Portuguese / English

Middle East Near You

A história esquecida dos árabes na Guerra Civil Espanhola

Centenas de voluntários árabes se juntaram às Brigadas Internacionais em defesa do governo espanhol, diante da ameaça das forças fascistas de Franco
Soldados nacionalistas atacam subúrbio de Madrid durante a Guerra Civil Espanhola, em março de 1937 [Narodowe Archiwum Cyfrowe/Wikimedia/Creative Commons]

Quase 85 anos atrás, o destino da capital espanhola Madrid estava em jogo, à medida que forças insurgentes nacionalistas lançaram seu ataque à cidade e seus defensores republicanos.

O componente fundamental da ofensiva militar, com início em 8 de novembro e duração até a queda de Madrid, em março de 1939, foram os soldados marroquinos que serviram sob o futuro ditador Francisco Franco, em seu Exército da África.

A presença árabe na Guerra Civil Espanhola é um fato amplamente conhecido pelos livros de história. O que pouco se conhece é o papel exercido pelos árabes do lado republicano.

O cerco de Madrid, um impasse de 28 meses deflagrado pelo ataque à cidade em novembro de 1936, durou tanto devido, em parte, ao apoio que os republicanos receberam das Brigadas Internacionais. Estas eram unidades militares constituídas de voluntários estrangeiros de todo o mundo — sobretudo concidadãos europeus —, que chegaram aos milhares em defesa do governo espanhol.

Em 9 de novembro, a 11ª Brigada Internacional, com 1.900 homens, estava no front de Madrid. Entre eles, muito provavelmente, estavam voluntários árabes.

Árabes em defesa da República

Devido à documentação limitada e falta de interesse histórico, pouco se sabe sobre os árabes que pegaram em armas em defesa da Espanha para protegê-la das garras do fascismo. Consequentemente, muitos dos nomes desses voluntários árabes continuam desconhecidos.

Determinar o número exato é também uma tarefa árdua. Alguns historiadores estimam aproximadamente mil árabes entre as Brigadas Internacionais. O historiador catalão Andreu Castells, que conduziu uma pesquisa extensa sobre o assunto, encontrou 716 casos. A disparidade nos números é resultado de um registro irregular entre as forças republicanas, além de erros de tradução e confusões oriundas da cidadania colonial.

Muitos dos árabes que se voluntariaram estavam registrados como cidadãos franceses, à medida que seus países, sobretudo no Norte da África, viviam sob dominação colonial, quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola. Além disso, costumava haver erros de grafia dos nomes árabes. Aproximadamente metade dos árabes que se voluntariaram na Espanha eram argelinos, com 493 filiados às forças republicanas, dos quais 332 sobreviveram.

RESENHA: Os mamelucos: Guerreiros escravos do Islã medieval

“Havia um forte movimento anarquista na Argélia, na ocasião, que motivou muitos a se recrutarem, mas também era mais fácil chegar à Espanha, pois havia barcos diretos da cidade portuária de Orã a Alicante,” explicou o cineasta egípcio Amal Ramsis, que dirigiu o documentário Venís desde lejos (Vocês que vem de longe), sobre a presença árabe na Guerra Civil Espanhola.

Segundo as estimativas de Castells e do Arquivo de História Sociopolítica do Estado da Rússia, 211 marroquinos, 11 sírios, quatro palestinos, três egípcios, dois iraquianos e um libanês pegaram em armas em nome das Brigadas Internacionais.

As motivações por trás da participação árabe na guerra variam, embora Ramsis argumente que fossem motivados por sonhos de sua própria libertação nacional. Segundo a diretora: “Voluntários árabes não se alistavam somente por solidariedade à Espanha, mas também em defesa de seus próprios ideais. Para eles, uma vitória republicana na Espanha poderia desembocar na descolonização do mundo árabe a longo prazo, dando início a sua libertação”.

Um palestino na linha de frente

Um dos mais proeminentes cidadãos árabes a participar da Guerra Civil Espanhola foi o jornalista e comunista palestino Najati Sidqi, que acreditava que a queda do fascismo europeu poderia abrir às mortes à luta por autodeterminação e independência em sua região.

