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‘A maior ameaça’: Hora de falarmos sobre a luta de classes na Palestina

Ruas vazias durante greve geral devido a bloqueio israelense em Hebron (Al-Khalil), Cisjordânia ocupada, em 30 de outubro de 2022 [Mamoun Wazwaz/Agência Anadolu]

Na segunda-feira, 31 de outubro, palestinos de al-Eizariya, cidade a leste de Jerusalém Oriental, realizaram uma greve geral. O ato é parte das manifestações de luto da comunidade pela morte de Barakat Moussa Odeh, de 49 anos, executado por forças israelenses na cidade de Jericó, no dia anterior.

Este não é um caso isolado. Greves gerais se tornaram cada vez mais frequentes nos territórios palestinos ocupados, em particular, nas últimas semanas, como forma de desobediência civil e protesto contra os ataques israelenses às cidades de Nablus, Jerusalém, Jenin e Hebron. Os atos também servem para expressar luto por combatentes da resistência palestina assassinados por soldados e colonos ilegais israelenses.

Historicamente, a greve geral é um meio regular da luta dos trabalhadores palestinos. Tais atos costumam refletir a medula espinhal da resistência de base na Palestina e antecedem em anos a própria criação do Estado de Israel, sobre as ruínas das terras ancestrais do povo árabe.

A retomada de táticas de greve geral sugere que os novos levantes na Cisjordânia tenham raízes na resistência dos trabalhadores palestinos. De fato, muitos dos militantes jovens são filhos dos campos de refugiados e da classe trabalhadora nos centros urbanos. Sua revolta nasce da noção de que os métodos políticos das elites convencionais não resultaram em nada e que a liberdade palestina jamais será alcançada pela retórica vazia de Mahmoud Abbas e seus demagogos.

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A revolta que se constrói agora parece compartilhar semelhanças com a revolução anticolonial palestina entre 1936 e 1939, além da Primeira Intifada de 1987. Ambos os eventos históricos se formularam e sustentaram sobre os ombros dos trabalhadores palestinos. Embora os interesses das classes dominantes sejam comumente negociados dentro dos espaços políticos para anuir sua existência, junto das autoridades no poder, os trabalhadores palestinos – maior vítima do colonialismo e da ocupação militar – costumam reagir em uníssono.

O escritor e historiador palestino Ghassan Kanafani – assassinado pelo serviço secreto de Israel, o Mossad, em julho de 1972 – analisou os eventos que culminaram na revolução da década de 1930. Sua obra, “A revolta de 1936-1939 na Palestina” (Editora Sundermann, São Paulo, 2015), foi publicado originalmente pouco antes de sua morte. Kanafani argumentou que três inimigos impunham a “maior ameaça” ao movimento nacional palestino: “A liderança local, reacionária; os regimes árabes ao redor da Palestina; e o inimigo sionista-imperialista”.

“A mudança de sociedade semifeudal ao uma sociedade capitalista foi acompanhada pela maior concentração de poder econômico nas mãos da máquina sionista e, com efeito, da sociedade judaica na Palestina. [Nos anos 1930], o proletariado árabe caiu vítima do colonialismo britânico e do capital sionista – o primeiro é o principal responsável”, comentou Kanafani.

Sem surpresa, os trabalhadores palestinos estão outra vez na vanguarda da luta por libertação. Os trabalhadores parecem perfeitamente cientes do fato de que o colonialismo israelense não é apenas um agente da opressão, mas também um inimigo de classe.

O colonialismo de assentamentos adotado por Israel costuma ser definido como uma forma de colonização que busca povoar as terras ocupadas, explorar seus recursos e eliminar seus povos originários. A obra do historiador Patrick Wolfe é especialmente elucidativa nesta questão. Sua obra seminal – “Settler Colonialism and the Elimination of the Native” – afirma: “O colonialismo de assentamentos é eliminatório por natureza”. Contudo, acrescenta: “A lógica de aniquilação não se refere apenas a liquidar sumariamente o povo nativo, embora inclua este passo”.

