Diretor da ONU em Nova York denuncia genocídio em Gaza ao pedir demissão

Craig Mokhiber, diretor do escritório de Nova York do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, pediu demissão de seu cargo em protesto à incapacidade de sua agência de impedir o genocídio em Gaza.

Mokhiber enviou sua carta de resignação ao comissário de Direitos Humanos, Volker Turk, em 28 de outubro, ao afirmar: “Esta será minha última comunicação a você”.

“Escrevo em um momento de grande angústia para o mundo, incluindo para muitos de nossos colegas. Mais uma vez, vemos um genocídio ocorrer diante de nossos olhos, e a Organização a que servimos parece impotente para impedi-lo”, declarou Mokhiber.

O oficial da Organização das Nações Unidas (ONU) citou o genocídio de civis palestinos, perpetrado por Israel, e a cumplicidade de Estados Unidos, Reino Unido e boa parte da Europa como razão para sua renúncia.

Mokhiber reivindicou também o fim do apartheid e o estabelecimento de um Estado único, secular e democrático, como solução à matéria, com base em direitos humanos e civis para todos os povos da Palestina histórica.

Em 30 de outubro, segunda-feira, Mokhiber declarou na rede social X (Twitter): “O genocídio que testemunhamos na Palestina é produto de décadas de impunidade a Israel, deferida por Estados Unidos e outros governos ocidentais e décadas de desumanização do povo palestino pela mídia corporativa ocidental. Basta! Ergamos a voz por Direitos Humanos!”

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Mokhiber — advogado especializado na lei humanitária internacional — é oficial da ONU desde 1992, e ocupou diversos cargos de destaque, incluindo assessor sênior de direitos humanos a países como Palestina, Afeganistão e Sudão.

Mokhiber também viveu em Gaza durante a década de 1990.

No cargo que agora deixa, Mokhiber foi regularmente alvejado e difamado por organizações sionistas, após expressar apoio ao movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) e denunciar previamente o apartheid israelense.

Sobre o episódio, Louis Charbonneau, diretor do Human Rights Watch (HRW) para relações com a ONU, descreveu o alerta de Mokhiber como poderoso argumento contra práticas de duplo padrão da comunidade internacional.

“Não é preciso concordar com tudo que está na carta para ver que se trata de um triste, mas poderoso indício de que as Nações Unidas perderam-se no caminho sobre direitos humanos no que concerne Israel e Palestina, em parte sob a pressão de Washington, Tel Aviv e outros governos”, declarou Charbonneau. “Não é tarde demais para virar este barco, mas é preciso fazê-lo logo”.

A carta de Mokhiber enfatiza que a ONU fracassou em outros casos de genocídio, como aos tutsis em Ruanda, os muçulmanos na Bósnia, os yazidi no Curdistão iraquiano e os rohingya em Myanmar, ao preconizar: “Alto Comissário, estamos fracassando novamente”.

“Em cada um dos casos, uma vez que a poeira baixou sobre os horrores perpetrados contra comunidades civis indefesas, tornou-se dolorosamente claro que falhamos em nosso dever de cumprir os imperativos de prevenção de atrocidades de massa, defesa dos vulneráveis e responsabilização dos criminosos”, reiterou. “Assim vem sendo com as sucessivas ondas de assassinato e perseguição contra os palestinos ao longo de toda a vida das Nações Unidas”.

“O massacre em curso contra os palestinos, com raízes em uma ideologia etnonacionalista e colonial, em continuidade a décadas de expurgo e perseguição sistêmica, apenas por serem árabes, junto de declarações explícitas de sua intenção por líderes do governo e do exército israelense, não deixa sombra de dúvida sobre a questão”, observou, ao reafirmar o conceito de genocídio.

“Em Gaza, residências, escolas, mesquitas, igrejas e hospitais são arbitrariamente atacados e milhares de civis são massacrados. Na Cisjordânia, incluindo Jerusalém ocupada, residências são confiscadas e redistribuídas somente pelo critério de raça e violentos pogroms coloniais são escoltados por soldados de Israel. Em toda a terra, o apartheid é regra”.

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“Trata-se de um caso clássico de genocídio. O projeto colonial europeu e etnonacionalista de assentamento na Palestina entrou em seu estágio final, rumo à célere destruição das últimas reminiscências da vida palestina nativa”, advertiu Mokhiber, ao aludir aos planos deliberados de limpeza étnica promovidos por Israel e apoiadores desde a concepção do Estado colonial sionista em 1948, ocasião recordada como Nakba ou “catástrofe” pelos palestinos.

A seguir outros trechos importantes da carta de Craig Mokhiber:

“Como se não bastasse, governos dos Estados Unidos, Reino Unido e boa parte da Europa são cúmplices absolutos dessa agressão hedionda. Não apenas se recusam a cumprir suas obrigações por tratado para ‘garantir o respeito’ às convenções de Genebra, como de fato armam ativamente tais violações, ao ceder apoio econômico e de inteligência e cobertura política e diplomática às atrocidades de Israel”.

“A mídia corporativa ocidental — cada vez mais cooptada e adjacente a interesses estatais — age em violação aberta do Artigo 20 do Acordo Internacional sobre Direitos Políticos e Civis (ICCPR), ao desumanizar continuamente os palestinos para facilitar o genocídio e disseminar propaganda de guerra e ódio nacional, racial e religioso, que configura incitação a violência, hostilidade e discriminação”.

