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De Meca a Jizam: Explorando o patrimônio esquecido da província saudita de Hijaz

Aldeia antiga de Thee Ain, em al-Baha, na Arábia Saudita, em 6 de fevereiro de 2023 [Didier Marti/Getty Images]

Em janeiro de 2023, viajei a Hijaz para realizar a peregrinação islâmica do Umrah; então, prossegui viagem às províncias do sul da Arábia Saudita. O plano era viajar pela cordilheira de Sarawat, que corre paralelamente à costa oriental do Mar Vermelho, e descer até Jazan, a última província na fronteira com o Iêmen.

A região de Hijaz é localizada no terço ocidental do país e abriga as duas principais cidades sagradas para o Islã: Meca e Medina.

Sua rica história, no entanto, precede o Islã. Por milhares de anos, viajantes e caravanas atravessaram a região para chegar ao Iêmen, ao sul, ou à chamada Grande Síria e Palestina, ao norte. Historicamente, o Hijaz é a região mais importante da Península Arábica, com Meca como seu centro comercial e espiritual.

Com o surgimento do Islã, a importância de Hijaz foi renovada. De acordo com a tradição islâmica, o Profeta Ibraham — ou Abraão — fundou a cidade de Meca ao lado de seu filho Ismail e, juntos, construíram a Caaba, considerada a primeira Casa de Deus.

No século VI, o Profeta Muhammed, nativo de Meca, ressuscitou mais uma vez as tradições monoteístas de Abraão, ao unir as tribos da Arábia em uma única fé.

Hijaz na história

Boa parte das batalhas e episódios constitutivos dos primórdios do Islã transcorreram em Hijaz, como é o caso de Tabuk e Taif, ao consolidar o papel de toda a região na história e tradição islâmicas.

A região setentrional de Tabuk foi cenário, por exemplo, de uma importante expedição militar durante a jornada do Profeta Muhammad, que buscou unir as tribos árabes sob a nova liderança islâmica, contra os bizantinos, ainda mais ao norte.

Taif, por sua vez, é uma cidade que o Profeta Muhammad visitou no início de sua jornada espiritual, para transmitir sua mensagem e conquistar apoiadores que o protegessem contra os clãs cada vez mais hostis da região de Meca.

Mesquita de al-Qantarah, monumento ao Profeta Muhammad em Taif, na Arábia Saudita, em 8 de julho de 2019 [Yasser.Bakhsh/Wikimedia/CC BY-SA 4.0]

À medida que se expandiu o Islã, as antigas rotas de caravanas, então utilizadas para transportar bens de Meca e Medina, foram convertidas em vias de peregrinação. As principais rotas em direção à província do Hijaz partem de Damasco, na Síria, ao norte; Basra, no Iraque, a nordeste; e Sanaa e Aden, no Iêmen, ao sul.

Conforme as capitais do mundo islâmico saíram de Hijaz para se reassentar nas cidades de Damasco, Bagdá, Cairo e — mais tarde — Istambul, as rotas norte e leste ganharam importância, enquanto as rotas iemenitas caíam em declínio. A importância da via norte é documentada pelo fato de que muitos governantes muçulmanos, desde Salah al-Din, no século XII, a Suleiman, o Magnífico, quatrocentos anos depois, investiram pesadamente na infraestrutura e segurança das peregrinações.

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Em 1908, os otomanos começaram a construir a ferrovia de Hijaz, rota que uma vez concluída ligaria a capital imperial de Istambul a Meca, a serviço de peregrinos, comerciantes e expedições militares às áreas mais remotas do território otomano. A obra, embora incompleta, conectou Damasco e Medina, muito embora tenha rescindido antes de chegar ao Iêmen.

A negligência histórica do sul do Hijaz deu forma à maneira como a geografia da região — e da Arábia Saudita como um todo — é vista hoje. Estrangeiros assumem que toda a Península Arábica é árida, quente e plana, conforme a topografia do deserto sobre aquilo que conhecemos como Rub al-Khali — ou Quadrante Vazio.

O sul do Hijaz, porém, ao abarcar historicamente o norte do Iêmen e compreender quatro províncias — Al-Baha, Asir, Jizan e Najran —, é extraordinariamente distinto e diverso tanto em seu clima, quanto em sua geografia.

Embora a média de chuvas na maior parte da Arábia Saudita não exceda 150 mm por ano, essas províncias recebem entre 400 mm e 600 mm anualmente, com uma média temperatura também inferior, em até 10 °C, tornando-se oásis em meio ao deserto. Abrangem ainda os picos mais altos do país, alguns dos quais repletos de vales verdes.

Hijaz hoje

Após concluir a peregrinação, parti de Meca em direção a Taif, cidade famosa na história islâmica por receber o Profeta Muhammad. Trata-se de um popular destino de verão às famílias nativas, chamada por vezes, desde os tempos antigos, de “capital de veraneio” da Arábia Saudita, devido a seus resorts nas montanhas.

A estrada de Taif leva viajantes à cordilheira de Sarawat, que possui rotas milenares. Chega, em alguns pontos, a um planalto e então desce e atravessa vales, em outros.

Taif está situada no topo de um desses planaltos, a 1.800 metros acima do nível do mar, acessível por uma estrada sinuosa à margem de um penhasco, que corta nuvens e proporciona vistas incríveis durante todo o caminho.

Conhecida por suas abundantes tamareiras, uvas doces, figos e mel, Taif é um polo agrícola da região de Hijaz — algo que não seria possível sem sua altitude e solo fértil. Sua elevação é também considerada uma barreira natural de séculos e séculos, como uma excelente fortificação.

