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Assassin’s Creed: Mirage

Assassin’s Creed: Mirage, jogo de ação e aventura cujo cenário é a Era de Ouro de Bagdá [Ubisoft]

Após mais de 15 anos e numerosos jogos e spin-offs, a bem-sucedida franquia de videogames Assassin’s Creed, produzida pela Ubisoft, passou por mudanças consideráveis, deixando alguns dos fãs com o sentimento de que a essência do jogo original fora superada. Trata-se de um jogo de ação e aventura com uma abordagem tripla: furtividade, parkours e missões específicas.

Os três primeiros jogos constituíam um corpo enorme de conteúdo, exigindo cerca de 100 horas para serem completados. Para muitos dos puristas da franquia, pareceu um alívio que a equipe de desenvolvedores reconheceu as reivindicações dos fãs linha-dura, ao devolver a série a suas raízes primordiais, com o lançamento de Assassin’s Creed: Mirage, em 5 de outubro de 2023, ao romper com o tom épico de Assassin’s Creed: Valhalla, lançado três anos antes.

Mirage se concentra na história de um dos personagens mais interessantes da edição anterior, Basim Ibn Ishaq, ao voltar vinte anos no tempo para levar o jogo à cidade de Bagdá no período abássida. O cenário histórico atrai interesse, além de reaver a narrativa ao Oriente Médio, onde se passava o jogo inaugural, no período da Terceira Cruzada.

Ao longo do jogo, testemunhamos a evolução do protagonista, de um mero ladrão de rua a uma figura proeminente na ordem secreta dos assassinos. Ao se manter bastante fiel ao rico folclore da franquia, a ordem se envolve em um conflito atemporal entre a justiça e a tirania, contra seu arqui-inimigo, a Ordem dos Anciões.

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Durante o prefácio do jogo, o personagem se aventura na vizinha Pérsia, no castelo histórico de Alamut Castle, onde reúne habilidades sob as instruções de Roshan, um ex-escravo convertido em mestre da Ordem dos Assassinos. Desde o princípio, a experiência e jogo é particularmente imersiva, sobretudo ao nos dar um vislumbre de Bagdá e seus arredores.

No que se refere à jogabilidade, Assassin’s Creed: Mirage é repleto de nostalgia. Esconder-se e saltar pelas vielas medievais da cidade proporciona ao jogador uma ampla experiência orgânica de parkour, ao evocar memórias dos primórdios da franquia. Apesar de ser relativamente mais restrito quando comparado a sistemas de mundo aberto de outros, a jogabilidade flui bastante bem e o mapa a ser explorado traz à vida a rica cidade de Bagdá do século IX.

O combate, contudo, continua como um dos aspectos mais complicados da franquia —e Mirage não é uma exceção. As sequências de combate são relativamente simples, todavia, carecem da mesma fluidez que outros jogos da mesma geração, como da franquia Soulsborne. Novamente, é importante notar que o jogo prioriza a mecânica furtiva (stealth) para executar seus inimigos, em lugar de favorecer o combate corpo a corpo, à medida que os inimigos regulares podem ser deliberadamente repetitivos.

O aspecto mais impressionante é a recriação da capital medieval do Califado Abássida — cidade muitas vezes ignorada pelo imaginário comum ao longo da história, em um período conhecido como a Era de Ouro do Islã.

Em conversa com o MEMO, Ali A. Olomi, um dos consultores de História para o jogo, descreveu Mirage como “um jogo de fantasia que executa um trabalho notável em criar nuances imersivas ao tomar a história como inspiração”.

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“Essa abordagem da história como inspiração, em vez de recriação funciona maravilhosamente”, acrescentou. “Ao tomar emprestado elementos da história real, o mundo de Mirage vem à luz, com realismo e profundida, enquanto permite ao jogo adotar liberdades lógicas e aceitáveis em nome da narrativa e da jogabilidade”.

Para o historiador: “Bagdá parece real, rica em história e cultural. Ao entrar na cidade, a vista da Grande Mesquita e do Palácio são estonteantes. Você logo adquire um sentimento de imersão plena na Bagdá abássida medieval — ao menos em sua essência. Mesmo as mudanças em seu caminho, distintas da história, fazem sentido, porque captam a essência”.

Ao jogar, percebi como os desenvolvedores decidiram trazer o idioma árabe ao primeiro plano, com diversos NPCs (non-playable characters, ou personagens não-jogáveis) conversando na rua com o dialeto clássico da linguagem. Embora o primeiro Assassin’s Creed possa ser considerado revolucionário por utilizar sentenças e referências culturais e religiosas do árabe, Mirage parece levar o conceito a outro patamar, sobretudo em cenas de transição e na inclusão do adhan em seus cenários — isto é, o chamado à oração do Islã.

A missão principal de Mirage ocorre por meio de uma série de investigações, ao nos levar passo a passo ao confronto com um membro da Ordem que opera nas sombras para controlar Bagdá, ao manipular os governantes abássidas. Cativa e entretém bastante essa coleta de fragmentos e informações ao longo do jogo, trazendo à luz facetas da cultura, da história e da vida político da época e do cenário em questão.

Mirage é repleto de referências a eventos e paisagens históricas. Exemplos notáveis incluem um retrato da rebelião dos escravos liderada por Ali Ibn Muhammad, a célebre Casa da Sabedoria e a vibrante atmosfera cosmopolita da cidade iraquiana. O bazar ganha destaque, onde jogadores se deparam com uma diversidade imensa de nacionalidades, religiões e idiomas sejam orientais ou ocidentais, refletindo o status de Bagdá como então centro do mundo.

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Segundo outra consultora do jogo, Glaire Anderson, autora e pesquisadora em história e cultura visual da Idade Média no Oriente Médio e Norte da África, “o marco cenográfico [de Mirage] é a própria cidade circular”.

“Os jogadores podem encontram portões monumentais e caminhar sobre todo o perímetro, ao avistar assim os cartões-postais de Bagdá”, comentou Anderson. “Os jogadores podem procurar, por exemplo, detalhes interessantíssimos de arquitetura: decorações em alto-relevo inspiradas por motivos da época ou o papel eminente dos tijolos para a construção civil, pelos quais os abássidas se tornaram conhecidos. Há muitas coisas para explorar”.

Sobre a produção da Ubisoft, afirmou Olomi: “Pessoalmente acho que os desenvolvedores e as pessoas com quem trabalhei estavam genuinamente interessadas em acertar a representação histórica. O único desafio, podemos dizer, é encontrar o equilíbrio certo entre história e ficção e penso, pessoalmente, que o jogo consegue fazer isso de maneira esplêndida”.

Vivenciar o retorno a uma edição fundamentalmente narrativa da franquia Assassin’s Creed traz novos ares à experiência de jogo, ao mesmo tempo que parece revisitar um cenário familiar. O protagonista, Basim, às vezes parece à parte da narrativa, mas podemos atribuir isso à sedutora cidade de Bagdá, que, para mim, é o verdadeiro destaque do jogo.

A dublagem produzida com atores nativos, nos mais diversos papéis, é outro passo adiante, ao proporcionar à narrativa uma experiência deveras mais autêntica. Quem sabe, possamos ver o mundo árabe cada vez mais representado nos universos dos videogames. Insha Allah.

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