“Empresas de redes sociais radicadas nos Estados Unidos buscam inibir as vozes de direitos humanos, ao amplificar a propaganda sionista. Trolls e ongs de fachada assediam e difamam ativistas de direitos humanos, e universidades ocidentais colaboram para punir aqueles que ousam denunciar as atrocidades. Diante deste genocídio, é preciso responsabilizar todos os agentes, como responsabilizamos a rádio Milles Collines em Ruanda”.

“Décadas de distração pelas promessas delirantes e muitas vezes desonestas dos Acordos de Oslo desviaram nossa Organização de seu dever fundamental em defesa da lei internacional, dos direitos humanos e de sua Carta. O mantra de ‘solução de dois Estados’ transformou-se em uma piada nos corredores da ONU, tanto por sua impossibilidade factual quanto por seu fracasso absoluto em levar em conta os direitos inalienáveis do povo palestino. O chamado ‘Quarteto’ tornou-se apenas uma fachada para inação e subserviência ao brutal status quo”.

“Ao longo de minha carreira, a ONU esteve ao lado dos povos oprimidos em suas terras, mesmo quando boa parte das instituições e agência de mídia dos Estados Unidos ainda apoiavam o apartheid sul-africano, a opressão israelense e os esquadrões da morte na América Central. Tínhamos a lei internacional ao nosso lado. Tínhamos os direitos humanos ao nosso lado. Nossa autoridade tinha raízes na integridade. Mas não mais”.

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“Nas últimas décadas, partes essenciais da ONU se renderam ao poderio dos Estados Unidos e à intimidação do lobby israelense, para abandonar tais princípios — e até mesmo o direito internacional. Perdemos muito neste abandono, inclusive nossa credibilidade global. Porém, foi o povo palestino que mais perdeu devido a nossos fracassos. É uma ironia histórica que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fora adotada no mesmo ano da Nakba contra os palestinos. Enquanto comemoramos seu 75° aniversário, poderíamos também abandonar o velho clichê de que a Declaração se engendrou das atrocidades que a precederam, mas sim admitir que de fato nasceu junto de uma das maiores atrocidades do século XX: a destruição e o genocídio na Palestina. Em certo sentido, seus parâmetros prometiam direitos humanos a todos, exceto ao povo palestino”.

“Temos de aprender com a postura embasada em princípios tomada nas cidades de todo o mundo nos últimos dias, quando massas de pessoas denunciaram o genocídio, sob ameaça de agressão e prisão. Os palestinos e seus aliados, todos aqueles que defendem os direitos humanos, organizações cristãs e muçulmanas, judeus progressistas que advertem “não em nosso nome”, todos eles mostram o caminho”.

“Primeiro, temos de abandonar o fracassado (e por vezes desonesto) paradigma de Oslo, sua ilusão de dois Estados, seu Quarteto impotente e colaboracionista e a subjugação do direito internacional aos ditames de um suposto expediente político”.

“Devemos abandonar o pretexto de que é meramente uma disputa por terras, um conflito religioso ou uma guerra entre dois lados e admitir a realidade de um Estado poderoso que coloniza, persegue e expropria uma população nativa com base em sua etnia”.

“Devemos apoiar o estabelecimento de um Estado único, democrático e secular na Palestina histórica, com direitos iguais a cristãos, judeus e muçulmanos e, portanto, desmantelar este projeto colonial de assentamentos profundamente racista e dar fim ao apartheid em todo o país. Todos os esforços e recursos da ONU devem ser direcionados à luta contra o apartheid, como fizemos para a África do Sul nas décadas de 1970, 1980 e 1990”.

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“Devemos reafirmar o direito de retorno e a plena indenização a todos os palestinos e a suas famílias que vivem atualmente nos territórios ocupados, no Líbano, na Jordânia, na Síria e na diáspora em todo o globo”.

“Temos de realizar um processo amplo de justiça de transição, ao fazer uso de décadas de investigações, inquéritos e relatórios da ONU, para dar registro à verdade e responsabilizar todos os perpetradores, indenizar as vítimas e remediar as injustiças”.

“Temos de promover a apreensão e destruição do imenso arsenal israelense de armas químicas, biológicas e nucleares, sob risco de que o conflito leve à destruição de toda a região e, possivelmente, além”.

“Tudo isso levará anos, e as forças ocidentais lutarão contra nós a cada passo no caminho; devemos ser resilientes. Em termos imediatos, devemos trabalhar pelo cessar-fogo e pelo fim do duradouro cerco a Gaza, contra a limpeza étnica em Gaza, Jerusalém, Cisjordânia e toda a parte; denunciar e documentar a agressão genocida em Gaza, permitir o acesso de assistência humanitária e a reconstrução; cuidar de nossos colegas traumatizados e suas famílias; e lutar como nunca por uma abordagem de princípios nos escritórios da ONU”.

“O fracasso das Nações Unidas para com os palestinos não é razão para que recuemos. Ao contrário, deve nos dar coragem para abandonar os derrotados paradigmas do passado e abraçar uma trajetória mais fundamentada. Que nós, como Alto-comissariado de Direitos Humanos, audaciosa e orgulhosamente nos juntemos ao movimento anti-apartheid que cresce em todo o mundo, agregando nossa logomarca à bandeira de igualdade e direitos humanos ao povo palestino. O mundo está vendo. Seremos responsabilizados pela forma como nos portarmos neste momento crucial da história. Fiquemos do lado da justiça”.

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