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Na Copa do Catar, quem vence é a Palestina!

Torcedores palestinos comemoram a vitória do Marrocos na Faixa de Gaza. [Ali Hamad]
Torcedores palestinos comemoram a vitória do Marrocos na Faixa de Gaza. [Ali Hamad]

Com os cafés lotados, os torcedores disputam cada centímetro para torcer por sua seleção favorita; a gritaria, as bandeiras e as cornetas fazem parte do cenário. Do outro lado da cidade, no estádio desportivo de Saad Sayel, onde um telão de LED foi instalado para receber mais de mil torcedores por partida, o clima é o mesmo. Até aqui parece uma torcida normal assistindo a um jogo da Copa no Catar, mas está longe de ser! Estamos falando sobre os torcedores palestinos que sobrevivem há 75 anos de ocupação e apartheid israelense.

No estádio desportivo de Saad Sayel, em Gaza, torcedores comemoram a vitória da seleção marroquina contra Portugal [Instagram]

Assistimos várias demonstrações de solidariedade à Palestina durante os jogos da Copa do Mundo do Catar, incluindo a do técnico da seleção brasileira. Tite fez questão de encontrar com o torcedor palestino que carregou seu neto nos braços. Mas por que estamos vendo tais manifestações? Bem, os palestinos são tão apaixonados por futebol quanto nós brasileiros, no entanto, para eles, mesmo torcer é uma demonstração de resistência.

LEIA: Palestina: o país que rouba a cena na Copa do Catar sem ao menos entrar em campo

Apesar dos 12 mil quilômetros que cruzam o Oceano Atlântico e todo continente africano para chegar ao país da copa, o Brasil parece estar mais próximo do Catar que a própria Palestina. E na Palestina os cafés e outros locais públicos estão lotados porque, também, os palestinos convivem, diariamente, com a restrição de movimento e a violação do direito de ir e vir imposta pela ocupação israelense.

Caso um palestino da Cisjordânia decida ir assistir a um dos jogos no Catar, antes ele precisa atravessar uma fronteira internacional. Como não possuem permissão para circular em Israel, muito menos irem ao aeroporto Ben-Gurion, em Tel Aviv, a única saída é cruzar a fronteira com a Jordânia.

Em Gaza, a situação é ainda mais complicada por conta do bloqueio terrestre, naval e aéreo, iniciado em 2007 e que se agravou ano após ano. Existem duas possibilidades de sair de Gaza: pela passagem de Rafah (fronteira com o Egito) ou por Erez (Israel), ambas controladas pelas Forças de Ocupação Israelense (IOF). Para cruzar a fronteira com o estado sionista, mesmo que seja para chegar à outra porção de terra palestina (Cisjordânia), as pessoas precisam de permissões concedidas pelas autoridades israelenses, quase impossíveis de conseguir. Quando emitidas, é para casos excepcionais, normalmente em situações humanitárias graves e, ainda assim, sob pressão.

Se optar por sair pela fronteira com o Egito, seu retorno não estará garantido. Embora atravessar de Rafah para o Egito seja menos problemático, os palestinos de Gaza evitam cruzar essa fronteira, visto que ela pode ser fechada a qualquer momento. Neste ano, segundo a ONU, a passagem esteve fechada por pelo menos 102 dias (144 dias no ano de 2021 e 240 dias em 2020). Sendo assim, um torcedor de Gaza nunca sabe se poderá voltar ou quando poderá retornar para sua casa.

O Catar está a apenas mil quilômetros da Palestina, uma distância equivalente a uma viagem de São Paulo a Vitória–ES, que pode ser feita de carro em um único dia. No entanto, viajar para assistir aos jogos no Catar não é uma opção para os palestinos, principalmente aos da Faixa de Gaza.

Dias antes do início do campeonato, a FIFA e representantes do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Cultura e Esporte de Israel divulgaram voos diretos entre o Aeroporto Ben-Gurion, em Tel Aviv, e o Aeroporto Internacional Hamad, em Doha.

A linha temporária foi estabelecida para que palestinos e israelenses que possuíssem o Hayya Card (identificação do torcedor necessária para entrar no Catar) voassem juntos.

O Catar não reconhece o Estado de Israel e não possui relações com seu governo. A medida temporária não agradou aos cataris e outros árabes, que viram a linha direta como uma facilitação para os israelenses e uma possível sinalização de aproximação entre os governos, caso que só atrapalharia a luta por libertação nacional palestina.

Comentando o anúncio, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, disse:

“Estamos muito satisfeitos com o acordo alcançado para que os torcedores israelenses e palestinos visitem o Catar e assistam aos jogos durante a Copa do Mundo da FIFA. Com este acordo, israelenses e palestinos poderão voar juntos e desfrutar do futebol juntos. Gostaria de agradecer aos nossos colegas israelenses, palestinos e do Catar por ajudarem a fazer isso acontecer. O futebol tem o poder de unir as pessoas, transcende todas as fronteiras, cruza todas as fronteiras e promove a unidade como nada mais. A Copa do Mundo é o símbolo máximo do poder unificador do futebol, e o anúncio histórico de hoje oferece uma plataforma para melhorar as relações no Oriente Médio”.

