Portuguese / English

Middle East Near You

Vovó Cici, uma griot do sagrado que reverencia o islamismo dos malês no candomblé de Obatalá

Vovó Cici recebeu o título de Cidadã Soteropolitana da Câmara Municipal de Salvador [Divulgação]

O objetivo da visita a Salvador, de 15 a 19 de maio, foi fazer contato com pessoas e instituições que guardam referências sobre as revoltas escravas da Bahia, em particular a dos malês.  O pesquisador Daud Abdullah investiga a relação das revoltas escravas nas Américas, e a de 1835 em Salvador, com as circunstâncias do islamismo africano no início do século, especificamente as influências da  jihad fulani. Ocorrida na região norte do que é hoje o Estado da Nigéria, no Oeste Africano, com a instalação do califado islâmico de Sokoto, a jihad fulani buscava restaurar um islamismo original, livre das assimilações e do animismo.

Na Bahia, são bem evidentes as heranças yorubás de Benin, vizinho à oeste da atual Nigéria e cujo litoral ficou conhecido como “a costa dos escravos!,  no candomblé baiano e suas influências no sincretismo religioso brasileiro. Mas os malês suscitam indagações sobre a forte determinação político-religiosa da revolta, que almejava além da libertação, derrotar o poder branco e católico na Bahia.

Com um roteiro intensivo para os poucos dias, nosso grupo partiu para consultas a acervos e entrevistas com pesquisadores, incluindo  ainda o percurso quilombola entre Santo Amaro e Cachoeira, o contato com as cidades da guerra da independência do Brasil na Bahia, uma aula do professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA)  e um lançamento de livro com organizações da sociedade civil. Várias pessoas colaboraram, entre elas o Sheikh Abdul Hameed e Abdul Hakin, do Centro Cultural Islâmico da Bahia, Damien Hazard da organização Vida Brasil, Fátima Froes da Ciranda e Sonia Mota da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE).

Algumas entrevistas  precisaram ser feitas online, dado o conflito de datas,  como a do mais influente pesquisador dos malês e revoltas escravas, João José Reis,  e da diretora administrativa da Sociedade dos Desvalidos,  Lígia Margarida Gomes – embora a instituição tenha sido visitada, enquanto procurar documentar seu acervo de documentos antigos. Visitas a alguns locais, como o Arquivo Municipal de Salvador e os subterrâneos do Mercado Modelo, local de abusos contra escravizados no Brasil colonial, ficaram inviabilizadas por estarem fechados. Mas as fontes e a disponibilidade em ajudar fizeram da visita um mergulho e, afinal de contas, um abrir de portas para entender que há vazios ainda por resolver sobre a influência do pensamento e movimentos africanos nos levantes anti-escravidão nas Américas – geralmente mais pesquisados em relação às influências da Revolução Francesa.

RESENHA: “Rebelião escrava no Brasil – A história do Levante dos Malês em 1835”

Durante todo o tempo, porém, havia uma frustração com parte do roteiro não resolvida: a ansiada entrevista com a griot Nanci de Souza Silva, a vovó Cici.

Vovó Cici [Governo na Bahia/Secretaria de Cultura]

Emails e tentativas de contato por telefone, antes e durante a estadia em Salvador, foram infrutíferos. Entrevistá-la era uma necessidade por ser uma contadora de histórias,  detentora de conhecimentos tradicionais e transmissora de memória oral, de um ramo do camdomblé com influências dos negros escravizados islâmicos mais preservadas em  práticas e regras herdadas através dos anos. Cici é iniciada no candomblé iorubá de Obatalá, orixá criador da humanidade na mitologia da religião tradicional africana. Seus testemunhos, conhecidos para além da Bahia – ela sempre é ouvida em eventos internacionais sobre antigos saberes – remetem à ligação dos rituais religiosos de hoje com os que seriam ensinamentos dos malês no passado.

