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Europa, com bilhões para a guerra, mostra sua verdadeira face sem coração frente aos terremotos na Turquia e na Síria

O terremoto da ao Ocidente uma chance de mostrar ao mundo que pode tanto reconstruir quanto destruir. Mas este último é o sentimento nas mentes da fortaleza Europa hoje
Sírio anda de moto levando seus pertences perto dos destroços enquanto os sírios após terremoto que atingiu o distrito de Jindires em Aleppo, na Síria, em 17 de fevereiro de 2023. [Muhammed Said/ Agência Anadolu]

Uma área 12 vezes maior que a Bélgica foi atingida por 20 terremotos em dois dias.

O terremoto Turquia-Síria, que mediu 7,8 na escala Richter, liberou uma explosão equivalente a 7,5 milhões de toneladas de TNT. Isso foi logo seguido por um tremor secundário de magnitude 6,7 no centro e leste da Turquia e um tremor secundário de magnitude 5,6 na fronteira Turquia-Síria.

A Grã-Bretanha ofereceu US$ 2,7 bilhões em armas à Ucrânia e US$ 6 milhões em ajuda humanitária para 23 milhões de pessoas na Turquia e na Síria? Isso é pra valer? aparentemente sim.

Houve quase 800 tremores secundários registrados.

Até 23 milhões de pessoas foram afetadas. No momento em que escrevo – e esses números estão mudando a cada hora – 17.674 na Turquia e 3.377 na Síria perderam suas vidas, com 72.879 feridos. Mais de 100.000 na Turquia e 300.000 na Síria foram deslocados. (NT – Dados dos primeiros dias dos terremotos)

Literalmente centenas de edifícios de vários andares, alguns com 12 andares de altura, foram reduzidos a montes de escombros. Distritos inteiros foram devastados. Estradas principais e linhas ferroviárias entre as principais cidades foram destruídas ou estão obstruídas com o tráfego de ajuda.

Transpondo um mapa desse terremoto para a Grã-Bretanha, a própria falha se estende diagonalmente do Severn, no oeste, até o estuário de Humber, no norte. Grande parte da Inglaterra, incluindo as cidades de Birmingham, Manchester e Sheffield, teria sido submetida a um abalo de nível sete.

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Essas figuras esboçam apenas os contornos desse desastre. Os detalhes virão nos próximos dias e semanas.

Perda de atenção do público

Dezenas de países enviaram equipes de busca e resgate. Mas apenas três dias depois desse desastre, exatamente no momento em que uma operação de busca e resgate se transforma em uma sombria e lenta recuperação de corpos, a tragédia está deixando de ser manchete na Europa, o vizinho imediato da Turquia.

Sabemos o que se segue a esta perda de atenção do público.

Esta semana, o terremoto foi deslocado pela visita do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, à Grã-Bretanha e a Bruxelas. O corajoso Zelensky vestido de cáqui, que se transformou na consciência política em um cruzamento entre Churchill, Boudica e Joana d’Arc, tornou-se um bilhete político quente, já que cada parlamento compete por sua presença.

O fato de ele ter visitado a Grã-Bretanha primeiro, em vez da França e Bruxelas, foi considerado uma fonte de orgulho nacional. O mesmo aconteceu com os US$ 2,7 bilhões em ajuda militar que a Grã-Bretanha deu à Ucrânia no ano passado, uma quantia que o primeiro-ministro Rishi Sunak garantiu que será igualada este ano. Isso torna a Grã-Bretanha o segundo maior doador militar para a Ucrânia.

Este é o tipo de dinheiro disponível na Grã-Bretanha quando existe vontade política. Compare com a quantia que o governo do Reino Unido disse que será gasta no terremoto Turquia-Síria. Quando as 15 instituições de caridade que compõem o Comitê de Emergência de Desastres lançaram seu apelo na quinta-feira para fornecer resgate e ajuda médica, abrigo, cobertores e comida, o secretário de Relações Exteriores James Cleverly anunciou que o Reino Unido cobriria até US$ 6 milhões em doações.

