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CIJ e a Palestina: Uma breve análise jurídica

Palácio da Paz, sede da Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia [Wikipedia]

Há anos que ouço a pergunta “porque a comunidade internacional fecha os olhos?” vinda de diversas pessoas diferentes, referindo-se à questão palestina. No entanto, cada vez mais esse cenário se modifica devido à dificuldade de ignorar o que ocorre na Palestina. A cada dia que passa novos estudos e relatórios tornam mais consistentes a tese de que hoje a Palestina e os palestinos encontram-se sob regime de apartheid imposto por Israel.

Diante  desse cenário cada vez mais desfavorável a Israel, a ONU aprovou no dia 30 de dezembro uma resolução com 87 votos a favor, 26 contra e 53 abstenções, a pedido do Ministério das Relações Exteriores da Palestina, que urge à Corte Internacional de Justiça (CIJ) a determinar “as consequências legais da violação contínua de Israel sobre os direitos do povo palestino à autodeterminação”, bem como medidas “para mudar a composição demográfica, o caráter e o status da Cidade Santa de Jerusalém”.

Após a aprovação da resolução pela ONU, sanções foram impostas, entre elas a proibição de entrada em Israel do Ministro de Relações Exteriores, Riad Al-Malik, e o bloqueio de fundos de naturezas diversas da Autoridade Palestina. Outrossim, apesar da situação cada vez mais calamitosa imposta à Palestina, resta a dúvida do que a CIJ pode oferecer ao povo palestino e o que a resolução aprovada pela ONU pode representar factualmente.

Inicialmente, cabe esclarecer que a competência da Corte Internacional de Justiça é ampla, ao passo que abarca todas as questões que as partes lhe submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta da ONU ou em tratados e convenções em vigor (art. 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça):

Artigo 36

A competência da Corte abrange todas as questões que as partes lhe submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados e convenções em vigor.

Os Estados, partes do presente Estatuto, poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória, ipso facto e sem acordos especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tenham por objeto:

  • a) a interpretação de um tratado;
  • b) qualquer ponto de direito internacional;
  • c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional;
  • d) a natureza ou extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional.

As declarações acima mencionadas poderão ser feitas pura e simplesmente ou sob condição de reciprocidade da parte de vários ou de certos Estados, ou por prazo determinado.

Tais declarações serão depositadas junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas que as transmitirá, por cópia, às partes contratantes do presente Estatuto e ao Escrivão da Corte.

Nas relações entre as partes contratantes do presente Estatuto, as declarações feitas de acordo com o Artigo 36 do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional e que ainda estejam em vigor serão consideradas como importando na aceitação da jurisdição obrigatória da Corte Internacional de Justiça, pelo período em que ainda devem vigorar e de conformidade com os seus termos.

Dessa forma, o pedido da Palestina à ONU visando obter a resposta sobre a “legalidade” das ações de Israel são direcionadas à CIJ.

LEIA: A ONU desperdiça vidas e tempo palestinos

Cabe a observação de que a Corte Internacional de Justiça não se confunde com o Tribunal Penal Internacional, pois estes possuem competências diversas. Ao Tribunal Penal Internacional compete o julgamento de pessoas por crimes internacionais como genocídio, crimes de guerra e lesa-humanidade, sob a égide do Estatuto de Roma. Ademais, o TPI conduz desde março de 2021 uma investigação contra a cúpula do governo israelense sobre possíveis crimes de guerra cometidos nos territórios ocupados. Nesse sentido, pode-se considerar que as próximas declarações da Corte Internacional de Justiça são de grande importância para o amparo da investigação já conduzida pelo TPI.

Decisão da TPI traz esperança para a Palestina e consternação para Israel. [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Para além do supracitado, insta ressaltar que não é primeira ocasião que a CIJ aprecia matéria proveniente da questão palestina. A primeira vez foi no ano de 2004, quando a corte declarou que a construção do muro, popularmente conhecido como o “muro do apartheid”, violava diversos direitos humanos dos palestinos, pressionando Israel à destruição do muro, tal como ao cumprimento de diversas ações de reparação. Na ocasião, Israel se negou a cumprir as determinações e – como dizemos por aqui em solos tupiniquins – ficou por isso mesmo, mesmo Israel sendo litigante do caso em questão (art. 59 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça).  A análise da jurisprudência construída na Corte é essencial para desenhar o cenário e esse primeiro julgado da CIJ sobre um tema relacionado à Palestina nos fornece algo mais palpável à tal análise.

LEIA: Até onde o TPI pode ir para responsabilizar Israel por seus crimes na Palestina?

Em primeiro plano, é difícil dizer quão profunda será a análise da CIJ, isso porque a corte pode ou não considerar os inúmeros relatórios, inclusive o do Relator Especial da ONU, que definem Israel como regime de apartheid, no entanto o fato de que a ocupação israelense não possui carácter temporário ou/e não está amparada por uma necessidade militar pode levar à uma determinação de solução imediata da ocupação. Essa afirmação se dá com base na jurisprudência firmada pela própria corte na decisão de 1971 em que afirmava que a presença da África do Sul na Namíbia, onde replicava seu sistema de apartheid, era ilegal e deveria terminar imediatamente; também em 2019, quando determinou ao Reino Unido que acabasse com a sua “administração ilegal” de Chagos e devolvesse o território às Maurícias. Com base nisso, há uma expectativa de que a decisão da CIJ seja no mesmo sentido das sentenças proferidas nos casos África do Sul e Reino Unido.

Há, no entanto, um fator que merece ser observado. Assim como no Brasil – e na grande maioria dos países do mundo –, após a produção de uma sentença, a responsabilidade da execução da sanção não é da justiça, nem do juízo que a profere, até mesmo nos casos em que se ajuíza a execução de sentença. Como em uma ação civil pública ou qualquer outro tipo, o que se busca nesses casos é o reconhecimento do direito para que a sentença possa ser executada. Até porque não é a justiça, enquanto instituição, a responsável por prender, pagar, demolir ou indenizar… Então fica a dúvida: quem seria a instituição responsável por garantir a “execução” das sentenças proferidas pela Corte Internacional de Justiça? A resposta pode ser encontrada no Artigo 94 da Carta das Nações Unidas:

Artigo 94. 1. Cada Membro das Nações Unidas se compromete a conformar-se com a decisão da Corte Internacional de Justiça em qualquer caso em que for parte.

Se uma das partes num caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pela Corte, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença.

A circunstância de o Conselho de Segurança ser a instituição dita “garantidora” da execução da sentença é um ponto desanimador para a maioria, pois acredita-se que pode ocorrer o que ocorreu em 2004 – assunto, no entanto, para uma outra análise.

Fato é que – mesmo que haja mudanças na corte desde então – não há como negar as atrocidades cometidas todos os dias por Israel, pois, nos últimos anos, relevantes organismos internacionais caminham para esse mesmo entendimento. Isso significa que, mesmo que a Corte Internacional de Justiça opte por não apreciar certas evidências ou ignorar acontecimentos, não há como escapar de uma análise negativa das atrocidades cometidas por Israel.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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