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Guerra em Gaza: Por que a Turquia se recusa a cortar relações com Israel?

ANKARA, TURKIYE - JANUARY 16: Turkish President Recep Tayyip Erdogan makes a statement after the first Presidential Cabinet Meeting of 2024 in Ankara, Turkiye on January 16, 2024. ( Doğukan Keskinkılıç - Anadolu Agency )

Quando o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no mês passado, associou o premiê israelense Benjamin Netanyahu ao líder nazista Adolf Hitler, por assassinar mais de 20 mil palestinos na Faixa de Gaza, gritos indignados ecoaram em Israel.

“Como você difere de Hitler?”, disse Erdogan. “Tem alguma coisa que Netanyahu fez de tão diferente de Hitler? A resposta é não”.

Netanyahu respondeu enfurecido, ao acusar Erdogan de ele próprio conduzir um genocídio contra os curdos e muitos ideólogos em Washington reagiram ao presidente turco ao voltar a descrevê-lo como “antissemita”. Ironicamente, contudo, muitos ativistas que, na verdade, concordam com os comentários de Erdogan passaram a acusá-lo de hipocrisia.

Conforme os ativistas, Erdogan é duro no que fala, mas carece de ações, ao preservar laços comerciais com o Estado de Israel. Alguns observaram que a Turquia ainda facilita o fluxo de petróleo azeri aos portos israelenses. Mas o que podemos dizer dessas denúncias?

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Há expectativas enormes sobre a Turquia quando se fala de Israel. Muitos podem dizer que tamanha expectativa deriva do próprio discurso adotado por Erdogan, que costuma apelar à ágora para construir um argumento, sem necessariamente empregar ações.

A última semana marcou cem dias desde a ação transfronteiriça do grupo palestino Hamas em 7 de outubro e a subsequente ofensiva israelense contra a Faixa de Gaza. O governo da Turquia prontamente cancelou uma visita há muito esperada de Netanyahu, reconvocou seu embaixador de Tel Aviv e congelou negociações sobre um acordo de energia e um gasoduto em potencial.

Após 7 de outubro, Ancara adotou uma postura balanceada sobre o conflito, na esperança de exercer uma eventual mediação. À medida que se tornou cada vez mais claro que Israel e seu governo não querem um acordo, ao transformar Gaza em ruínas em seu lugar, o discurso de Erdogan se transformou.

Ao romper com seus aliados militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Erdogan preferiu recorrer a sua plataforma internacional para condenar veementemente as ações de Israel. Ao compararmos suas críticas ao vergonhoso silêncio do mundo ocidental, diante do genocídio em Gaza, o posicionamento de Erdogan carrega algum peso.

Para além do discurso

A abordagem turca sobre a guerra, no entanto, vai além da retórica. Os cálculos de Ancara sobre o conflito parecem interligados a duas pautas: a chamada solução de dois Estados e a remoção de Netanyahu do poder.

O ministro de Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, desde o início dos bombardeios a Gaza, reforçou apelos pela solução de dois Estados, ao propor um modelo garantidor que inclua membros e não-membros da OTAN, incluindo Estados árabes, para asseverar respeito a um elusivo acordo. Segundo sua versão dos fatos, Turquia, junto de diversos países árabes e islâmicos reuniram uma delegação de chefes de política externa para viajar o planeta e convencer o Conselho de Segurança e as nações ocidentais a pedir um cessar-fogo.

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Tais esforços não foram necessariamente em vão. Em 26 de outubro, cento e vinte países votaram a favor de uma resolução apresentada pela Jordânia na Assembleia Geral da ONU, reivindicando um cessar-fogo — catorze votaram contra e 45 se abstiveram. Contudo, após os esforços diplomáticos de Erdogan e sua delegação de chanceleres aliados, os números mudaram, com 153 votos favoráveis, dez contrários e 23 abstenções no mês de dezembro.

Trata-se de uma conquista, muito embora ofuscada pela enorme catástrofe humanitária que assola Gaza.

Ancara busca ainda mobilizar esforços de união nacional, ao reunir as duas maiores facções palestinas: o Hamas, que governa Gaza, e o Fatah, que governa a Cisjordânia. O presidente turco insiste em propagandear uma frente unida para consolidar o debate sobre o futuro do Estado palestino. O Fatah indicou abertura a tais discussões.

Passos diplomáticos, consideravelmente cautelosos, vão além de medidas de curto prazo, à medida que Ancara carece de qualquer influência entre os tomadores de decisão em Israel.

Oficiais turcos, incluindo Erdogan, insistem na tese de que Netanyahu carrega a maior carga de responsabilidade pela guerra a Gaza, dado que sua sobrevivência política depende disso. É por isso que Erdogan prefere criticar Netanyahu e seu governo, em vez de investir contra a totalidade do Estado de Israel. O presidente turco se apega ao argumento de que o público israelense se opõe, em maioria, ao governo atual, deixando espaço a eventuais alternativas caso o primeiro-ministro deixe o cargo.

Ao mesmo tempo, a Turquia declarou oficialmente seu apoio à queixa de genocídio da África do Sul contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça e recentemente prendeu uma série de supostos espiões israelenses, acusados de coletar informações de cidadãos palestinos em solo estrangeiro.

O caminho adiante

Sobre a questão do comércio, Ancara diz não acreditar em “punir coletivamente a sociedade israelense”, ao alegar ainda que um corte nas exportações afetaria também os palestinos que vivem nos territórios ocupados. Mesmo após o massacre ao navio turco Mavi Marmara, em 2010, conduzido por agentes israelenses em águas internacionais, Ancara se acanhou de encerrar as relações comerciais com o Estado de Israel.

Além disso, segundo a versão turca, as pessoas parecem se enganar sobre as relações de comércio entre as partes. Nas redes sociais, denúncias surgiram de que as exportações da Turquia a Israel cresceram 35% entre novembro e dezembro, muito embora se trate de um aumento sazonal em vez de números consolidados.

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Ao compararmos dados de exportação de dezembro de 2023 e dezembro de 2022, houve, na verdade, uma redução de 30% na venda de bens e serviços turcos à economia israelense, com queda de US$611 milhões a US$431 milhões. O comércio total entre Turquia e Israel, no período entre 7 de outubro e 31 de dezembro, caiu 45%, comparado ao ano anterior — de US$2.3 bilhões a US$1.2 bilhão.

Autoridades turcas também se negam a intervir em contratos comerciais entre entidades privadas, como os arranjos referentes às exportações do Azerbaijão, via portos da Turquia, rumo a Israel, ou mesmo a empresas nacionais que conduzam empreendimentos no Estado ocupante. Apesar dos apelos por boicote contra Israel e outros países, não há como garantir que a Turquia, seja seu setor público ou privado, atenda aos chamados.

Adiante, com base em conversas que conduzi com oficiais turcos, o governo em Ancara me parece comprometido em participar de uma “força de paz” para a Faixa de Gaza, conforme um novo acordo cuja meta seja a chamada solução de dois Estados. Deseja ainda contribuir com esforços de reconstrução sob um governo palestino unificado e reconhecido.

Para Ancara, cortar laços com Israel parece não servir essa agenda.

Este artigo foi publicado originalmente pela rede Middle East Eye em 15 de janeiro de 2024.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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