O primeiro-ministro britânico Rishi Sunak, à direita, e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky encontram tropas ucranianas sendo treinadas para comandar tanques Challenger 2 em uma instalação militar em Lulworth, Dorset, Inglaterra, quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023.

O primeiro-ministro Rishi Sunak cumprimenta Volodymyr Zelenskyy, presidente da Ucrânia, ao chegar a Stansted, no Reino Unido. em 08 de fevereiro de 2023 [Wikimedia]

Cleverly disse: “Quando desastres como esses terríveis terremotos acontecem, sabemos que o povo britânico quer ajudar. Eles mostraram repetidas vezes que poucos são mais generosos e compassivos.”

Existem duas maneiras pelas quais isso pode ser medido na escala Richter da desumanidade do homem para com o homem.

Em nível humanitário, desastres em escala global exigem uma resposta global que transcenda a política – ou o grau em que o presidente turco Recep Tayyib Erdogan ou o presidente sírio Bashar al-Assad são tratados como párias em reuniões de grandes e bons como Davos.

Um dia depois do desastre, a revista satírica francesa Charlie Hebdo publicou uma charge mostrando um prédio danificado, um carro tombado e um monte de entulho com a legenda: “Não há necessidade de enviar tanques”.

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Isso foi mais do que apenas um desenho animado de mau gosto e Charlie Hebdo não é uma revista satírica qualquer.

Em 2015, o Hebdo se tornou o epicentro do que foi descrito como a defesa da democracia e da liberdade de expressão contra ataques de fanáticos e terroristas – tanto quanto a Ucrânia é apresentada hoje. Seus escritórios em Paris foram atacados por Said e Cherif Kouachi, alegando representar o grupo militante Al-Qaeda, matando 12 pessoas e ferindo outras 11.

O ataque provocou manifestações em massa. O slogan Je Suis Charlie se tornou viral. Charlie Hebdo tornou-se um símbolo da liberdade de expressão sob ataque de bárbaros com barbas. Para atingir esses fins, o racismo sem verniz do Charlie Hebdo foi então varrido para debaixo do tapete, como continua sendo hoje.

Poucas organizações de mídia se referiram à sua última excrescência, embora a mídia social não tenha demorado a reagir.

Um erro de grandes proporções

Muito tem sido escrito sobre o lento desaparecimento dos Estados Unidos e da Europa no cenário mundial, conduzido por exércitos desorganizados do Talibã em Cabul ou ataques frontais suicidas do exército de condenados do grupo Wagner em Donbass.

A relutância da UE em ser a primeira resposta nesta crise é totalmente voluntária. É um erro não forçado de grande proporção

Mas a relutância da UE em ser a primeira a responder nesta crise é totalmente voluntária. É um erro não forçado de grandes proporções. Esta é uma chance de mostrar liderança moral e humanidade para milhões de pessoas. É uma chance de falar diretamente com eles, não com seus governos ou presidentes manobrando para a reeleição.

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Esta é uma chance de mostrar ao mundo que o Ocidente pode tanto reconstruir quanto destruir. Mas este último é o sentimento nas mentes da fortaleza Europa hoje. A Fortaleza Europa protege sua riqueza. Suas altas cercas eletrificadas e patrulhas de drones estão lá para manter as hordas pagãs afastadas.

Que estímulo mais forte você poderia dar a milhões de pessoas para procurar liderança em outro lugar?

Embora nenhuma quantia significativa tenha sido arrecadada na Grã-Bretanha, França ou Alemanha, os sauditas arrecadaram mais de US$ 51 milhões quatro dias após o lançamento da plataforma Sahem para o alívio da Síria e da Turquia.

