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Após 76 anos de Nakba, bastam 24 horas para ONU ‘condenar’ o Irã

Reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre ataque iraniano a Israel, em Nova York, 14 de abril de 2024; no centro, o secretário-geral António Guterres [Fatih Aktas/Agência Anadolu]

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, expressou preocupação durante a reunião de emergência do Conselho de Segurança, convocada a pedido de Israel, após o lançamento de projéteis pelo Irã. Guterres alertou que o Oriente Médio está à beira de um conflito total e enfatizou a necessidade de desarmamento e redução da escalada. É sério que teremos que desenhar para o senhor secretário-geral que o Oriente Médio já está afundado em um conflito total desde que o britânico Mark Sykes e o francês François Georges-Picot se sentaram à mesa em 1916 para esquartejar o Oriente Médio e dividir os espólios do Império Otomano? É sério que teremos que dizer mais uma vez que há tantas décadas estamos implorando para que os Estados Unidos e a Europa parem de armar Israel?

O senhor secretário-geral destacou ainda que as populações da região enfrentam um perigo real de guerra e instou à máxima moderação. Moderação? Por acaso, bombardear hospitais, universidades, mesquitas e casas é algo moderado?

Imagens de destruição do hospital Al-Shifa e dos edifícios vizinhos. Israel cercou o complexo hospitalar por 14 dias que resultou em dezenas de vítimas e centenas de prisões. [Osama Rabi e Ramzi Mahmud/Agência Anadolu]

Ainda mais bizarro, foi Guterres dizer que o contra-ataque do Irã violou a Carta das Nações ao lançar drones, mísseis de cruzeiro e balísticos contra Israel. Para tentar entender o ponto de vista do senhor secretário-geral, vejamos o que diz o artigo 51 da presente Carta das Nações, ao qual o Irã pautou a legitimidade de seu contra-ataque:

ARTIGO 51 – Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.

Mesmo para qualquer leigo no assunto, está claro que a República Islâmica do Irã agiu sob legitima defesa, afinal, em 1° de abril, Israel bombardeou seu consulado na Síria, matando sete pessoas. O Irã é membro da ONU desde 1945, enquanto Israel foi admitido em 1949 sob as condições de acatar o direito de retorno dos palestinos (Resolução 194), que jamais foi cumprida. Israel alega o direito de defesa contra o Hamas, mas não assume a responsabilidade por seus ataques, ao contrário do Irã, que comunicou ao Conselho de Segurança e assumiu a autoria dias antes que seus mísseis atingissem o solo ocupado. Ao que parece, Guterres não leu a Carta das Nações, ou já escolheu um lado e todo o resto que fala sobre os palestinos não passa de encenação frente às câmeras “civilizadas” do ocidente.

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Há seis meses, Israel bombardeia civis palestinos sob a alegação de legítima defesa, a mesma alegação que o Irã usou essa semana, porém, para direcionar o ataque contra alvos militares. No entanto, adivinha quem é que foi condenado em apenas 24 horas! Na verdade, desde 1948, Israel comete os mesmos crimes de lesa-humanidade contra os palestinos. Há 76 anos, impõe também um regime de apartheid, o que é considerado crime desde 1973. Organizações internacionais como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional já declararam que Israel é praticante desse regime racista, contudo, após décadas e décadas, isso jamais foi “condenado” pela ONU.

Um idoso palestino e uma criança podem ser vistos durante a Nakba, em 1948 [Hanini/Wikipedia]

Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou os direitos humanos inalienáveis pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, que Israel assinou para ser admitido. Direitos que Israel nunca teve intenção de cumprir. Direitos esses como igualdade, liberdade, dignidade, proibição de tortura, julgamento justo, manifestação pacífica, acesso à saúde e direito à vida, que Israel viola diariamente sem ser condenado.

Na mesma reunião de amigos nas “Nações Unidas por Israel”, o senhor secretário-geral enfatizou a importância de evitar grandes confrontos militares e o sofrimento dos civis, pedindo ação coletiva do Conselho para garantir um cessar-fogo humanitário em Gaza, a libertação de reféns e a entrega de ajuda humanitária. Mas já não foi aceito (depois de seis meses) um cessar-fogo e a entrega de ajuda humanitária, fato que mais uma vez Israel ignorou?

Guterres também destacou a necessidade de acabar com a violência na Cisjordânia ocupada para evitar tensões ao longo das fronteiras da Linha Verde. Mas não foram as fronteiras às quais essa mesma ONU vendeu a Palestina para os sionistas europeus e, antes deles, sua antecessora, a Liga das Nações, vendeu aos britânicos? Não seria essa mesma fronteira que Israel ultrapassa todos os dias com seus assentamentos, os quais também são considerados ilegais pela mesma ONU? Não são essas as fronteiras que Israel impede os palestinos de Gaza de sair? Nos poupe, Guterres, Israel já ultrapassou todas as linhas, sejam elas verdes ou vermelhas.

Demorar 76 anos e seis meses para condenar Israel e menos de 24 horas para condenar o Irã é um recado que soa alto e claro: A ONU falhou na defesa dos direitos humanos.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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