“Não há desculpa alguma para excluir o voluntariado árabe. Não estamos nós também reivindicando democracia e liberdade?”, relatou Sidqi em Memórias de um Comunista Palestino nas Brigadas Internacionais. “Não seria o Magrebe árabe, no noroeste da África, capaz de conquistar sua liberdade nacional caso os generais fascistas fossem depostos?”

Sidqi recorda se apresentar às milícias do governo local, em território espanhol, ao declarar com orgulho: “Sou um voluntário árabe. Venho para defender a liberdade de meu povo na vanguarda de Madrid. Venho para defender Damasco em Guadalajara, Jerusalém em Córdoba, Bagdá em Toledo, Cairo na Andaluzia e Tetuão em Burgos”.

Sidqi não se alistou formalmente às Brigadas Internacionais, mas foi enviado à Espanha pela Internacional Comunista em uma missão informacional para desestabilizar as tropas nacionalistas. Chegou ao país em agosto de 1936 sob o disfarce de um cidadão marroquino chamado Mustafa ibn Jala, incumbido de disseminar seus ideais e incitar os soldados marroquinos a desertar do lado fascistas.

Durante sua missão, Sidqi escreveu ao jornal comunista Mundo Obrero, estabeleceu a Associação Antifascista Hispano-Marroquina, organizou transmissões de rádio no idioma árabe, espalhou panfletos e visitou as trincheiras para instar seus concidadãos árabes a trocar as fileiras nacionalistas pelos republicanos.

Com megafone na mão, disse Sidqi em certa ocasião: “Ouçam, irmãos. Sou árabe como vocês. Aconselho que desertem desses generais que lhes tratam tão mal. Venham conosco, acolheremos vocês como é nossa responsabilidade. Pagaremos a cada um de vocês um salário diário e quem quer que não queira combater será levado de volta a seu país”.

LEIA: Das páginas da história palestina – Sheikh Yassin al-Bakri

Suas tentativas para encorajar uma deserção em massa obtiveram pouco êxito. De fato, poucos marroquinos deixaram as fileiras de Franco, à medida que Sidqi cometeu o equívoco de entregar sua mensagem em árabe clássico — que muitos dos soldados não falavam, tampouco liam.

Racismo republicano 

Os ideais que o lado republicano se propunha a defender e que atraíram muitos árabes à causa não costumavam ser postos em prática. Muitos dos soldados árabes eram tratados com hostilidade e vivenciavam racismo nas mãos de seus companheiros europeus. A desconfiança para com os árabes era lugar comum na sociedade espanhol de então, motivada por fragmentações históricas, preconceito racial e estereótipos negativos.

“Havia um racismo intrínseco na imprensa republicana, ao exacerbar o preconceito enraizado na sociedade espanhola”, comentou o jornalista e historiador Marc Almodovar. “A representação dos mouros e árabes eram humilhante e desumanizante”.

Por exemplo, em uma ilustração intitulada “Civilização cristã”, publicada pelo tabloide republicano Fragua Social, um soldado muçulmano foi retratado atacando uma mulher e uma criança, com um crescente e uma estrela visíveis em seu capacete.

Sidqi escreveu sobre essa ampla desconfiança ao descrever seu primeiro encontro com as organizações paramilitares do lado republicano, ao chegar em Barcelona. “Você é realmente um árabe? Você é um moro? Um marroquino?”, perguntou um homem. “É impossível! Os marroquinos estão marchando com os bandoleiros fascistas, atacando nossas cidades, matando, sacando e estuprando nossas mulheres”.

Reforçando essa atitude, havia uma incapacidade de compreender que os cidadãos árabes com os quais se deparavam tinha sua própria autonomia e individualidade. De acordo com Almodovar: “Tudo se banhava em racismo. [Os árabes] não eram considerados seres políticos, com uma agenda e critérios próprios”.

LEIA: Assassinato racista de marroquino provoca indignação na Espanha

A presença de soldados marroquinos nas fileiras franquistas piorou o preconceito.