É uma bagatela para qualquer membro da família real saudita, mas uma doação significativa dos próprios sauditas. Isso envergonha a Grã-Bretanha. No entanto, vamos abandonar a moralidade ou qualquer senso de humanidade comum.

Vamos seguir o zeitgeist do interesse próprio.

Números surpreendentes

Antes da guerra na Ucrânia, o Oriente Médio respondia por 25% dos requerentes de asilo na Europa em 2021, e desses o maior número veio da Síria, Iraque e Turquia em quinto lugar. O Afeganistão ficou em segundo lugar.

A guerra na Síria transformou a Turquia no maior país anfitrião de refugiados do mundo, abrigando mais de 3,6 milhões de refugiados sírios e 320.000 pessoas de outras nacionalidades. Ela gastou US$ 5,59 bilhões em ajuda humanitária no ano passado, respondendo por 0,86% de seu PIB, o que a torna uma líder mundial, de acordo com um relatório da Development Initiatives.

Em termos de dinheiro gasto, a Turquia perde apenas para os Estados Unidos. Estes são números surpreendentes para um governo tantas vezes vilipendiado no Ocidente.

Mas esse esforço não é imutável. Os partidos de extrema-direita turcos, como o partido da Vitória, realizam campanhas à espreita, arrecadando fundos para passagens de ônibus para deportar sírios. Voltando-se para alguém para culpar pelos lentos esforços de socorro, alguns turcos estão se voltando contra os refugiados após este desastre.

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Esses são eventos grandes o suficiente para impulsionar futuras ondas de refugiados, pois a operação de reconstrução levará anos, senão décadas.

É absolutamente do interesse da Europa garantir que a Turquia possa enfrentar e continuar sua política de reassentamento de refugiados no norte da Síria. Mas a Síria também, outrora o foco de tanto armamento secreto ocidental, foi abandonada. Refugiados sírios morriam de frio muito antes do terremoto atingir Aleppo e Idlib.

Um idoso sírio reage enquanto uma mulher limpa a neve que cobre uma barraca em um acampamento, em 23 de janeiro de 2022 [Abdulaziz Ketaz/AFP via Getty Images]

Acredita-se que um terço de todas as vítimas esteja na província de Hatay, do outro lado da fronteira com a Síria. A destruição em Hatay teve um efeito imediato no socorro à Síria que passa pela passagem de Bab al-Hawa, o cordão umbilical de ajuda para milhões de pessoas no noroeste da Síria que vivem em áreas fora do controle do governo sírio.

Os sírios sob controle do governo não estão se saindo melhor. O estado é destruído pela guerra e, como o Irã nos primeiros dias da República Islâmica, é prejudicado por sanções.

Um destino bíblico

A cada ano, o abismo entre a coisa certa a fazer e as coisas que acabamos fazendo aumenta. A cada ano, as palavras proferidas pelos líderes europeus tornam-se mais grotescas.

É absolutamente do interesse da Europa garantir que a Turquia possa enfrentar e continuar sua política de reassentamento de refugiados no norte da Síria

Em outubro passado, o principal funcionário da política externa da UE, Josep Borrell, discursou na inauguração da Academia Diplomática Europeia em Bruxelas, em 13 de outubro. Isto é o que ele disse, de acordo com a transcrição oficial:

“A Europa é um jardim. Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade econômica e coesão social que a humanidade foi capaz de construir – as três coisas juntas. … A maior parte do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim. Os jardineiros têm que ir para a selva. Os europeus têm de estar muito mais envolvidos com o resto do mundo. Caso contrário, o resto do mundo nos invadirá, de diferentes maneiras e meios.”

[Latuff]

Se alguma vez houve uma oportunidade de acabar com esse jargão primitivo, é agora.

A Europa aproveitará este momento? Duvido, pois há muito abandonei a crença no conceito de progresso. E o jardim do Éden de Borrell merece plenamente seu destino bíblico.

Artigo originalmente publicado na edição francesa do Middle East Eye.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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