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A incompetência da ONU e o vexatório discurso sobre a liberdade de imprensa

Cartaz erguido durante protesto do Sindicato de Jornalistas turcos no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa em 3 de maio de 2017 em Istambul, Turquia. Na ocasião,  o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, disse que “os jornalistas vão aos lugares mais perigosos. Os profissionais da mídia sofrem assassinato de caráter, agressão sexual, ferimentos e até mesmo morte, e precisamos de líderes para defender uma mídia livre.” [ Chris McGrath/Getty Images]
Cartaz erguido durante protesto do Sindicato de Jornalistas turcos no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa em 3 de maio de 2017 em Istambul, Turquia. Na ocasião,  o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, disse que “os jornalistas vão aos lugares mais perigosos. Os profissionais da mídia sofrem assassinato de caráter, agressão sexual, ferimentos e até mesmo morte, e precisamos de líderes para defender uma mídia livre.” [ Chris McGrath/Getty Images]

No dia 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, o senhor secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, proferiu um discurso pobre, submisso e que, no mínimo, despreza tudo o que os jornalistas palestinos têm enfrentado nos últimos 76 anos de ocupação e mais recentemente em seis meses de massacre e extermínio televisionado. Tal discurso nos faz pensar na validade, capacidade e vontade da ONU em defender a Liberdade de Imprensa dos jornalistas, quem dirá os Direitos Humanos em geral de todos os seres humanos que habitam este planeta.

Para não ser injusto ou seletivo, tal como a ONU e o senhor secretário-geral, deixo abaixo os discursos referentes aos dois últimos anos em questão:

Discurso completo de 2023

 “Durante três décadas, no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a comunidade internacional comemorou o trabalho dos jornalistas e trabalhadores da mídia. Este dia destaca uma verdade universal: a liberdade de todos depende da liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa é a base da democracia e da justiça. Graças a ela dispomos de todos os dados que necessitamos para formar uma opinião e interpretar o poder com a verdade. E tal como nos lembra o tema deste ano, a liberdade de imprensa representa a própria essência dos Direitos Humanos. No entanto, em todos os cantos do mundo, a liberdade de imprensa está sob ataque. A verdade é ameaçada pela desinformação e o discurso de ódio, que procuram confundir os limites entre fatos e ficção, entre ciência e conspiração. A crescente concentração da indústria nos meios de comunicação nas mãos de poucos, o colapso financeiro de dezenas de organizações de notícias independentes e um aumento de leis e de regulamentos nacionais que sufocam os jornalistas estão a aumentar ainda mais a censura e a ameaçar a liberdade de expressão. Enquanto isso, jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação são diretamente visados on-line e off-line enquanto realizam seu trabalho fundamental. São frequentemente ameaçados intimidados, detidos e presos. Pelo menos 67 trabalhadores dos meios de comunicação foram assassinados em 2022 – um aumento inconcebível de 50% em relação ao ano anterior. Quase três quartos das mulheres jornalistas sofreram violência on-line, e uma a cada quatro foram ameaçadas fisicamente. Há dez anos, as Nações Unidas estabeleceram um Plano de Ação para Segurança dos Jornalistas, para proteger os trabalhadores dos meios de comunicação e acabar com a impunidade por crimes cometidos contra eles. Neste e, em todos os Dias Mundiais da Liberdade de Imprensa, o mundo deve falar a uma só voz: – Acabar com as ameaças e ataques. – Acabar com as detenções de jornalistas por fazerem seu trabalho. – Acabar com as mentiras e desinformação. – Acabar com os ataques contra a verdade e a quem a proclama. Quando os jornalistas defendem a verdade, o mundo está ao seu lado.” António Guterres, 2023

LEIA: Quatro  jornalistas palestinas estão presas sem acusação por Israel

Discurso completo de 2024

“O mundo está passando por uma emergência ambiental sem precedentes, que representa uma ameaça existencial para estas e as futuras gerações. As pessoas precisam saber sobre isso. E os jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação social têm um papel fundamental na informação e educação dos meios de comunicação locais, nacionais e globais, que podem destacar histórias sobre a crise climática, perda de biodiversidade e injustiça ambiental. Através do seu trabalho, as pessoas passam a compreender a situação do nosso planeta e são mobilizadas e capacitadas para tomar medidas para a mudança. Os trabalhadores dos meios de comunicação social também documentam a degradação ambiental e fornecem provas de vandalismo ambiental que ajudam a responsabilizar os responsáveis. Não é surpresa que algumas pessoas poderosas, empresas e instituições não se detenham diante de nada para impedir que os jornalistas ambientais façam o seu trabalho. A liberdade dos meios de comunicação social está sob cerco e o jornalismo ambiental é uma profissão cada vez mais perigosa. Mortos nas últimas décadas, na grande maioria dos casos, ninguém foi responsabilizado. A UNESCO informa que, nos últimos 15 anos, ocorreram cerca de 750 ataques a jornalistas e meios de comunicação que informavam sobre questões ambientais e que a frequência desses ataques está a aumentar. Os processos também são mal utilizados para censurar, silenciar e deter os repórteres ambientais. Enquanto uma nova era de desinformação climática se concentra em minar soluções comprovadas, incluindo energia renovável, os jornalistas ambientais não são os únicos em risco. Em todo o mundo, os trabalhadores da mídia estão arriscando suas vidas tentando trazer-nos notícias sobretudo, desde a guerra à democracia. Estou chocado e consternado com o elevado número de jornalistas mortos nas operações militares israelitas em Gaza. As Nações Unidas reconhecem o trabalho inestimável dos jornalistas e profissionais dos meios de comunicação social para garantir que o público seja informado e envolvido. Sem factos, não podemos combater a desinformação. Sem responsabilização, não teremos políticas fortes em vigor. Sem liberdade de imprensa, não teremos qualquer liberdade. Uma imprensa livre não é uma escolha, mas uma necessidade. O nosso Dia Mundial da Liberdade de Imprensa é muito importante, e por isso apelo aos governos, ao sector privado e à sociedade civil para se juntarem a nós na reafirmação do nosso compromisso de salvaguardar a liberdade de imprensa e os direitos dos jornalistas e profissionais da comunicação social em todo o mundo.” Atónio Guterres, maio de 2024

