços de muitos — enfim fracassaram em bloquear minha titularidade.

Hoje, estamos novamente no auge dessa guerra contínua. Na linguagem orwelliana atual, opor-se ao genocídio israelense contra o povo palestino é ora traduzido como apoio a um genocídio ficcionais dos palestinos contra os judeus; opor-se à supremacia judaica imposta por Israel e seu apartheid colonial se traduz em “antissemitismo”; e suprimir as liberdades acadêmica e de expressão nos campi seria uma forma de defendê-la.

Os dirigentes neoliberais das universidades, seus financiadores privados e públicos e seus aliados no governo parecem se iludir com a ideia de que podem suprimir a oposição ao genocídio por todos os meios possíveis e que isso desestimulará a dissidência e manterá o apoio inabalável ao genocídio realizado por Israel dentro dos círculos da elite nos Estados Unidos e no Ocidente como um todo.

O que estudantes e professores demonstraram nos últimos sete meses, contudo, é que o sonho de restabelecer a hegemonia ideológica foi perdido para sempre e que quanto mais o governo e as administrações universitárias empregam a coerção, mais essa hegemonia fatalmente se corrói.

Este artigo foi publicado originalmente em inglês em 9 de maio de 2024 pela rede Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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