Em tese, desde que possuam um Hayya Card, os torcedores palestinos, incluindo aqueles que vivem na Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza, podem viajar no voo direto Tel Aviv/Doha. No entanto, os que saíram da Palestina para o Catar, sejam os que estão a trabalho, sejam os torcedores, preferiram as linhas convencionais da Jordânia, deixando os voos diretos quase que exclusivos para os israelenses.

Ainda que um torcedor resolvesse enfrentar todas as dificuldades e ir para o Catar assistir a um único jogo, haveria o problema do custo diário, na casa dos US$ 1.400,00, um privilégio do qual os palestinos não desfrutam. Só em Gaza, segundo o Palestinian Central Bureau of Statistics (PCBS), 80% dos jovens estão desempregados e a taxa de pobreza atingiu 64%, aumentada em pelo menos 19% desde a imposição do bloqueio.

Considerando que um palestino em Gaza ganha uma média de US$ 4 ou 5 diários, mesmo que um torcedor não gastasse com comida, água, luz, remédios ou outras necessidades básicas, ele só conseguiria ir para Doha após um mínimo de 280 dias de trabalho.

Quanto aos cafés de Gaza, estes estão tão lotados quanto os bares da rua Augusta, em São Paulo. Mas essa também não é uma opção. Os jogos em Gaza são transmitidos pela Al-Jazeera, Bein Sports e, também, por um canal local chamado Amwaj. Ocorre que as transmissões são péssimas e geralmente perdem o sinal. Por esta razão, com o apoio do Catar, o Comitê para Reconstrução de Gaza preparou um estádio desportivo que abriga as centenas de torcedores que não querem torcer com os típicos “chiados e chuviscos”, que não vemos em nossos televisores há mais de vinte anos.

ASSISTA: Futebol árabe e internacional mantém a Palestina no coração dos estádios

Há, ainda, um problema adicional para os torcedores que preferem, como muitos brasileiros, assistir aos jogos com a família, no conforto de seus próprios lares. Só em 21 dias de ataque israelense contra Gaza em 2021, as Nações Unidas estimaram que 15 mil habitações sofreram algum grau de dano, das quais 2 mil foram totalmente destruídas ou severamente danificadas. Ao todo, 461 casas, 94 prédios, incluindo a torre que abrigava escritórios da Associated Press e Al Jazzera, 58 escolas, quatro hospitais e 19 instalações médicas foram, total ou parcialmente destruídos, deixando mais de 113 mil palestinos sem um lar para assistir aos jogos da Copa.

Para aqueles que não perderam suas casas, ainda existe a problemática de Israel frequentemente cortar o abastecimento de água e energia nos territórios palestinos. Sendo assim, se reunir em cafés ou locais públicos que possuem geradores é o único meio de não perder nenhum momento das partidas.

Apesar de todas as dificuldades, os palestinos conseguem marcar presença e são numerosos nos jogos no Catar? Categoricamente, Não!

Estamos realmente vendo muitas bandeiras palestinas em todos os jogos, mas o que acontece é uma demonstração de solidariedade de outros torcedores, oriundos de países que conhecem bem a causa palestina. No jogo entre Tunísia e França, um torcedor com uniforme da seleção tunisiana invadiu o campo enrolado em uma bandeira da Palestina. As torcidas de ambos os lados, motivadas pelo ativista, gritaram: Palestina Livre! No jogo anterior, contra a Austrália, a torcida tunisiana levantou uma bandeira palestina enorme e com o mesmo Free Palestine.

Quanto ao torcedor palestino que o técnico Tite fez questão de conhecer, ele é Husam Safari, um palestino que mora em Doha.

“Muito obrigado pelo carinho. Nós somos irmãos, independente da nacionalidade”, disse Tite ao torcedor palestino.

Sim, Tite fez mais um gol dizendo “independente da nacionalidade”. Se contra todas as expectativas vemos muitos palestinos pelo mundo afora e até mesmo assistindo aos jogos da Copa do Mundo no Catar, é porque quase 6 milhões de palestinos são refugiados desde quando foram expulsos por Israel ao longo de 75 anos de ocupação. Todos eles, mesmo aqueles filhos de palestinos que nasceram em outras nações, se consideram o que nunca deixaram de ser: legítimos palestinos.

Se para nós, brasileiros, ainda existem dificuldades de torcer em uma copa, seja ao vestir a camisa da seleção brasileira ou viajar para o Catar, para os palestinos essa possibilidade nem existe. O esporte, em especial o futebol, por se tratar de uma paixão coletiva, tem nas mãos uma ferramenta importantíssima de mobilização e conscientização social. As manifestações pró-Palestina são, com certeza, de extrema importância para que aconteçam as mudanças que os palestinos precisam para conquistar seu Estado Independente. Sendo assim, podemos afirmar com veemência que, independentemente de qual seleção dispute e conquiste a taça, no final, quem venceu na Copa do Catar foi a Palestina.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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