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A longevidade dos assentamentos coloniais se antevê em fatores essenciais que permitem sua sustentabilidade por longos períodos. Dentre os fatores, está a hegemonia completa do projeto ocupante sobre os recursos naturais e a exploração sistêmcia dos povos originários como mão-de-obra barata.

Em seu ensaio “Settlers, Workers, and the Logic of Accumulation by Dispossession” (“Colonos, trabalhadores e a lógica da acumulação por expropriação”, tradução livre), Sai Englert observa: “Nas sociedades coloniais de assentamento, a luta de classes disputa não apenas a distribuição de riquezas, mas também a distribuição dos espólios acumulados por meio da expropriação da população nativa”.

A lógica de Englert aplica-se ao modelo sionista na Palestina, a começar muito antes da própria criação do Estado de Israel, via limpeza étnica, em 1948. Englert destaca a dicotomia sionista ao citar o estudo de Gershon Shafir, que descreve o sionismo primitivo como “Movimento colonial cujo intuito é simultaneamente assegurar terra aos colonos e colonos às terras”.

Contudo, a chegada de imigrantes judeus – sobretudo da Europa – na Palestina histórica reflete um processo prolongado que compeliu o sionismo a executar seu projeto colonial em estágios. No primeiro momento, entre o fim do século XIX até a década de 1930, o sionismo concentrou-se na exploração da mão-de-obra nativa e, eventualmente, na exclusão desta força de trabalho para abrir caminho à limpeza étnica deliberada do povo palestino.

Ao explicar o modelo sionista neste momento histórico, argumenta o historiador israelense Ilan Pappé: “Os primeiros sionistas estavam cientes deste processo, de que a exploração do trabalho era apenas uma fase, uma ‘exploração temporária’, rumo ao ‘avoda ivrit’ ou ‘trabalho hebraico’, como descreveram os líderes sionistas da época David Ben-Gurion e Yitzhak Ben-Zvi”. Ben-Zvi corrobora a hipótese: “Minha esperança é que, no devido momento, nós [isto é, a mão-de-obra judaica] obtenhamos um lugar definitivo na economia palestina e sua vida coletiva e social”.

“É óbvio quem deveria ocupar o papel marginal na economia: os palestinos, que compunham a vasta maioria da população na ocasião”, elucida Pappé.

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Yaakov Rabinowitz (cofundador do partido Agudat Israel), não via contradição em comandar um movimento supostamente socialista – por exemplo, o Hapoel Hazair – e defender a segregação do mercado de trabalho: “O empreendimento sionista deve proteger os trabalhadores judeus frente aos trabalhadores árabes, assim como o governo francês protege colonialistas franceses na Argélia frente os nativos”.

O legado do sionismo desta época ainda define as relações entre os trabalhadores palestinos e Israel – um relacionamento embasado na segregação racial e na exploração inescrupulosa.

A natureza do colonialismo israelense não mudou desde seu advento, no início do século XX. O projeto permanece comprometido com a limpeza étnica do povo palestino e a expropriação de seus recursos, incluindo a mão-de-obra. Todas as tentativas de contornar tamanha exploração fracassaram, pois os trabalhadores palestinos continuam também vulneráveis em outros locais de trabalho, sobretudo devido à economia semiautônoma adotada pela Autoridade Palestina e por regimes igualmente opressores no mundo árabe.

Apesar disso tudo, os trabalhadores palestinos insistem em sua resistência, seja ao sindicalizar-se, chamar greves, protestar e defender-se perante a ocupação. Não deveria surpreender que numerosos levantes palestinos no decorrer dos anos sejam alimentados pelos anseios da classe trabalhadora.

Esta realidade nos leva a repensar nossa compreensão da luta palestina. Não se trata apenas de um “conflito” em âmbito político, geográfico ou narrativo, mas sim emergente dos aspectos da luta de classe dentro e fora da Palestina. Tais lutas – como demonstraram suas experiências – vivem no âmago histórico da resistência nacional palestina e se manifestam com clareza desde a rebelião da década de 1930 até os dias de hoje.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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