Como todo a região, Taif esteve sob domínio otomano a partir do século XVI, muito embora não haja muitos resquícios deste período. Para além de sua agricultura e seus balneários, Taif é ainda onde Ibn Abbas, primo e companheiro do Profeta Muhammad está enterrado. É costume entre peregrinos que visitam Meca desviar brevemente a Taif para visitar os santuários da cidade.

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Após Taif, segue ainda mais ao sul para a província de al-Baha, certa vez chamada de o “Jardim de Hijaz”, célebre por seu clima agradável e suas 53 florestas naturais. Há opiniões particularmente interessantes sobre a etimologia de al-Baha, mas alguns interpretam o sentido da expressão como “água abundante” ou “espaço aberto” — imaginamos porquê.

Como Taif, a cidade de al-Baha é situada no topo da cordilheira de Sarawat, tornando-a mais fresca e verde do que as planícies áridas de Meca, a 300 km de distância.

A um pequeno desvio de al-Baha se localizada a aldeia de Thee Ain, batizada como uma fonte próxima que fornece água a sua população ancestral. Essa aldeia do século VIII d.C. foi construída no topo de uma montanha que, segundo a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), é “célebre por seu cultivo de bananas, limões, pimentões, manjericão e por seu artesanato”.

As casas são construídas em pedra polida com vários andares, esculpidas lado a lado e em cima umas das outras — um exemplo arrebatador da arquitetura e organização urbana da Antiguidade na região. Infelizmente, não é mais habitada e serve como uma espécie de museu. A Autoridade de Turismo Saudita, que espera atrair visitantes à área, financiou empreendimentos de reforma e restauração.

Há, no entanto, uma pequena comunidade que habita as regiões em torno da montanha e que mantêm tradições agrícolas. Palmeiras e frutas ainda crescem e duas mesquitas servem à população da aldeia até os dias de hoje.

Parado no topo de Thee Ain, escuto o chamado às orações atravessar as montanhas.

Província de Asir

Continuei minha jornada ao sul do país, ao cruzar outros 333 km à província de Asir, que abriga seus maiores picos, com até três mil metros de altura, na região do Monte (Jabal) Sawda. As províncias de Asir e Jizan fazem fronteira com o Iêmen e já foram famosas pela copiosa produção de café, trigo e franquincenso.

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Diz a lenda que Élio Galo (Aelius Gallus), governante romano do Egito, atravessou a região em 25 a.C., sob ordens do imperador Augusto para assumir o controle da rota comercial estabelecida entre o Mar Mediterrâneo e o Iêmen. A expedição foi um fracasso e, por quase um milênio, a região de Asir permaneceu inexplorada por forasteiros.

Do topo desses picos, entrei no Parque Nacional al-Soudah, de onde o observador pode ver pequenas comunidades habitadas aninhadas entre os pés dessas enormes montanhas, densamente cobertas por árvores de juníperos até o horizonte, onde vão de encontro a uma camada grosa de nuvens brancas.

É difícil não notar ainda outro fenômeno natural: os babuínos. As montanhas de Sarawat são lar dos chamados babuínos-sagrados, espécie de primata encontrada em toda a região. Nos últimos anos, esses animais migraram mais ao norte, avistados nos arredores das áreas urbanas da cidade de Meca.

Mais abaixo da cordilheira, cheguei a outra pequena aldeia, conhecida como Rijal Almaa. Certa vez, caravanas com destino e origem do Levante, Meca, Medina e Iêmen paravam por aqui, tornando-a um centro de comércio regional. Como Thee Ain, essa aldeia ostenta casas de pedra construídas umas sobre as outras, com até sete andares de altura. Esses “arranha-céus” ancestrais refletem a linguagem arquitetônica das cidades iemenitas, como Sanaa.

Aldeia história de Rijal Almaa, em Asir, na Arábia Saudita, em 9 de janeiro de 2021 [Richard Mortel/Wikimedia/CC BY 2.0]

Rijal Almaa foi também abandonada há décadas e agora serve como destino turístico — muito embora não tenha visto outros visitantes durante minha passagem. Circundada pelas cordilheiras por todos os lados, vemos sinais de que a natureza reivindica a área.

Após três horas de viagem mais ao sul, cheguei a Jazan, no extremo sul da região, onde planícies áridas, palmeiras esparsas, mangues e arbustos recebem rebanhos de camelos e outros animais.

As imagens da antiga Arábia beduína logo caem por terra. Jizan abriga também uma das maiores refinarias de petróleo da estatal saudita Aramco. Torres altas queimam a quilômetros de distância, impondo a estranha arquitetura moderna e industrial da Arábia Saudita à longínqua costa virgem de areias brancas na região do Mar Vermelho.

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Parei na estrada costeira de Baish, um parque público de 1.7 km de extensão, financiado e construído pela Aramco, abrangendo academias a céu aberto, campo de futebol, parquinhos às crianças, restaurantes e cafés. Bilhões e bilhões de dólares são investidos anualmente para converter Jizan a um centro econômico regional — e é algo evidente.

No centro da cidade, já vemos traços de ancestralidade, mas sim obras e gruas que se estendem aos céus. Se o sul de Hijaz foi negligenciado pelo imaginário histórico e literário, privado de atividades econômicas por séculos, quem sabe, o destino está mudando.

Publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye em 8 de março de 2024.

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