Quero começar destacando a importância do jornalismo ambiental frente aos nossos problemas com as mudanças climáticas, evidenciados na atual crise pela qual passam os habitantes do Rio Grande do Sul. Quero frisar a importância da proteção de jornalistas que se dedicam a essa cobertura, tal qual como foi o caso da execução de Bruno Pereira e Dom Phillips. No entanto, vivemos uma situação não inédita, porém exacerbada no quesito extermínio específico de jornalistas em Gaza, e a prisão arbitrária dos mesmos profissionais na Cisjordânia.

Em 2023, Guterres ressaltou que era inconcebível um aumento de mortes (67) de jornalistas em 50%, comparando-o com o ano de 2022. Mas, agora, já somam 133 jornalistas (em Gaza e sul do Líbano) assassinados pelo regime de ocupação israelense, e só em um período de seis meses – segue a lista do PJS. E nesse momento, o foco no discurso do Secretário-Geral foi no “jornalismo ambiental” que “é uma profissão cada vez mais perigosa”. Senhor António Guterres, caso não tenha se dado conta, atualmente não há nenhuma profissão mais perigosa no mundo do que ser um jornalista na Palestina.

Por que no discurso deste ano, os números de morte não foram explícitos como em 2023? Simples! – Porque o infeliz que escreveu esse discurso lido pelo senhor Guterres, estava interessado em desviar a atenção do público, sem omitir ou mentir, uma tática comum de uma censura institucionalizada. Mas estou aqui para lembrar, em 2023, o Sindicato de Jornalistas Palestinos (PJS) notificou mais de 900 violações cometidas contra profissionais de imprensa, 150 a mais do que cometidas este ano em todo o mundo. Mas os dados da ONU não batem, afinal o PJS documenta mensalmente todas as violações cometidas contra os profissionais palestinos, no último relatório publicado, tais violações foram reportadas:

Em março, foram contabilizados 105 crimes, violações e agressões, incluindo a destruição de 12 instituições e casas de jornalistas, todos na Faixa de Gaza, bem como a prisão de 8 jornalistas, enquanto foram registrados 24 casos de destruição e confisco de equipamento de trabalho e 22 outros incidentes de detenção e impedimento de trabalho. O comunicado acrescenta que as forças de ocupação invadiram 4 casas e instituições de comunicação social, e foram observados 3 casos de disparos diretos em direção ao local onde as equipes de jornalistas se encontravam para realizar a cobertura de outras violações.

Também foram reportados cerca de 10 colegas homens e mulheres espancados, enquanto colonos realizavam outros ataques contra população civil na Cisjordânia.

Senhor secretário-geral António Guterres, o senhor deixou claro este ano que está “chocado e consternado com o elevado número de jornalistas mortos nas operações militares israelenses em Gaza”. Senhor Guterres, eu também me sinto chocado e consternado, primeiro com a situação atual dos colegas palestinos, mas sabe o que me deixa mais chocado e consternado? O simples motivo de tais violações contra os colegas jornalistas palestinos não ser a prioridade do seu discurso deste ano. Senhor Guterres, tenho amigos jornalistas em Gaza e na Cisjordânia, alguns presos, como Muath Amarneh, outros que tiveram as casas bombardeadas como Adham al-Hajjar, e outros que seguem trabalhando esquivando-se das bombas como Attiya Darwish e Mutassem Murtaja, este último, o senhor pode conferir o sobrenome dele no Tribunal Penal Internacional, pois desde 2019 o assassinato de seu irmão Yasser Murtaja, aguarda na mesa de alguém para ser julgado. Então senhor secretário, quando o senhor faz um discurso como esse, seria melhor que não o tivesse feito, pois ofende a memória dos mortos e dos vivos.

Mais uma vez, quero ressaltar a importância do jornalismo ambiental e a segurança desses profissionais, aos quais eu me incluo, pois tudo que reporto ou pesquiso sobre a Palestina desde 2020, como um amigo costuma dizer, “é uma devoção” não remunerada. E no qual o jornalismo ambiental é minha verdadeira profissão, mas, na atual condição em que nos encontramos, prefiro que a comunidade internacional coloque o que está acontecendo com os jornalistas palestinos como a prioridade de qualquer pauta, principalmente quando essa se refere ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

LEIA: Na passagem do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, Gaza lamenta a morte de mais de 140 jornalistas em ataques israelenses

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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