Somente no último dia da visita a Salvador, já quando estávamos a caminho da Secretaria de Justiça para uma última agenda do roteiro, a meio do caminho para o aeroporto que nos levaria de volta a São Paulo, a entrevista foi autorizada graças a um retorno da Fundação Pierre Verger.  Ao sair da Secretaria, tomamos o caminho de retorno, em direção ao bairro Engenho Velho de Brotas, em Salvador, onde fica a Fundação e o Espaço Cultural Terreiro Pierre Verger.

A fundação preserva e tem sede conjunta com a antiga casa do fotógrafo, antropólogo, etnólogo viajante e pesquisador da cultura negra da África e do Brasil,  Pierre Verger. Falecido em 1996, aos 93 anos, ele foi em vida um apaixonado pela religião africana e tornou-se, ele próprio, um iniciado  do candomblé, sendo batizado Fatumbi, e tornando-se um mentor espiritual da nossa entrevistada.  Cici trabalhou com ele entre 1992 até sua morte, e ajudou a catalogar  mais de 11 mil fotografias históricas de matrizes dos cultos afro-brasileiros do Togo, Gana, Nigéria e Norte da África.

Pierre Verger [Wikimedia]

RESENHA: O crânio de um malê em Harvard e a medicina que espalhou racismo pelo mundo

Antes de iniciarmos a conversa com ela, percorremos a pequena casa com o enorme acervo de negativos do fotógrafo, além de documentos, livros, e uns poucos objetos pessoais. Ele tinha por hábito deixar uma garrafa de barro e uma caneca na pequena janela para o exterior. Se a caneca estivesse virada sobre a boca do jarro, era sinal de que não estava ou não devia ser perturbado. Do contrário, visitas seriam bem-vindas. Durante muitos anos, Cici viveu naquela casa, e hoje trabalha para a Fundação, que é também o Centro Cultural Terreiro Pierre Verger, onde ela deu boas-vindas ao grupo do Monitor do Oriente Médio no final da tarde de 19 de maio de 2023.

Foto de acervo da Fundação Pierre Verger

Foi o tempo de uma conversa rápida, mas não sem  a emoção de ouvir a sábia griot falando dos hábitos e referências únicas de seu ramo religioso no candomblé, algo que remete suas histórias e saberes até as tradições do oeste africano e suas interpretações no Brasil. Após ouvi-la, seguimos em direção ao aeroporto em cima da hora para o vôo, mas conscientes de que a riqueza da memória oral nos ajuda a percorrer os caminhos de volta até as raízes da formação do povo brasileiro. Algumas passagens dessa conversa:

Como descendente de africanos escravizados, e considerando que tantos documentos oficiais da escravidão foram queimados, a sra. sabe um pouco das origens mais remotas de sua família?

Eu tenho 84 anos. Nasci no Rio de Janeiro. Meu sobrenome é ‘de Souza’, e carrego  o sobrenome do maior traficante de pessoas de quem já se ouviu falar. Seu nome era Francisco Felix de Sousa, escrito com “S”. Para diferenciar seu sobrenome dos escravos que ele vendia, ele colocou “de Souza”, com Z, como sobrenome das pessoas que traficava. É o sobrenome de minha família.

O que a sra. sabe sobre ele?

Eu fui a Benin há quatro anos. Fui à cidade de Porto Novo. Lá , eu vi várias inscrições com o nome dele, com “S”. Os “De Sousa” são os mais poderosos do Benin. Eu fui ao lugar de onde vinham os escravos.

A sra gostou de Benin?

É um lugar muito bonito, com muitas mesquitas em Porto Novo (Nova Cidade Portuária). Enquanto eu estava lá, eu ouvia o chamado para a oração. Então eu orava também. E todos os dias eu rezava também porque sou iniciada de Obatalá..

A sra relaciona sua linhagem do candomblé aos malês. Por que? 

Seguimos Obatalá, orixá que é a nossa influência árabe. Ele está em nossas roupas brancas, que usamos de todos os tipos, sempre brancas. Oba quer dizer o grande rei, e ala significa calma. O pano branco representa a calma para Allah

Foto inédita de Pierre Verger compôs uma exposição inédita em 2021 no Instituto Tomie Otake [Pierre Verger]

Há evidências ou práticas simbólicas de um legado islâmico?