As propostas pró-árabes de Sidqi também encontravam resistência do Partido Comunista Espanhol, com destaque a Dolores Ibarruri — liderança na época, célebre por seu slogan “No pasarán!”, enunciado durante a Batalha de Madrid. A criação da Associação Antifascista Hispano-Marroquina, por iniciativa de Sidqi, alimentou atritos. Seus planos para privar Franco de sua bucha de canhão ao instigar uma revolução anticolonial no front marroquino experimentaram veemente oposição. Ibarruri, conforme os relatos, obstruiu toda e qualquer negociação por uma aliança com “as hordas de mouros, bestas selvagens, bêbados de sexualidade, que estupram nossas mulheres e filhas”.

Frustrado com a hostilidade dos republicanos, Sidqi deixou a Espanha em dezembro de 1936. “Havia uma completa falta de confiança a qualquer marroquino”, relembrou o militante palestino. “Mais de uma vez, fomos surpreendidos em saber que republicanos assassinaram marroquinos enquanto prisioneiros. Entendi— do fundo de meu coração — que a minha missão havia fracassado”.

Marroquinos lutando por Franco

Árabes que combatiam pelo lado republicano eram superados em vasto número pelos árabes do lado franquista, a serviço do chamado Exército da África, que tanto auxiliou o futuro autocrata durante o conflito. O Exército da África possuía aproximadamente 60 mil marroquinos, dos quais em torno de 20 mil foram mortos.

O Exército da África era um legado da Guerra do Rife, da década de 1920, constituído por recrutas locais de todo o norte do Marrocos. Muitos dos soldados marroquinos foram convencidos ao alistamento do lado nacionalista sob o pretexto de um dever religioso contra os “ateus republicanos”, além de recompensas financeiras por sua participação armada.

“Houve tentativas de mobilizar recrutas [árabes] ao lado nacionalista ao falar da luta contra o ateísmo”, destacou Sebastian Balfour, historiador e professor de estudos espanhóis contemporâneos na Escola de Economia de Londres. “Fundamentalmente, contudo, era uma oportunidade a pessoas paupérrimas para ganhar algum dinheiro a suas famílias”.

Francisco Franco escoltado pela Guardia Mora, composta por soldados marroquinos a serviço dos nacionalistas, durante visita em San Sebastián, no pós-guerra, em 1939 [Pascual Marín/Wikimedia/Creative Commons]

Soldados marroquinos na Espanha

Embora fosse um componente chave das forças de Francisco Franco, Balfour esclarece que os soldados marroquinos “eram basicamente bucha de canhão no campo de batalha”.

Ainda assim, os nacionalistas prestavam um respeito em particular a seus ritos religiosos, ao levar imãs entre as tropas e permitir as orações diárias em certa segurança e liberdade. “Desejavam tratá-los tão bem quanto possível porque constituíam uma tropa de choque à causa nacionalista. Eram forças preciosas por sua experiência de batalha — algo não tão comum dentre os espanhóis”.

No fim da guerra, Franco nomeou a Guardia Mora (Guarda Moura) como sua escolta cerimonial pessoal. No lombo dos cavalos, envolta em uniformes rubro-brancos, a Guardia Mora circundava seu Rolls Royce nos desfiles oficiais, até ser dissolvida em 1956.

Todavia, a gratidão de Franco aos marroquinos que lhe deram tantas vitórias era bastante limitada. Aqueles que serviram a suas tropas foram abandonados quase imediatamente depois da guerra, enviados de volta ao Marrocos, muitas vezes, com uma pensão miserável.

“Havia certo grau de desinteresse no destino dos veteranos da guerra civil por parte das novas autoridades nacionalistas. Além de pensões, não acho que prestaram muita atenção às condições de vida daqueles que retornaram ao Marrocos”, comentou Balfour say.

No documentário Los Perdedores, um marroquino que lutou pelos nacionalistas sumarizou sua experiência: “Franco foi um bastardo ingrato. Após vencer a guerra, se esqueceu de nós. Deixamos de ser útil para ele”.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 19 de dezembro de 2019.

 

Categorias
ÁfricaArgéliaEspanhaEuropa & RússiaMarrocosPalestinaPublicaçõesReportagem
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments