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Roger Waters comanda um palco armado e sob ataque

Roger Waters [Redes sociais]

Para não deixar dúvidas de  que a música do ex-Pink Floyd Roger Waters carrega a mesma carga política que o artista despeja em declarações, ele alerta fãs desavisados logo no início de show que percorreu o Brasil e segue pela América Latina na turnê It’s Not a Drill: “Se voce é daquelas pessoas que dizem amar Pink Floyd mas não concorda com a política de Roger, é melhor sair para o bar”. A política está nas letras e nos letreiros que se revezam durante todo o espetáculo, mas principalmente na narrativa sonora de suas músicas, instrumentos, arranjos, vozes e vibrações de um set list que ajuda a armar seu público contra o cerco fascista que, através dos anos, só muda de cara.

Mas é fácil saber quem prefere o bar do lado de fora.

Letreiros exibidos durante a turnê “It’s not a Drill” , de Roger Waters, em 2023 [Frame de vídeo/Rede Social]

Na Argentina e no Uruguai, onde Waters se apresenta esta semana, os hotéis em que se hospedaria cancelaram as reservas. Ele tem shows em Montevidéu nesta sexta-feira (17), e em Buenos Aires, dias 21 e 22. Literalmente, negaram-lhe estadia.  O motivo: a narrativa maluca sionista que o acusa de antissemitismo  porque ele aponta o dedo para Israel e joga o Estado de ocupação na vala comum dos genocidas. Ele também não é perdoado por duvidar das versões israelenses sobre o 7 de outubro, com a total inocência do Estado, e por dizer isso. Waters escancara a preocupação e solidariedade com os palestinos, o que assusta os sionistas, sabendo que o palco de Waters é poderoso.

A turnê “This is Not a Drill”, originalmente programada para o ano de 2020, foi adiada por dois anos devido à pandemia e aguardada até julho de 2022, quando teve início nos Estados Unidos e vai encerrando-se agora na América Latina, depois de três anos de espera de um público ansioso – dos que já o amavam em sua juventude e os que o escutam agora.

No passado, o  ex-Pink Floyd  já prometeu esperar até que um muro caísse na Europa, para  voltar a tocar, e ele voltou com o sempre presente The Wall, o muro erguido e destruído no palco em 1990. Mas outros muros  foram erguidos depois de  Berlim. As posições de Waters tornaram-se um problema para os lobbies pró-Israel no mundo, tendo de justificar seus próprios muros e cercas que confinam os segregados do apartheid.

Na América Latina, nenhum lobby é tão forte quanto o da Argentina, que reúne a maior comunidade judaica do continente em torno de entidades pró-Israel nos ataques e confrontos com os palestinos. Às vésperas de uma eleição presidencial onde a extrema direita depende de um tris para eleger-se, é notório o cuidado dos candidatos argentinos em não contrariar esse eleitorado. O ultra-direitista Javier Milei é ainda mais realista que o rei; No seu caso, fazer campanha prometendo transferir a embaixada argentina de Tel Aviiv a Jerusalém, além de romper com países que apoiam os palestinos, como o Brasil,  é parte do proselitismo político-religioso da extrema direita no mundo e que já foi trilhado por Jair Bolsonaro no Brasil.

Dia 23 de setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao lado da primeira-dama, Janja da Silva, recebeu no Palácio do Planalto o ex-Pink Floyd Roger Waters, e o brasileiro Paulo Miklos, dos Titãs [Divulgação/PR]

Toda região trava uma guerra ideológica, que faz da Argentina a bola da vez e a posição em relação à Israel um campo de batalha e risco. A passagem de Roger Waters, defensor histórico do movimento de boicote à ocupação israelense, é uma fagulha no debate e uma faísca que tem lado. No Brasil, esteve com o presidente Lula em Brasília e ainda divulgou um ato pró-Palestina em São Paulo. “Deixe-me dizer, aqui, em São Paulo, amanhã, na Praça Oswaldo Cruz, tem encontro do BDS”, disse  no show que ocorreu na véspera da quinta manifestação de rua na Av. Paulista. Mas, por ação da indústria do turismo no sul do continente, as notícias portenhas falam mais de Roger Waters como persona non grata, pop star humilhado e sem teto em Buenos Aires, acusado de racismo, misoginia e antissemitismo, sem sustentação concebível para tais denúncias.

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 O Uruguai, que já viveu dias inspiradores sob a presidência de José Mujica,  e hoje é governado pela direita, fez a mesma desfeita.  “A cidade de Montevidéu está fechada para mim e eu não tenho onde ficar”, lamentou o artista. E ele teria justamente um jantar com Mujica nesta quinta-feira. Mas ficou em S.Paulo, com vôos de bate-volta apenas para os shows. E chamou os que atuaram na ação do  “lobby israelense, e como quer que eles se chamem”, de idiotas.

Letreiros exibidos durante a turnê “It’s not a Drill” , de Roger Waters, em 2023 [Frame de vídeo/Rede Social]

É certo que muitos que renegam o artista hoje na Argentina ou Uruguai já tenham curtido US&Them , Anther Brick in the World, Wish You Were Here e Is This The Life We Really Want?. Talvez até assistam ao show para matar a saudade de Pink Floyd e ver o que Roger anda fazendo, além de tirá-los de uma antiga zona de conforto em que nunca se viram entre os algozes.  Talvez se arrepiem com os vocais de Shanay Johnson e Amanda Belair em momentos como o final de Comfortably Numb (Confortavelmente intoxicados)  e se deleitem com o saxofone de Seamus Blake em Us&Them (Nós e Eles).  Para Waters há uma linha divisória no mundo para os que consideram com direito de morte sobre outros.  Mas esse “Nós, os bons”, dos  letreiros não estão falando de seres humanos, mas dos donos dos poderes, os que exploram, controlam, destroem e dizem “Eles, os maus”, sobre nós, ou sobre todos os  que ainda podem fazer alguma coisa pela humanidade.

Para os que não saíram do show para fugir da incômoda política – e pelo que se sabe ninguém saiu -, Roger faz o convite a sentarem-se com ele ao piano, convertendo palco e público em um outro e grande bar intimista,  para ouvir sua nova canção: The Bar . Ela conquista pela grave sonoridade vocal e a pausada convocação instrumental a sentimentos de empatia e solidariedade humana. Em letra, seu The Bar é também um chamado à autocrítica e resistência: “Será que todo mundo no bar sente vergonha? Deus sabe, eu sinto”, diz a canção. “Acho que todos nós nos sentimos praticamente iguais. Um pouco desgastados por esse zoológico maluco. O cheiro de napalm com flocos de milho. A irritação matando tudo que respira. Impondo sanções à senhora da rua. Até que ela entenda a dica, faça as malas e vá embora”

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The Bar de Waters dá boas-vindas à garota Lakota Sioux pelo que carrega de resistência à  limpeza étnica.  “Podemos parecer poucos, mas somos muitos”, ele canta, emprestando seu palco ao front de qualquer luta contra a pobreza, supremacias, ameaças climáticas ou atômicas,  guerras, genocídios e segregações. Ao colonizador, a canção dedica o pedido e alerta dos resistentes: “Você poderia, por gentileza, sair de nossas terras?”

Letreiros exibidos durante a turnê “It’s not a Drill” , de Roger Waters, em 2023 [Frame de vídeo/Rede Social]

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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