Do nascer à morte nos envolvem em pano branco, por esse culto a Obatalá. Quando nascemos nos colocam dentro de um pano branco e ficamos na casa de Obatalá. Esse pano branco nos acompanha até o anoitecer. Quando uma pessoa morre, ela é levada ao enterro assim (envolta em tecido branco) e na cabeça fica assim (mostra o lenço branco enrolado como turbante).

As mulheres negras muçulmanas do século XIX usavam os lenços assim (com as pontas soltas nas laterais) E as mulheres nagô usavam o lenço assim (com as pontas presas), por exemplo quando dançavam.

Outra evidência é que na alimentação, iniciados de Obatalá não podem colocar na boca carne de porco.

E sobre o culto a Obatalá, onde a sra. percebe uma ligação?

A semana de Obatalá tem quatro dias e nós guardamos toda sexta-feira. Começa na quinta-feira quando o sol se põe e termina no sábado quando o sol nasce. Temos que rezar todas as noites às 3h30. Eu faço isso todas as madrugadas. Toda primeira sexta-feira do mês acordamos dentro do local de culto; Tomamos banho antes de começar a orar; Além disso, rezamos todos os dias pela paz no mundo, todos os dias.

Essa influência é transmitida à sua família?

Meu neto se chama Allabi. Allabi é uma palavra yoruba que significa “protegido por Deus – Guardado por Deus”.

Sobre a resistência dos malês , o que a sra. Sabe da tradição oral?

Eles moravam na área que vai de Campo Grande ao Farol da Barra. Eram escravos caros porque sabiam ler e escrever. Houve muçulmanos libertos que trouxeram as primeiras leis para eles.  Cada escravo muçulmano que se libertava comprava outros escravos muçulmanos. Ele montava uma loja, e os escravos trabalhadores tinham uma porcentagem para comprar sua própria liberdade.

LEIA: Muçulmanos do Brasil pedem que Harvard devolva crânio de revolucionário malês

Eles então se organizavam pela libertação de várias formas? 

Eles fundaram o sindicato dos Desvalidos, que recolhia dinheiro e financiava. Foi o primeiro tesouro desse tipo nas Américas e eles começaram a ganhar dinheiro para sua libertação;

Se você reparar algumas fotos antigas das pessoas ali (na Sociedade dos Desvalidos, que existe até hoje) são todas pretas, todas com barba. Foram antigos diretores. Os escravos muçulmanos tentaram a revolta dos malês, mas os que não foram mortos foram deportados.

A sra fala às vezes em objetos atribuídos a heranças dos escravos malês  Teria um exemplo?

Quando os primeiros escravos obtinham a alforria, eles tinham o direito de calçar sapatos. Esses sapatos lembram um babouche. É sapato que se dobra, na memória árabe na Bahia

Ela mostra os seus calçados  com a parte de traz dobrada, de modo a imitar um babouche.

Também vem muito deles nosso uso de objetos de couro, como as bolsas ( pequenas bolsas a tiracolo) e as sandálias.  Os malês dominavam o bairro da Barroquinha, e até hoje é um lugar de comércio de objetos de couro.

Como são feitas as homenagens a Obatalá?

Há cantigas como esta (ela canta): “Arayè ara un jèjè, Bábà moriô…”  O significado de  “Arayè ara un jèjè”  é o corpo que caminha sobre a terra. E  de“Bábà moriô”  é o olho de Deus que segue.  As cantigas ligadas a Obatalá são bem diferentes dos cultos de outros  orixás iorubás. São vários cantos e as palavras lembram algumas suras do Alcorão.

A sra. tem contato atual com a religião islâmica?

Em celebrações do Ramadã, eu sou convidada pelo Centro Cultural Islâmico da Bahia.

LEIA: Histórias e conflitos diplomáticos da resistência palestina no livro de Daud Abdullah

Categorias
ÁfricaEntrevistasVídeos & Fotojornalismo
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments