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Ativa, altiva, mas refém – a diplomacia brasileira e os muitos cercos do grande irmão

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva desembarca em Hiroshima, no Japão, para encontro do G7 /Ricardo Stuckert/ABR/

O presidente Lula tem recebido críticas da direita e da mídia e até de presidentes da América do Sul por suas posições e declarações internacionais. Parecem mais puxões de orelha no brasileiro por entrar em conversas de gente grande. Isso acontece quando ele fala da guerra na Ucrânia, da Palestina ou mesmo quando o assunto são as relações domésticas da América do Sul . Sua  recepção aos colegas presidentes vizinhos, em que ele fez deferências amistosas demais a Nicolás Maduro, é algo que não se via nos governos passados.

A Venezuela, deitada sobre enorme reserva de petróleo e agarrada ao sonho  socialista bolivariano de Hugo Chavez, que via enxofre exalando do então presidente George Bush em Nova York, tem sido asfixiada por sanções ocidentais e tentativas fracassadas de golpe. Sua resistência foi a bola de vez dos ataques do Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro, enquanto suas meninas em fuga de uma crise monumental eram exploradas em bordéis brasileiros improvisados.

Os problemas de direitos humanos da Venezuela são graves, como são também os do Brasil, e de seus vizinhos, e dos Estados Unidos em  Guantánamo.  É justo e necessário que sejam apontados em qualquer ocasião e combatidos conjuntamente, o que não impede que os presidentes sul-americanos se reúnam e conversem, inclusive sobre isso.

Abu Zubaydah, ex-prisioneiro, desenha as torturas aplicadas pelos Estados Unidos em Guantánamo [Abu Zubaydah/Reprodução]

Nesse caso porém, o cutucão de Lula abraçando Maduro foi irritar a cada vez mais ameaçada hegemonia que os EUA ainda detêm como maior potência global e grande irmão da América do Sul

Demoramos a entender  como um sistema de espionagem poderoso pode ajudar a derrubar um país, como foi revelado por Julian Assange quando os alvos da vigilância dos EUA  eram a Petrobrás com o pré-sal e um governo do PT eleito pela quarta vez e no controle do manancial.

Depois custamos a acreditar que o judiciário  fosse incumbido de fora para dentro de prosseguir na tarefa do desmonte, com a devastação promovida pela Lava Jato sobre as empresas brasileiras.

A misoginia no impeachment de  Dilma, Rousseff,  o justiciamento na prisão de Lula, e a boa fé religiosa do povo brasileiro já viraram instrumentos de interferências externas no país, até chegarmos ao fundo do poço com o governo de Jair Bolsonaro. O parlamento de hoje é um rescaldo de tudo isso e presta serviços ao travamento da roda. Como dizia um célebre golpista quando ainda achava que o golpe se concretizaria: contamos agora com o glorioso parlamento.

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É evidente que Lula está apanhando mais do que deveria para um governo recém-eleito, que  trouxe consigo a imagem da política externa habilidosa  – ou ativa e altiva, como diria o ex-chanceler Celso Amorim, que hoje o aconselha.

Com parlamentares que até bem pouco tempo sonhavam com outro Brasil, alinhado com políticos como  Donald Trump e Benjamin Netanyahu, o Brasil atravessa uma guerra de poder institucional com  uma torcida pra lá de internacional.

Internamente, nem a esquerda nem as forças democráticas estão apostando em grandes transformações do governo Lula que não sejam a tarefa de fazer frente ao fascimo e colocar o Brasil de volta à civilidade das políticas públicas sociais, o que não é pouco, nem fácil. E se ainda assim o governo é alvo de  fogo amigo, é porque esse papel não vai acontecer cedendo ao  jogo do atraso e  deixando escapar  os principais ativos políticos do Estado.

A  entrega da pasta da Comunicação, de porteira fechada, como diz um aliado, para um  partido que é reduto do adversário, já no início do governo, interceptou as esperanças de que algo mude na relação do Brasil consigo mesmo. A grande mídia privada, no conforto de saber que nada muda nas regras para o seu lado, cobriu sem espanto  a  aprovação  do marco temporal ao gosto de um agronegócio que avança, também confortável,  sobre terras indígenas. Há um lado passivo da democracia após o trauma dos ataques do 8 de Janeiro.  E o debate também não se aprofunda na mídia pública, porque esta não foi restabelecida para além do nome.

Lula, após eleito, foi convidado para a Conferência do Clima (COP 27) de 2022, no Egito, e participou ao lado de futuras integrantes e colaboradoras de seu ministéro.[Ricardo Stuckert]

Os juros que produzem fome e desemprego não parecem problema do país, mas sim um assunto técnico do Banco Central e motivo de uma gritaria do presidente. A educação ficou atrelada a um limite fiscal que não deixará que as escolas respirem.   A luta para reverter as perdas soma-se ao desafio de recuperar pedaços do ministério desenhado no início do mandato e já desmontado em parte pelo Congresso. E as CPIs devem manter os parlamentares da base governista  entretidos enquanto a boiada do chamado centrão continua passando.

Lula já foi a liderança alçada pela defesa da política honesta, ativo massacrado pelo mensalão e a Lava jato. Já provou ser um grande articulador político, imagem que a Câmara de Lira se ocupa em dinamitar. Um terceiro ativo que Lula quer proteger e aprofundar é sua política de Relações Exteriores, que inclui fazer jus ao peso político, geográfico, ambiental, energético, social e cultural da América do Sul, reforçando laços.  E se tem algo que pode desprotegê-lo dos ataques da velha ordem, e inclusive dentro de casa, é justamente essa política, que  inclui desdemonizar países socialistas como Cuba e Venezuela.

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Defender a paz na Ucrânia sem pré-condições, através de um grupo de países isentos, se é que isenção é possível, está longe de qualquer objetivo das partes envolvidas.  Mas a paz quase utópica de Lula, quando se junta ao discurso de paz da China, que já mexeu com o tabuleiro do Oriente Médio, refazendo laços improváveis dos inimigos Arábia Saudita e Irã, torna-se um problema para o Ocidente.

Entre as boas relações de Lula nos temas da paz está ainda o Papa Francisco, com quem o brasileiro conversou esta semana e deve visitar neste meio de ano. A agenda do Brasil é intensa, e o esforço em desqualificá-la é evidente. Exemplo é a  descortesia de Zelensky, que não faz nada sozinho nessa história, ao escolher a praça pública do G7 para dar canos sucessivos no presidente brasilero.

De outro lado, tem o BRICS ganhando inscrições de pelo menos 19 candidatos a integrar o bloco.  Só os cinco integrantes originais –  Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – já reúnem mais gente no mundo  do que o G7 inteiro. Colocar Dilma Rousseff, a defenestrada por um golpe branco, no comando do poderoso Banco do BRICS, é outra resposta internacional a quem antes ajudou a derrubá-la.

A volta do Brasil à cena internacional é ao mesmo tempo aclamada – hoje proteger a Amazônia e o clima implica em boas relações do mundo com o Brasil – e desencorajada. Trabalham as  forças de sempre para manter as coisas como estão.

A  voz de Lula responsabilizando a ONU pelo que se passa entre Palestina e Israel é tão óbvia quanto a ineficácia do Conselho de Segurança. Não dá nem pra imaginar que recorrer à ONU, sem reformá-la, resulte em solução efetiva. Na guerra de narrativas da diplomacia internacional, o óbvio tem lado e geralmente é o mais desprezado .

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Lula foi criticado por sionistas por sua fala cobrando a ONU por ter criado Israel e não o Estado Palestino. Esperavam que ele falasse sobre o Dia da Independência de Israel, que o Estado celebra em 14 de maio desde 1948, quando se assenhoreou das terras  palestinas com apoio britânico e do Brasil na ONU. Para os palestinos, o nome de tudo isso é Nakba, que marca o dia 15 de maio de 1948, quando mais de 800 mil palestinos foram arrancados e expulsos de suas vilas pelas forças sionistas para a criação de Israel. O óbvio nessa fala de Lula, capaz de despertar artilharia contra seu governo,  é que até hoje essas famílias palestinas  refugiadas pedem ao Conselho de Segurança da ONU a garantia de seu direito internacional de voltar pra casa.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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