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Consciente e inconcebível: Israel mata Gaza de fome

Palestinos aguardam horas por assistência alimentar, em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, em 1° de março de 2024 [Ashraf Amra/Agência Anadolu]
Palestinos aguardam horas por assistência alimentar, em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, em 1° de março de 2024 [Ashraf Amra/Agência Anadolu]

O regime de fome imposto por Israel continua inabalável em meio a sua campanha de genocídio em Gaza. Trata-se, no entanto, de contravenção de uma das seis ordens cautelares determinadas pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), sediado em Haia, de modo a se estabelecer “ações imediatas e efetivas” para proteger a população civil da ameaça de genocídio ao lhes assegurar fornecimento humanitário e serviços básicos.

Em sua denúncia contra Israel em Haia, a África do Sul argumentou — com abundante fundamentação — que a negativa deliberada de permitir o fluxo humanitário ao povo palestino incorre em violação da Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio: “Ao infringir deliberadamente condições de vida calculadas a um grupo cujo para resultar em sua destruição material, seja em parte ou no todo”.

Um mês se passou desde o veredito, à espera de um relatório de Israel sobre a matéria. Todavia, evidências compiladas pela Anistia Internacional, demonstraram a continuidade de um sentimento de “desprezo [por parte de Israel] a sua obrigação como potência ocupante para assegurar que as necessidades básicas dos palestinos sejam respeitadas”.

Heba Morayef, diretora regional da organização de direitos humanos, sumariza a conduta: “Não somente Israel criou uma das piores crises humanitárias do mundo, como mostrou atroz indiferença ao destino da população de Gaza, ao desenvolver condições contra as quais Haia advertiu como risco iminente de genocídio”. Israel, acrescenta Morayef, “fracassou terrivelmente em fornecer aos palestinos de Gaza suas necessidades básicas” e continua a “bloquear e impedir a passagem de assistência suficiente a Gaza, sobretudo ao norte, virtualmente inacessível, em clara demonstração de desprezo pela corte em Haia e flagrante violação de suas obrigações para prevenir um genocídio”.

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Os números são sinistros. Desde a decisão de Haia, em 26 de janeiro, o volume de caminhões assistenciais autorizados a entrar em Gaza desabou vertiginosamente. Em um período de somente três semanas, declinou a um terço, com média anterior de apenas 146 caminhões por dia. Então, caiu a 105 caminhões — muito abaixo da média diária de 500 caminhões que entravam em Gaza, já bastante carente, antes de 7 de outubro.

Os índices miseráveis e criminosos de assistência a Gaza chegam a ser até demais para grupos de colonos israelenses que protestam na fronteira, com apenas uma coisa em mente: impossibilitar o acesso humanitário aos palestinos carentes. Como resultado, foram conduzidos novos fechamentos na travessia de Kerem Shalom, em meio a imagens de caos nas quais soldados e colonos parecem não se entender.

Sua base de apoio parece ainda pequena, repleta de correligionários do partido fundamentalista Sionismo Religioso, do ministro das Finanças, Bezalel Smotrich. No entanto, uma pesquisa realizada em Israel no mês de fevereiro revelou que 68% da população de fato se opõe à ajuda humanitária a Gaza, apesar da situação catastrófica no território vizinho. Rachel Touitou, membro do grupo Tzav 9, formado em dezembro com este propósito cruel, argumentou: “Não podemos esperar que um país que combate um inimigo que também o alimente”.

Pouco sutil, mas bastante ilustrativa dessa atitude, são as palavras encharcadas de sangue do ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, que declarou logo no início de seu cerco e sua campanha contra Gaza combater “animais humanos”, ao privá-los de energia elétrica, comida, água e medicamentos.

Em dezembro de 2023, o Conselho de Segurança das Nações Unidas enfim aprovou uma resolução para que, entre outras coisas, as partes em conflito “permitam e possibilitem o uso de todas as rotas disponíveis ao longo de Gaza, incluindo as travessias de fronteira”, além de priorizar rotas diretas. Até então, no entanto, Israel recusou-se a acatar a decisão.

Em fevereiro, a coalizão humanitária conhecida como Global Nutrition Cluster (GNC) reportou: “A situação alimentar de mulheres e crianças de Gaza piora em toda a parte, mas particularmente na região norte, onde uma entre cada seis criança sofrem de desnutrição aguda e cerca de 3% delas sofre de inanição severa que requer cuidados urgentes”.

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O relatório apresenta um retrato dantesco. Mais de 90% das crianças entre seis e 23 meses de idade, além das mulheres grávidas e lactantes, enfrentam “grave pobreza alimentar”, consumindo “valores nutricionais ínfimos de dois ou menos grupos alimentares”. Ao menos 90% das crianças abaixo de cinco anos sofrem de uma ou mais doenças infecciosas e 70% enfrentaram difteria grave em um período de duas semanas. O acesso da população a água potável — já insuficiente após 16 anos de cerco militar—, é ainda menor que os índices prévios, com 81% das famílias sobrevivendo com menos de um litro per capita por dia.

Reduzidos a tais condições de desespero monumental, cenas caóticas de palestinos aglomerados ao redor de comboios humanitários são fadadas a acontecer. Em 29 de fevereiro, a Cidade de Gaza viveu uma situação como essa, somada a uma resposta letal — e aparentemente deliberada — das forças israelenses. Ao menos 117 pessoas foram assassinadas, em uma escala de letalidade que supera 30 mil vítimas. Apesar de reconhecer ter disparado contra a multidão, o exército da ocupação israelense não perdeu a oportunidade de culpar suas vítimas, ao caracterizá-las como selvagens desordeiros, que morreram ou se feriram supostamente pisoteados uns pelos outros. Mohammed Salha, diretor do Hospital Al-Awda, confirmou, porém, que a ampla maioria dos 161 feridos que chegaram a seu hospital apresentava lesões evidentemente causadas por balas.

Se Israel pretendia mostrar boa vontade em evitar qualquer insinuação de que ocorre um genocídio em Gaza, sem falar na punição coletiva imposta contra o povo palestino, proporcionou muito pouco à comunidade internacional. Suspeitas ecoadas pela África do Sul e outros países fundamentalmente críticos, no que diz respeito à hedionda ferocidade da campanha israelense, começam a parecer muito mais do que plausíveis.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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